«Alice no País das Maravilhas» sempre contém, para mim, o
gosto amargo da ansiedade e da frustração. Tão fantasiosas como reais tais sensações na jovem idade. Lewis Carroll, num jeito anacrónico quase surrealista
de certa literatura inglesa supostamente para crianças, vai colocando Alice
dentro de um mundo sem saída onde todas as personagens correm, aparecem e desaparecem,
sem explicação aparente, deixando-a presa num espaço sem espaço, num tempo sem
tempo. Fogem todos de um relógio, de uma Rainha de Copas, déspota e vingativa,
como certas crianças sempre são.
A nossa mãe não gostava da história, dizia que não era para
nós. Franzia o nariz quando nas matinés de uma televisão arredondada e a preto e
branco passavam «Alice in Wonderland» de Norman Z. McLeod (1933) – Não tenho a
certeza se é este o filme mas a norma do IMDB parece impor-mo –.
Esqueço por momentos o de Tim Burton (2010). Concentro-me num espectáculo que tem por garantia uma espécie de cenário-lego, jogo infantil, montado e desmontado pelos próprios actores, que entre o apagão das luzes e a crepitação
estridente do lustre sobre a plateia, vai-nos levando através dos diversos episódios
passados nessa espécie de ansioso vácuo temporal por Alice (Soraia Tavares). O
Coelho sempre atrasado (FF), o Catterpilar, o cogumelo, a tartaruga, a Duquesa,
o Gato de Cheshire (Ruben Madureira), o chá das cinco… Todos com medo da Rainha de Copas (Sissi
Martins). Até que esta surge e impõe a sua lei do “corta a cabeça”. E tudo muda
de figura…
…Sissi Martins, através de uma mínima, vermelha, louca, americanizada
e rolante Rainha, vai impor pelo meio do críquete-croquete, das festas e da alegria
dos confettis a acusação-prévia-ao-julgamento feita a Alice pelo roubo das
tartes que arrefeciam à janela. A partir dali, todos os enegrecidos episódios diacrónicos reunem-se
numa assembleia iluminada em torno de uma personalidade-revelação que tem tanto de terrível como de cómico e delirante.
Sissi Martins transforma essa tragédia que afinal parece nem
estar assim a passar tanto do tempo numa comédia secundada pelas suas cartas de jogar,
por FF na pele de um Coelho ansioso e contador de histórias e por um Ruben
Madureira, Gato de Cheshire consciente do tempo que se pode contar de frente para trás.
Ruben Madureira esclarece a uma Alice suspensa que, afinal, o tempo é uma
simples abstracção quase poética que apenas nos leva até à morte. Sissi Martins e
Ruben Madureira representam os polos positivo e negativo (ou vice-versa) de uma
história sem tempo ou espaço. Uma história tão real quanto absurda.
Teatro da Trindade, 19 de outubro de 2025
«Alice no País das Maravilhas» de Lewis Carroll. Tradução e
adaptação: Maria João da Rocha Afonso. Com Alexandre Carvalho, Diogo Mesquita (Duquesa),
FF (o Coelho sempre atrasado), JP Costa, Mariana Lencastre, Rita Tristão da
Silva, Romeu Vala, Ruben Madureira (o Gato de Cheshire), Sissi Martins (Rainha de Copas) e
Soraia Tavares (Alice). Músicos: André Galvão, Artur Guimarães, Carlos
Meireles, João Valpaços, Marcelo Cantarinhas e Tom Neiva. Encenação: Marco
Medeiros. Música e direção musical: Artur Guimarães. Direção vocal e
assistência à direção musical: Carlos Meireles. Desenho de luz: Marco Medeiros.
Desenho de som: Sérgio Milhano. Movimento: JP Costa. Cenografia (conceção e
construção): Ângela Rocha. Figurinos: Rafaela Mapril. Assistência de encenação:
Rebeca Duarte. Apoio à construção da cenografia: Catarina Sousa, Filipe
Dominguez, Jorge Miguel e Rita Cabrita. Fotografia de cena: Alípio Padilha. Produção:
Teatro da Trindade INATEL. Duração: 1h40.







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