domingo, 3 de janeiro de 2021

Sobre o filme «Malmkrog» de Cristi Puiu, 2020


 

















Um filme extraordinário.

Um filme que nos dá todo o tempo para o contemplar e para o ouvir. Um filme de escutar e pensar no fim de uma época, no retorno da filosofia pura, do teatro e da morte. Quem tenha pressa escusa de o ir ver, de o ir contemplar. Tem mais de 3 horas e 20 minutos e todo se passa numa espécie de paradoxo filosófico discursivo entre cinco personagens da aristocracia francófona, encerradas numa mansão senhorial mergulhada na neve natalícia de Malmkrog, na Transilvânia romena de origem alemã.

O fin-de-siècle aproxima-se, a guerra entre a Turquia e a Rússia terminou mas a exposição de Paris de 1900 vai chegar, assim como a revolução russa e as guerras entre fronteiras, a descrença cristã em Deus. Frente à câmara cristalizada sobre a palavra dita, eles peroram: Nikolai (Frédéric Schulz-Richard) fala do Anticristo e Olga (Marina Palii) devota de Cristo não crê na sua ressurreição. A aguerrida Ingrida (Diana Sakalauskaité) fala sobre a transformação moral que recai naquele momento sobre a instituição militar. A devota Madeleine (Agathe Bosch) toma o partido da ressurreição e o pan-europeísta Edouard (Ugo Broussot) teme pela origem helénica da humanidade degradada pela invasão dos selvagens. Todos estão a ser delicadamente servidos por um conjunto de criados liderados pelo altivo, implacável e germânico István (István Téglás). Olga desmaia. O protesto dos trabalhadores irrompe. Surge novamente a neve no jardim e as personagens percorrem-no em tensão. Nada nos é explicado. Será o início da segunda parte. Tudo parece concluir-se pela inconclusão. Uns desejam que a discussão já tenha terminado, outros só pretendem continuá-la. Madeleine acaba de tocar Schubert. Nikolai vai buscar um livro à biblioteca. Edouard sublinha o regresso do Inverno.

A palavra moral dedutiva pensada sobre o presente da morte e o futuro de Deus baseia-se no texto original de Vladimir Soloviov, mas parece aproximar-se ironicamente de Dostóievski ou Tólstoi, afastando-se de uma certa doçura nostálgica de Tchekóv.

Contudo e sem cedências nostálgicas, existe nesta brutal e híper-romântica parábola sobre a morte do futuro um incrível humor substerrâneo, um sarcasmo subliminar, um ódio silenciado que é sustentado pelas maravilhosas representações destes actores geniais.

Um filme que nos conta o fim europeu do século XIX que tão semelhante é ao ciclo iniciado há 20 anos com o nosso novo século. Talvez também já descrente, talvez já decrépito.


jef, dezembro 2020

«Malmkrog» de Cristi Puiu. Com Frédéric Schulz-Richard, Agathe Bosch,

Marina Palii, Diana Sakalauskaité, Ugo Broussot, István Téglás, Zoe Puiu. Argumento: Cristi Puiu baseado em «Os Três Diálogos e o Relato do Anticristo» de Vladimir Solovyov. Fotografia: Tudor Vladimir Panduru. Guarda-roupa: Oana Paunescu. Montagem: Dragos Apetri, Andrei Iancu, Bogdan Zarnoianu. Produtores: Andreas Roald, Jamal Zeinal Zade, Anamaria Antoci, Anca Puiu. Roménia / Sérvia / Suíça / Bósnia e Herzegovina / República da Macedónia, 2020, Cores, 201 min.


Sem comentários:

Enviar um comentário