Um filme extraordinário.
Um filme que nos dá todo o tempo para o contemplar e para o
ouvir. Um filme de escutar e pensar no fim de uma época, no retorno da
filosofia pura, do teatro e da morte. Quem tenha pressa escusa de o ir ver, de
o ir contemplar. Tem mais de 3 horas e 20 minutos e todo se passa numa espécie
de paradoxo filosófico discursivo entre cinco personagens da aristocracia
francófona, encerradas numa mansão senhorial mergulhada na neve natalícia de
Malmkrog, na Transilvânia romena de origem alemã.
O fin-de-siècle aproxima-se,
a guerra entre a Turquia e a Rússia terminou mas a exposição de Paris de 1900 vai
chegar, assim como a revolução russa e as guerras entre fronteiras, a descrença cristã em Deus. Frente à
câmara cristalizada sobre a palavra dita, eles peroram: Nikolai (Frédéric
Schulz-Richard) fala do Anticristo e Olga (Marina Palii) devota de Cristo não crê
na sua ressurreição. A aguerrida Ingrida (Diana Sakalauskaité) fala sobre a
transformação moral que recai naquele momento sobre a instituição militar. A devota
Madeleine (Agathe Bosch) toma o partido da ressurreição e o pan-europeísta Edouard
(Ugo Broussot) teme pela origem helénica da humanidade degradada pela invasão
dos selvagens. Todos estão a ser delicadamente servidos por um conjunto de criados
liderados pelo altivo, implacável e germânico István (István Téglás). Olga
desmaia. O protesto dos trabalhadores irrompe. Surge novamente a neve no jardim
e as personagens percorrem-no em tensão. Nada nos é explicado. Será o início da
segunda parte. Tudo parece concluir-se pela inconclusão. Uns desejam que a
discussão já tenha terminado, outros só pretendem continuá-la. Madeleine acaba de tocar Schubert. Nikolai vai buscar um livro à biblioteca. Edouard sublinha o regresso do Inverno.
A palavra moral dedutiva pensada sobre o presente da morte e
o futuro de Deus baseia-se no texto original de Vladimir Soloviov, mas parece aproximar-se
ironicamente de Dostóievski ou Tólstoi, afastando-se de uma certa doçura
nostálgica de Tchekóv.
Contudo e sem cedências nostálgicas, existe nesta brutal e híper-romântica
parábola sobre a morte do futuro um incrível humor substerrâneo, um sarcasmo
subliminar, um ódio silenciado que é sustentado pelas maravilhosas
representações destes actores geniais.
Um filme que nos conta o fim europeu do século XIX que tão
semelhante é ao ciclo iniciado há 20 anos com o nosso novo século. Talvez também
já descrente, talvez já decrépito.
jef, dezembro 2020
«Malmkrog» de Cristi Puiu. Com Frédéric
Schulz-Richard, Agathe Bosch,
Marina Palii, Diana Sakalauskaité, Ugo Broussot, István
Téglás, Zoe Puiu. Argumento: Cristi Puiu baseado em «Os Três Diálogos e o Relato
do Anticristo» de Vladimir Solovyov. Fotografia: Tudor Vladimir Panduru. Guarda-roupa:
Oana Paunescu. Montagem: Dragos Apetri, Andrei Iancu, Bogdan Zarnoianu. Produtores:
Andreas Roald, Jamal Zeinal Zade, Anamaria Antoci, Anca Puiu. Roménia / Sérvia
/ Suíça / Bósnia e Herzegovina / República da Macedónia, 2020, Cores, 201 min.
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