terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Sobre o livro «Cartas de Veneza» de Robert Dessaix. Gótica, 2002. Tradução de Mário Dias Correia.


 













Zurique, Locarno, Vicenza, Pádua, Verona, Bolonha. Veneza...

Este é um livro de viagens que contra si fala. Tudo nele, se baseia no contraditório. Viajar desejando ficar, ficar mas talvez achando melhor continuar para frente em busca apenas de um banco numa praça, ao sol.

«Uma das coisas que mais me irrita no facto de ser turista é a minha própria cumplicidade no hábito de riscar coisas numa lista. Os Giottos – feito, Igreja dos Eremitas – feito, Piazza dei Signori – feito, e assim por diante. Quem quer saber? Como um qualquer peregrino medieval, ali estava eu a acumular pontos junto de… junto de quem, exactamente? A quem iria apresentar a minha caderneta? Há algo de estranhamente religioso, no sentido mais conservador, no turismo moderno.»

Um homem foge da Austrália quando sabe de uma notícia definitiva. Não foge exactamente para se encontrar, fugindo por ódio, raiva ou desencanto. Foge para poder ficar parado no presente. E vai escrevendo cartas, possivelmente a Peter, seu companheiro, que deixou longe também a braços com a tal notícia trazida por um Gabriel de bata branca. Resolve partir e viajar como modo de se reconciliar com os caminhos-de-ferro e com o tempo que eles ligam.

Encontra Rachel quando resolve ir ter com Patricia Highsmith e o seu Tom Ripley. Filha dos amores passados e livres no Monte Verità, Rachel contar-lhe-á a história de um libinidoso amuleto de ouro que traz na lapela. Saberá assim das aventuras da baronesa russa Antonietta e do seu jardim botânico nas ilhas Brissago do lago Maggiore.

Ao pequeno-almoço encontra-se com o alemão Professor Eschenbaum que desvia o olhar para contemplar o criado Emilio e lhe narrará a história da cortesã desaparecida Camilla Scamozzi. O professor, entre fugidas nocturnas pelos becos venezianos, perorará sobre o diferente modo de viajar dos venezianos Marco Polo e Casanova.

Em Pádua encontrará um Santo António menos casamenteiro e mais mortalmente sádico. Tenta-se a beijar-lhe o mármore da tumba. Recusa ir visitar um dos primeiros jardins botânicos do mundo. Pelo meio, a rebater o eco da notícia fatal, lê o Inferno e o Paraíso de Dante, combatendo neste uma certa superioridade maternalista de Beatriz.

As extensas notas fim-de-capítulo servem para o autor (e algumas vezes o tradutor) contestarem com histórico humor as deambulações do personagem perdido (ou encontrado) numa verosimilhante e decadente Veneza, contestando também, e ao mesmo tempo venerando, a finitude da cidade de Visconti. Porque neste livro existe sempre a possibilidade do permanente retorno.

Um livro que nos faz tardar o passo ante o decorrer dos dias, ante a fúria compulsiva do pegar-na-mala contemporâneo.


jef, janeiro 2021

 

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