Este
filme só existe pela cumplicidade existente entre Abel Ferrara e Willem Dafoe.
Há seis filmes que a persona do realizador se vê espelhada na invulgar
expressividade física e dramática do actor. Assim aconteceu em «Tommaso» em
2019, uma espécie de diário de um realizador de cinema que aguarda o dia
seguinte.
No
início de «Sibéria», ouvimos o relato em voz off das viagens que dois irmãos faziam com o seu pai em direcção às montanhas frias para as pescarias. Ficamos
na dúvida se nelas haveria alguma felicidade entre o frio de rachar e o rosnar feroz dos cães
husky. E todo o filme é contado a partir
desse átomo e na companhia de cinco desses cães siberianos.
O
filme, aliás, parte do isolamento voluntário e gelado de Clint (Willem Dafoe),
dono de uma cabana-taberna, espécie de interposto para caçadores e viajantes
intra-siberianos, percorrendo, a partir daí, uma série de estágios psicanalíticos
ou estações oníricas, citando pesadelos infantis, incompreensões maternais e
paternais, alguma ofendida vocação sexual. As cavernas profundas, a neve infinita,
as areias saarianas, os jogos infantis, os campos de extermínio, o urso
feroz. Por fim, o fogo final, destruidor e redentor. O recomeço.
Tome-se
«Sibéria» do lado mais íntimo de Abel Ferrara através da luminosidade
desiludida do corpo e da expressão de Willem Dafoe. Deixemo-nos levar pelo
incompreensível que está permanentemente guardado na memória desfocada e falível
do nosso passado.
E
«Sibéria» fará sentido.
«Sibéria»
(Siberia) de Abel Ferrara. Com Willem Dafoe, Dounia Sichov, Simon McBurney, Cristina
Chiriac, Fabio Pagano, Anna Ferrara, Phil Neilson, Laurent
Arnatsiaq, Valentina Rozumenko. Argumento: Abel Ferrara, Christ Zois.
Fotografia: Stefano Felivene. Música: Joe Delia. Itália, Alemanha, México,
2020, Cores, 92 min.
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