quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Sobre o filme «Sibéria» de Abel Ferrara, 2020


 






















Este filme só existe pela cumplicidade existente entre Abel Ferrara e Willem Dafoe. Há seis filmes que a persona do realizador se vê espelhada na invulgar expressividade física e dramática do actor. Assim aconteceu em «Tommaso» em 2019, uma espécie de diário de um realizador de cinema que aguarda o dia seguinte.

No início de «Sibéria», ouvimos o relato em voz off das viagens que dois irmãos faziam com o seu pai em direcção às montanhas frias para as pescarias. Ficamos na dúvida se nelas haveria alguma felicidade entre o frio de rachar e o rosnar feroz dos cães husky. E todo o filme é contado a partir desse átomo e na companhia de cinco desses cães siberianos.

O filme, aliás, parte do isolamento voluntário e gelado de Clint (Willem Dafoe), dono de uma cabana-taberna, espécie de interposto para caçadores e viajantes intra-siberianos, percorrendo, a partir daí, uma série de estágios psicanalíticos ou estações oníricas, citando pesadelos infantis, incompreensões maternais e paternais, alguma ofendida vocação sexual. As cavernas profundas, a neve infinita, as areias saarianas, os jogos infantis, os campos de extermínio, o urso feroz. Por fim, o fogo final, destruidor e redentor. O recomeço.

Tome-se «Sibéria» do lado mais íntimo de Abel Ferrara através da luminosidade desiludida do corpo e da expressão de Willem Dafoe. Deixemo-nos levar pelo incompreensível que está permanentemente guardado na memória desfocada e falível do nosso passado.

E «Sibéria» fará sentido.

 

«Sibéria» (Siberia) de Abel Ferrara. Com Willem Dafoe, Dounia Sichov, Simon McBurney, Cristina Chiriac, Fabio Pagano, Anna Ferrara, Phil Neilson, Laurent Arnatsiaq, Valentina Rozumenko. Argumento: Abel Ferrara, Christ Zois. Fotografia: Stefano Felivene. Música: Joe Delia. Itália, Alemanha, México, 2020, Cores, 92 min.

Sem comentários:

Enviar um comentário