segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Sobre o disco «Aqui Está-se Sossegado» de Camané e Mário Laginha, Parlophone / Warner 2019



 




Não é apenas por aqui estar contido, no seu centro, um dos fados mais condoídos e extravagantes, dos mais belos fados-resistência alguma vez compostos (e cantados por Amália) – “Abandono” por David Mourão-Ferreira e Alain Oulman.

Existe aqui uma simetria única que, parece-me, não ter sido propositada, antes movida pela consonância muito particular entre o canto fadista de Camané, na sua voz agora mais madura, mais timbrada, vibrante e sentida, e o piano de Mário Laginha que coloca a composição e o acompanhamento musicais como modo primeiro, revelando as canções num equilíbrio inusitado entre a fuga corrida de um antigo barroco e o improviso dedilhado tão justo ao jazz contemporâneo.

E a simetria mais natural, em torno do eixo que é esse “Abandono”, compõe-se de duas composições maravilhosas de José Mário Branco para os poemas únicos e satíricos de Manuela de Freitas, a exigir dos dois músicos interpretações quase teatrais – “Ela Tinha Uma Amiga” e “A Guerra das Rosas”; duas composições de Alain Oulman para as palavras de Luís Vaz de Camões: “Com Que Voz” e “Amor É Fogo Que Arde Sem se Ver”; dois fados clássicos de Alfredo Marceneiro: “Dança de Volta” e “A Casa da Mariquinhas”; mais dois fados com as palavras de Fernando Pessoa: “Quadras” e “Aqui Está-se Sossegado”; duas fugas sem poema compostas para piano por Mário Laginha: “Rua da Fé” e “Fado Barroco”; e dois fados com música de Mário Laginha para dois poetas contemporâneos que, ao escreverem para canções, transportam o fado até ao nosso futuro – Maria do Rosário Pedreira (“Rua das Sardinheiras”) e João Monge (“Se Amanhã Fosse Domingo”).

Um disco a guardar, talvez, na estante do ‘Fado’ ou, melhor, no de ‘Piano/Lied’… não sei bem… Vou ouvir de novo.


jef, dezembro 2024

domingo, 29 de dezembro de 2024

Sobre o filme «Os Chapéus de Chuva de Cherburgo» de Jacques Demy, 1964

























Este filme passava muitas vezes na televisão. E eu, em miúdo, sabia que era musical e tentava gostar. Mas não gostava. Voltava sempre à «Mary Poppins» (Robert Stevenson, 1964), à «My Fair Lady» (George Cukor, 1964) ou ao «Hello Dolly» (Gene Kelly, 1969). Não compreendia por que estavam sempre a cantar, mesmo na garagem. Achava aborrecido estarem todos tristes apesar do amor que todos sentiam por todos. Não havia propriamente canções, nem alegria. Contudo, nunca o esqueci, acho que por causa do colorido (filmado a 35 mm, sei-o agora).

Acabo de o rever em cópia digitalmente restaurada e percebo a razão de, anteriormente, não gostar e me ter apaixonado agora por ele.

É um dos mais belos filmes políticos sobre as circunstâncias trágicas e irrecuperáveis do destino.

Todos ali, sempre cantando, nem árias nem recitativos como na ópera barroca ou em alternância lírica como nas de épocas mais românticas, descrevem-nos, passo a passo, a razão pela qual, na vida, a felicidade é construída sobre os escombros de uma felicidade amada, passada mas extinta, e que devem ser evitados por uma simples questão – sobrevivência. Todos se amam e alegram tristemente, se resignam a um futuro menos mau, apesar da guerra da Argélia, apesar da ausência forçada, apesar das dívidas que fazem empenhar joias e procurar casamentos economicamente mais vantajosos, apesar das fracturas entre classes sociais.

E é nesse lado de tragédia compensada pela resignação que o melodrama se constrói, forte e urgente, sem cedências nem à tragédia da ópera romântica nem ao aligeiramento subtil das de épocas barrocas.

Porém, tudo é operático, dramático, teatral. O movimento inflexível da câmara, as cores ostensivamente alegres, quase extravagantes, fluindo na mudança dos cenários, o guarda-roupa, a expressividade fulcral dos actores no interior de um filme musical que apesar de trágico mantém a ténue postura de um final, por hipótese, ainda feliz.

A cena final é de uma precisão e rigor emocional impressionantes, colocando o destino do melodrama no seu lugar e recordando tristemente a cena onde Geneviève (Catherine Deneuve) e Guy (Nino Castelnuovo), acompanhados da sua bicicleta, fazem a jura de amor eterno, seguindo o cenário sem andar, deslizando suspensos numa nuvem de afecto.

Enfim, um musical belíssimo e absolutamente adorado mas para os maiores de idade que já entendem como sobreviver em infeliz felicidade. 

Um filme musical americano mas à francesa. Ah, Nouvelle Vague!


jef, dezembro 2024

«Os Chapéus de Chuva de Cherburgo» (Les Parapluies de Cherbourg) de Jacques Demy. Com Catherine Deneuve, Nino Castelnuovo, Anne Vernon, Marc Michel, Ellen Farner, Mireille Perrey, Jean Champion, Pierre Caden, Jean-Pierre Dorat, Bernard Fradet, Michel Benoist, Philippe Dumat, Dorothée Blanck, Jane Carat, Harald Wolff, Danielle Licari (voz de Geneviève), José Bartel (voz de Guy), Christiane Legrand (voz de Madame Emery), Georges Blaness (voz de Roland), Claudine Meunier (voz de Madeleine), Claire Leclerc (voz de Tia Élise). Argumento: Jacques Demy. Produção: Mag Bodard. Fotografia: Jean Rabier. Música: Michel Legrand. Guarda-roupa: Jacqueline Moreau. Cenografia: Bernard Evein. França / Alemanha, 1964, Cores, 91 min.

 

sábado, 28 de dezembro de 2024

Sobre o filme «Supernova» de Harry Macqueen, 2020




























Os planos fechados sobre os rostos e as expressões de Sam (Colin Firth), pianista, e Tusker (Stanley Tucci), escritor, definem desde as primeiras cenas a estratégia do realizador. Um casal ainda definido pela paixão ao fim de décadas de entendimento. Algum incómodo, digamos vulnerabilidade, assiste ao casal durante a viagem que decidiram realizar numa autocaravana pelas mais belas paisagens glaciares da Grã-Bretanha. É provável que algo corra mal no interior de Tusker e que leva à preocupação constante de Sam. E o que corre mal é irremediável e de foro neurológico. Progressivamente, a memória irá desaparecer e com ela o Tusker por quem Sam se apaixonou. Tusker já tomou uma decisão inabalável.

O segundo importante plano narrativo que o realizador imprime ao filme é o de contar a história pelo meio, In medias Res. Tudo é colocado quase sem o espectador saber, por explicado. O mesmo acontece a Sam que é apanhado numa viagem de férias em que, afinal, quase tudo estava planeado. Desde a estadia na casa de família de Sam, agora habitada pela irmã Lili (Pippa Haywood) até ao concerto de piano que Sam vai dar numa sala num algures inglês.

Tudo é dado pelo amor entre aqueles dois homens. Também tudo será emocionalmente tirado.

Em «Supernova» a questão, tão dura como justa, da morte conscientemente auto-infligida é dada de modo afectivo quase como oferenda ao outro próximo, por compaixão. Uma emoção e uma compaixão que nos é oferecida pela entrega fulcral aos personagens dos actores Stanley Tucci e Colin Firth.

Curioso o facto de o acaso me ter dado ver este filme quase em simultâneo com «O Quarto do Lado» (Pedro Almodóvar, 2024).


jef, dezembro 2024

«Supernova» de Harry Macqueen. Com Colin Firth, Stanley Tucci, Pippa Haywood, Peter MacQueen, Nina Marlin, Ian Drysdale, Sarah Woodward, James Dreyfus, Lori Campbell, Daneka Etchells, Halema Hussain, Julie Hannan, Truffles (cão), Imogen Barnfather, Ruth Crane, Toby Gaffney, Adi Jones, Ian Mackenzie, Millie Macqueen, Paul Martin, Alex Morrison, Tina Louise Owens, John Alan Roberts, John Seymour, Lewis Sowerby, Justin Storey, Chinty Turnbull. Argumento: Harry Macqueen. Produção: Tristan Goligher, Emily Morgan. Fotografia: Dick Pope. Música: Keaton Henson. Guarda-roupa: Matthew Price. Grã-Bretanha, 2020, Cores, 95 min.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Sobre o livro «Como o Grincho Roubou o Natal!» de Dr. Seuss, Relógio D’Água, 2024 (1957). Tradução de Maria Eduarda Cardoso.


 



















Alguém que me é muito querido alegra-me o Natal com um livro sobre o ser que não devota um sentimento lá muito caridoso pelos concidadãos.

36 anos antes de Tim Burton (e Henry Selick) ter revelado ao mundo esse «O Estranho Mundo de Jack» (‘The Nightmare Before Christmas’, 1993), o Dr. Seuss (Theodor Seuss Geisel, 1904-1991) já havia desvendado um certo ‘bad dream during christmas’ protagonizado pelo ressabiado e verde Grincho que, morando numa gruta a norte da Vila Tal, odiava sobremaneira a alegria devotada ao Natal pelos Tais, os respectivos cidadãos. Nem ele sabia definir bem a razão, mas suspeita-se que se prendia pela não existência no seu interior do próprio coração.

Então como acabar de vez com o feliz Natal da Lili Tal e dos outros Meninos Tais? O Grincho matutou, matutou e acabou por encontrar uma solução genial, mesmo sem renas (mas com o seu cão Max). E lá se pôs ele em direcção à aldeia Tal mascarado de Pai Natal e cheio de espírito de contradição.

Mas como todos sabemos, a alegria e o amor sempre sobrevivem e encontram maneira de fazer maior o coração de todos os viventes… Mesmo o do Grincho.

Quem não se enternece com as amoráveis figurinhas com que o Dr. Seuss descreve os deliciosos cidadãos da Vila Tal; com a cara aflita do cão Max metamorfizado em rena; com, afinal, o coração grande descoberto por Grincho?

Longa vida, divertida e carinhosa, a todos os leitores do Dr. Seuss (e a quem me ofereceu este livro delicioso).


jef, dezembro 2024

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Sobre o filme «Tudo o Que Imaginamos Como Luz» de Payal Kapadia, 2024



 
















Bombaim surge como o imenso cenário, belo e mutante, imparável. Personagem principal. Sobre ele, as vozes soam e contam-nos, por vezes rindo, por que é que a cidade é irresistível apesar de lhes roubar o tempo. Só depois, ante a ribalta, a cortina se abre e o palco surge. Estamos num hospital.

Três personagens femininas, enfermeiras e auxiliar, representam a humanidade – Prabha (Kani Kusruti), Anu (Divya Prabha) e Parvaty (Chhaya Kadam). Elas encerram toda a bondade e toda a resignação. Também a alegria, o amor e a revolta. Principalmente, toda a capacidade redentora do perdão.

Há muito que não se via um filme que sintetizasse tudo o que a memória do cinema parece representar, desde sempre – o melodrama, o humor, a consciência social e política, a beleza estética, a fotogenia, a emoção. Enfim, o eterno encantamento cinematográfico.

A câmara segue bem de perto as personagens, cola-se-lhes à pele de tal modo que nós não vemos mas sentimos cada pedaço ou cada alegria ou angústia ou cada revolta que reside, instante a instante, no seu interior daquelas figuras. (Bombaim continua no centro.)

Bombaim é o centro até ser deslocado para um litoral esquecido, silencioso, livre e lento. Inicia-se aí o segundo acto onde o esplendoroso argumento se desenvolve e nos remete para a conclusão de uma ternura invulgar.

No final, muito ao longe, numa praia nocturna e iluminada pelo colorido de algumas lâmpadas, alguém dança ao som dos auscultadores.

Comovi-me e sob a comoção não pude deixar de recordar um dos maiores filmes do mundo: «A Grande Cidade» (Mahanagar) (1963). O universo sentido pela câmara severa e serena de de Satyajit Ray.

Atenção, muita atenção, a toda a banda sonora, ou seja ao pormenor sonoro do princípio ao fim do filme.


jef, dezembro 2024

«Tudo o Que Imaginamos Como Luz» (All We Imagine as Light) de Payal Kapadia. Com Kani Kusruti, Divya Prabha, Chhaya Kadam, Hridhu Haroon, Azees Nedumangad, Anand Sami, Lovleen Mishra, Madhu Raja, Shweta Prajapati, Tintumol Joseph, Ardra K.S., Sisira Anil CK, Aparna Ram, Kashish Singh, Nikhil Mathew, Bipin Nadkarni, Snehalata Siddarth Tagde, Saee Abhay Limaye. Argumento: Payal Kapadia. Produção: Thomas Hakim, Julien Graff. Fotografia: Ranabir Das. Música: Dhritiman Das Topshe. Guarda-roupa: Maxima Basu. Índia / França / Países Baixos / Itália, 2024, Cores, 115 min.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Sobre o filme «Sempre» de Steven Spielberg, 1989





























Um dos melhores filmes de Spielberg.

A última e maravilhosa aparição no cinema de Audrey Hepburn, como o anjo Hap que dirige o desígnio de Pete (Richard Dreyfuss) no seu regresso espiritual à Terra.

O extraordinário e imparável diálogo entre Pete, a sua outra metade espiritual Dorinda (Holly Hunter) e o seu alter-ego na equipa de bombeiros aviadores no combate aos incêndios florestais Al (John Goodman). Três actores geniais que impõem a comédia ao cerne comovente de um dos melhores e clássicos melodramas românticos realizados por Hollywood.

O confronto emocional, amoroso ou enciumado, entre o irreverente, destemido e alegre Pete e o recém-chegado piloto, alto, bem-parecido mas tímido e desastrado, Ted (Brad Johnson).

A fabulosa transposição do argumento original passado na Segunda Grande Guerra de «Um Certo Rapaz» (Victor Fleming, 1943) para o cenário de fogos florestais no estado de Montana.

Um filme onde não existe uma ponta de maldade, apenas comoção, amor e amizade!

Lembro-me de o ter visto pela primeira vez com a minha mãe e os meus sobrinhos quando estreou no cinema São Jorge, em Lisboa, e de, de frequentemente, ele surgir nas nossas conversas como uma das melhores (talvez a última) tardes no cinema por nós partilhada.

«Always» é um filme inesquecível.

 

jef, dezembro 2024

«Sempre» (Always) de Steven Spielberg. Com Richard Dreyfuss, Holly Hunter, Brad Johnson, John Goodman, Audrey Hepburn, Roberts Blossom, Keith David, Ed Van Nuys, Marg Helgenberger, Dale Dye, Brian Haley, James Lashly, Michael Steve Jones, Kim Robillard, Jim Sparkman, Doug McGrath. Argumento: Jerry Belson, Dalton Trumbo, Frederick Hazlitt Brennan adaptado a partir da história «Um Certo Rapaz /A Guy Named Joe» (Victor Fleming, 1943) de Chandler Sprague e David Boehm. Produção: Kathleen Kennedy, Frank Marshall e Steven Spielberg. Fotografia: Mikael Salomon. Música: John Williams, “Smoke Gets in Your Eyes”. Guarda-roupa: Ellen Mirojnick. EUA, 1989, Cores, 122 min.

 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Sobre a peça «Vento Forte» de Jon Fosse. Artistas Unidos / Teatro Variedades, 2024.
























Um homem ausenta-se de casa durante muito tempo. Quando regressa tudo o que encontra parece-lhe estranho. Parece-lhe diferente. Não sabe se o que vê ainda é o mesmo. Talvez esteja mesmo num outro lugar. Afinal, sente que a sua ausência significa um “agora”. O passado já não existe. O futuro também ainda não existe. No entanto, o “agora” é tão fugaz como um piscar de olhos, um pestanejar. Sequer existe. O homem não gosta da frase “num abrir e fechar de olhos”. Depois desse “agora” repentino ele apenas suspeita reconhecer aquela janela, aquela casa… Porém, a mulher ainda é a mesma, seguramente. Contudo, ela está em casa com o namorado, ou marido, muito mais jovem. Afinal, tudo agora é igual ao passado mas está diferente. E o presente passa num abrir e fechar de olhos. Que fazer, então? A janela abre-se sobre o vão de um décimo-quarto andar e o vento sopra forte como que engrossando o ar, tornando-o denso, visível.

Jon Fosse reflecte a ausência como uma repetição sucessiva de palavras, de dúvidas, de regressos impossíveis, mas o texto, nesta encenação, torna-se lento, demasiado abstracto por falta de ritmo, sem evolução, sem climax. E sem sinal de solução, o espectador vai-se perdendo da diegese necessária, fixando a atenção na dinâmica extraordinária que a tela no fundo do cenário revela, plasticamente belíssima, principiando a contar a sua própria história mesmo muitos minutos antes da entrada dos personagens em cena.

 

13 de dezembro de 2024

«Vento Forte». Texto: Jon Fosse. Tradução: Pedro Porto Fernandes. Com Andreia Bento, António Simão e Nuno Gonçalo Rodrigues. Encenação: António Simão. Cenografia e Figurinos: Rita Lopes Alves. Luz: Pedro Domingos. Som: André Pires. Cenário: João Pires. Produção: Artistas Unidos / Teatro Municipal Joaquim Benite. 60 minutos.

Teatro Variedades / Parque Mayer.

De 27 de novembro a 22 de dezembro. Quarta-feira a sábado às 20h00. Domingo às 16h00.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Sobre o livro «Torto Arado» de Itamar Vieira Júnior, Dom Quixote, 2023 (2018)



 

                                                 







   «É de bom tamanho, nem largo, nem fundo                                                            É a parte que te cabe deste latifúndio                                                                      Não é cova grande, é cova medida                                                                        É a terra que querias ver dividida»

 

«Morte e Vida Severina» (João Cabral de Melo Neto,1955). Dez anos depois, a peça  dirigida Roberto Freire para o Teatro da Universidade Católica de São Paulo, a música de Chico Buarque. Também «Os Subterrâneos da Liberdade» (Jorge Amado, 1954). Trazem-me à memória a luta pela liberdade do povo brasileiro.

«Torto Arado» traz igualmente à consciência a luta pela liberdade dos descendentes dos negros escravos quilombolas que, mesmo após a abolição da escravatura em 1888, permaneceram escravizados, presos à fazenda, com trabalho, casa de barro e horta, obrigados ao periódico dízimo em género, mas sem salário. As tradições passadas de boca em boca através dos tempos, como salvação e alegria.

A fazenda de Água Negra. Três gerações. Donana, mãe de Zeca Chapéu Grande, e as suas netas Bibiana e Belonísia. A mãe destas, Salustiana. Entre todos eles, as festas de jarê e a convocação dos encantados e da cultura animista africana. Nem a cova no cemitério da Viração está garantida. Ainda Santa Rita Pescadeira que acaba por perder o corpo-cavalo que a incorpora nas espirituais brincadeiras mas que continua a tudo observar. Sobre todos, o brilho prateado do gume de uma faca secretamente guardada e que conduzi a narrativa. A luta pela manutenção das tradições não é menor do que a luta pela melhoria das condições de vida, de trabalho, de educação. Mas é necessário fugir dali para regressar com novas bagagens. Nova consciência de classe.

«Você sozinho consegue trabalhar esse tarefa que a gente trabalha. Essa terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra é nada.»

Como é literariamente salutar, de um prazer imenso, ler-se sobre uma História que desconhecíamos, sobre a dignidade de um povo sofredor, sobre uma família resistente e lutadora, numa intriga socialmente empenhada, através de um neo-realismo redesenhado, inventivo, também político, ecológico, comovedor.


 jef, dezembro 2024


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Sobre o filme «Wicked» de Jon M. Chu, 2024



 


































O que é mais interessante nesta sequela do Feiticeiro de Oz é o confronto entre a fada boa e a bruxa má ou, segundo a intriga, o choque entre a bruxa boa e a fada tola. E o curioso é que a bruxa verde, Elphaba, é representada pela extraordinária cantora negra (agora verde) Cynthia Erivo, vinda dos palcos da Broadway. Elphaba Thropp, pela sua cor verde, maquilhada sobre a sua verdadeira pele negra, é, por isso mesmo, alvo desde criança de todas as discriminações. A sua aparência causa grande comoção à entrada da universidade de Shiz, onde fora acompanhar a sua irmã de cadeira de rodas, Nessarose (Marissa Bode). Elphaba acaba por ser convidada também a ficar na universidade e a partilhar o quarto com a dita fada tola ou bruxa boa, Galinda, ou Glinda Upland (Ariana Grande). E aqui entra o segundo espanto. A famosa cantora Ariana Grande aceita interpretar uma personagem que parece ser o estereótipo do que nós achamos ser uma jovem barbie americana, atafulhada de sapatos, maquilhagem e vestidos de tule cor-de-rosa, sem qualquer perspicácia ou inteligência, apenas pretendendo catrapiscar o mais belo espécime do género masculino. Não existe maior contraste entre a transparente Glinda e a superior inteligência emocional de Elphaba, forjada por uma vida de preconceitos e xenofobia. Apesar de tudo, os dois símbolos opostos da moralidade e da história de Wicked acabam por se tornar cúmplices e amigas.

Esta é a história contada pela rosada Glinda, em flash-back, quando muito tempo depois, vem pelos ares dentro de uma bola de sabão anunciar, para gáudio do povo de Munchkinland, a morte da Bruxa Má do Oeste.

Depois, é uma sucessão de mal-entendidos, suspeitas e dissimulações, reviravoltas na intriga, quando Oscar Diggs, o Feiticeiro de Oz (Jeff Goldblum) e a directora da universidade Madame Morrible (Michelle Yeoh) são confrontados com o pouco poder que detêm face à magnitude do de Elphaba. Jeff Goldblum e Madame Morrible são muito especiais nessa espécie de comediantes maléficos, penteados de modo extraordinário e com um guarda-roupa inesquecível. Aliás no filme todo o guarda-roupa, os verdadeiros e físicos cenários, a biblioteca rotativa, o cenário de brincar que representa a futura cidade arquitectada pelo Feiticeiro, o comboio que faz a ligação entre a Terra de Oz e Munchkinland e, acima de tudo, o incrível espaço mala-closet cor-de-rosa onde coabitam Glinda e Elphaba, tudo é construído cenograficamente.

Em «Wicked», regresso a uma época muitos distante da minha grata memória infantil dos filmes musicais («My Fair Lady», «Mary Poppins», «Hello Dolly», «Oliver» ou «Chitty Chitty Bang Bang») onde o guarda-roupa, os cenários, as danças, a música eram tão verdadeiramente falsos como no palco de um teatro real e não, como na maioria dos filmes-fantasia contemporâneos, em que o omnipresente digital e a inteligência artificial transformam em falsidade toda a verdade dramática do cinema.

Com «Wicked» entramos numa nova fase do filme musical – os actores-figurantes são brancos, negros ou asiáticos, gordos ou magros, efeminados sedutores ou seduzidos, grandes ou pequenos, não importa. Tudo conflui para demonstrar como é intolerável a rejeição que sofre a poderosa, sagaz e sensível Bruxa Má de Oeste, Elphaba. Seja ela verde ou preta.

Aguardemos em boa ansiedade a parte II da história da bruxa verde e da fada tola.


jef, dezembro 2024

«Wicked» (Wicked: Part I) de Jon M. Chu. Com Cynthia Erivo, Ariana Grande, Jeff Goldblum, Michelle Yeoh, Jonathan Bailey, Ethan Slater, Marissa Bode, Peter Dinklage, Andy Nyman, Courtney Mae-Briggs, Bowen Yang, Bronwyn James, Aaron Teoh Guan Ti, Shaun Prendergast, Keala Settle, Stephen Schwartz, Idina Menzel, Kristin Chenoweth, Sharon D. Clarke, Jenna Boyd, Colin Michael Carmichael. Argumento: Winnie Holzman e Dana Fox segundo o romance de Gregory Maguire e o musical de Winnie Holzman. Produção: David Stone. Fotografia: Alice Brooks. Música: John Powell e Stephen Schwartz. Guarda-roupa: Paul Tazewell. Cenografia: Lee Sandales. EUA, 2024, Cores, 160 min.

 


quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Sobre o filme «O Quarto ao Lado» de Pedro Almodóvar, 2024

 


















Parece ser o filme-corolário para Pedro Almodóvar, uma espécie de passo em frente no melodrama, depois de tantos outros. Principalmente depois de “Tudo sobre a Minha Mãe” (1999) ou “Fala com Ela” (2002). Um filme inevitável para um realizador esteta e inquieto, diria mesmo, um realizador aflito. As portas de Hollywood abrem-se para as suas dúvidas primordiais: a morte, a religião, a sexualidade. Acima de tudo, o dramatismo pungente do afecto no interior de um mundo adverso, arriscado, à beira do abismo.

Pedro Almodóvar não perde a oportunidade. Também não perde o ensejo de ter Tilda Swinton e Julianne Moore como sublimes peças cúmplices a darem voz e intensidade ao drama da morte consentida e ansiada. É impossível não recordar o rigor estético de um outro melodrama com Julianne Moore: «Longe do Paraíso» (Todd Haynes, 2002). Ambos e recordar a elipse teatral dos filmes de Douglas Sirk. A música conclusiva de Alberto Iglesias, como naquele, a de Elmer Bernstein.

Mas os tempos mudaram, o mundo de hoje chega com novas tragédias, e Pedro Almodóvar não consegue colocar de parte os pesadelos que o assolam. Tem urgência em situá-los a todos, mesmo que surjam no filme um pouco como anexos panfletários à narrativa principal. Não importa. Estão lá, para confrontar o mundo (e a América), já que tem a ocasião de os mostrar de modo planetário!

E revela tudo através daquelas soberbas actrizes, singelas, misteriosas, elementares, situadas dentro de decores e planos que, uma vez mais, deixam a vontade no espectador de os olhar em contínuo como acontece nas evocadas pinturas cenográficas de Edward Hopper ou Andrew Wyeth.

Sem abdicar de qualquer dos seus princípios, Pedro Almodóvar não perde a ocasião de nos confrontar com o seu mundo. Também não perde agora a oportunidade de expor o seu abecedário estético, cromático, político e emocional à fragilidade de um planeta em ruptura.

A rever.


jef, dezembro 2024

«O Quarto ao Lado» (The Room Next Door) de Pedro Almodóvar. Com Tilda Swinton, Julianne Moore, John Turturro, Alessandro Nivola, Juan Diego Botto, Raúl Arévalo, Victoria Luengo, Alex Høgh Andersen, Esther McGregor, Alvise Rigo, Melina Matthews, Sarah Demeestere, Anh Duong, Bobbi Salvör Menuez, Annika Wahlsten, Shane Woodward, Paolo Luka Noé, Cristina Kovani, Nya Bowman. Argumento: Pedro Almodóvar segundo o romance de Sigrid Nunez. Produção: Agustín Almodóvar, Esther García. Fotografia: Eduard Grau. Música: Alberto Iglesias. Guarda-roupa: Bina Daigeler. Cenografia: Kendall Anderson, Carlota Casado, Iker Elias. Espanha, 2024, Cores, 107 min.