O
que é mais interessante nesta sequela do Feiticeiro de Oz é o confronto entre a
fada boa e a bruxa má ou, segundo a intriga, o choque entre a bruxa boa e a
fada tola. E o curioso é que a bruxa verde, Elphaba, é representada pela extraordinária
cantora negra (agora verde) Cynthia Erivo, vinda dos palcos da
Broadway. Elphaba Thropp, pela sua cor verde, maquilhada sobre a sua verdadeira
pele negra, é, por isso mesmo, alvo desde criança de todas as discriminações. A
sua aparência causa grande comoção à entrada da universidade de
Shiz, onde fora acompanhar a sua irmã de cadeira de rodas, Nessarose (Marissa
Bode). Elphaba acaba por ser convidada também a ficar na universidade e a
partilhar o quarto com a dita fada tola ou bruxa boa, Galinda, ou Glinda Upland
(Ariana Grande). E aqui entra o segundo espanto. A famosa cantora Ariana Grande
aceita interpretar uma personagem que parece ser o estereótipo do que nós
achamos ser uma jovem barbie americana, atafulhada de sapatos, maquilhagem e
vestidos de tule cor-de-rosa, sem qualquer perspicácia ou inteligência, apenas
pretendendo catrapiscar o mais belo espécime do género masculino. Não existe maior
contraste entre a transparente Glinda e a superior inteligência emocional de Elphaba, forjada
por uma vida de preconceitos e xenofobia. Apesar de tudo, os dois símbolos opostos da
moralidade e da história de Wicked acabam por se tornar cúmplices e amigas.
Esta é a história contada pela rosada Glinda, em flash-back, quando muito tempo
depois, vem pelos ares dentro de uma bola de sabão anunciar, para gáudio do povo
de Munchkinland, a morte da Bruxa Má do Oeste.
Depois, é uma sucessão de mal-entendidos, suspeitas e dissimulações, reviravoltas na intriga, quando Oscar Diggs, o Feiticeiro de Oz (Jeff Goldblum) e a directora da universidade Madame Morrible (Michelle Yeoh) são confrontados com o pouco poder que detêm face à magnitude do de Elphaba. Jeff Goldblum e Madame Morrible são muito especiais nessa espécie de comediantes maléficos, penteados de modo extraordinário e com um guarda-roupa inesquecível. Aliás no filme todo o guarda-roupa, os verdadeiros e físicos cenários, a biblioteca rotativa, o cenário de brincar que representa a futura cidade arquitectada pelo Feiticeiro, o comboio que faz a ligação entre a Terra de Oz e Munchkinland e, acima de tudo, o incrível espaço mala-closet cor-de-rosa onde coabitam Glinda e Elphaba, tudo é construído cenograficamente.
Em «Wicked», regresso a uma época muitos distante
da minha grata memória infantil dos filmes musicais («My Fair Lady», «Mary
Poppins», «Hello Dolly», «Oliver» ou «Chitty Chitty Bang Bang») onde o
guarda-roupa, os cenários, as danças, a música eram tão verdadeiramente falsos
como no palco de um teatro real e não, como na maioria dos filmes-fantasia contemporâneos, em
que o omnipresente digital e a inteligência artificial transformam em falsidade toda a verdade dramática do cinema.
Com
«Wicked» entramos numa nova fase do filme musical – os actores-figurantes são brancos,
negros ou asiáticos, gordos ou magros, efeminados sedutores ou seduzidos,
grandes ou pequenos, não importa. Tudo conflui para demonstrar como é
intolerável a rejeição que sofre a poderosa, sagaz e sensível Bruxa Má de Oeste, Elphaba. Seja
ela verde ou preta.
Aguardemos
em boa ansiedade a parte II da história da bruxa verde e da fada tola.
jef,
dezembro 2024
«Wicked»
(Wicked: Part I) de Jon M. Chu. Com Cynthia Erivo, Ariana Grande, Jeff
Goldblum, Michelle Yeoh, Jonathan Bailey, Ethan Slater, Marissa Bode, Peter
Dinklage, Andy Nyman, Courtney Mae-Briggs, Bowen Yang, Bronwyn James, Aaron
Teoh Guan Ti, Shaun Prendergast, Keala Settle, Stephen Schwartz, Idina Menzel,
Kristin Chenoweth, Sharon D. Clarke, Jenna Boyd, Colin Michael Carmichael.
Argumento: Winnie Holzman e Dana Fox segundo o romance de Gregory Maguire e o
musical de Winnie Holzman. Produção: David Stone. Fotografia: Alice Brooks.
Música: John Powell e Stephen Schwartz. Guarda-roupa: Paul Tazewell.
Cenografia: Lee Sandales. EUA, 2024, Cores, 160 min.
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