Não
é apenas por aqui estar contido, no seu centro, um dos fados mais condoídos e
extravagantes, dos mais belos fados-resistência alguma vez compostos (e
cantados por Amália) – “Abandono” por David Mourão-Ferreira e Alain Oulman.
Existe
aqui uma simetria única que, parece-me, não ter sido propositada, antes
movida pela consonância muito particular entre o canto fadista de Camané, na sua voz
agora mais madura, mais timbrada, vibrante e sentida, e o piano de Mário
Laginha que coloca a composição e o acompanhamento musicais como modo primeiro,
revelando as canções num equilíbrio inusitado entre a fuga corrida de um antigo
barroco e o improviso dedilhado tão justo ao jazz contemporâneo.
E
a simetria mais natural, em torno do eixo que é esse “Abandono”, compõe-se de
duas composições maravilhosas de José Mário Branco para os poemas únicos e
satíricos de Manuela de Freitas, a exigir dos dois músicos interpretações quase
teatrais – “Ela Tinha Uma Amiga” e “A Guerra das Rosas”; duas composições de
Alain Oulman para as palavras de Luís Vaz de Camões: “Com Que Voz” e “Amor É Fogo
Que Arde Sem se Ver”; dois fados clássicos de Alfredo Marceneiro: “Dança de
Volta” e “A Casa da Mariquinhas”; mais dois fados com as palavras de Fernando
Pessoa: “Quadras” e “Aqui Está-se Sossegado”; duas fugas sem poema compostas
para piano por Mário Laginha: “Rua da Fé” e “Fado Barroco”; e dois fados com
música de Mário Laginha para dois poetas contemporâneos que, ao escreverem para
canções, transportam o fado até ao nosso futuro – Maria do Rosário Pedreira (“Rua das Sardinheiras”)
e João Monge (“Se Amanhã Fosse Domingo”).
Um disco a guardar, talvez, na estante do ‘Fado’ ou, melhor, no de ‘Piano/Lied’… não sei bem… Vou ouvir de novo.
jef,
dezembro 2024
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