Este filme passava muitas vezes na televisão. E eu, em miúdo, sabia que era musical e tentava gostar. Mas não gostava. Voltava sempre à «Mary Poppins» (Robert Stevenson, 1964), à «My Fair Lady» (George Cukor, 1964) ou ao «Hello Dolly» (Gene Kelly, 1969). Não compreendia por que estavam sempre a cantar, mesmo na garagem. Achava aborrecido estarem todos tristes apesar do amor que todos sentiam por todos. Não havia propriamente canções, nem alegria. Contudo, nunca o esqueci, acho que por causa do colorido (filmado a 35 mm, sei-o agora).
Acabo
de o rever em cópia digitalmente restaurada e percebo a razão de, anteriormente,
não gostar e me ter apaixonado agora por ele.
É
um dos mais belos filmes políticos sobre as circunstâncias trágicas e
irrecuperáveis do destino.
Todos
ali, sempre cantando, nem árias nem recitativos como na ópera barroca ou em
alternância lírica como nas de épocas mais românticas, descrevem-nos, passo a
passo, a razão pela qual, na vida, a felicidade é construída sobre os escombros
de uma felicidade amada, passada mas extinta, e que devem ser evitados por uma
simples questão – sobrevivência. Todos se amam e alegram tristemente, se
resignam a um futuro menos mau, apesar da guerra da Argélia, apesar da ausência
forçada, apesar das dívidas que fazem empenhar joias e procurar casamentos economicamente
mais vantajosos, apesar das fracturas entre classes sociais.
E
é nesse lado de tragédia compensada pela resignação que o melodrama se
constrói, forte e urgente, sem cedências nem à tragédia da ópera romântica nem
ao aligeiramento subtil das de épocas barrocas.
Porém,
tudo é operático, dramático, teatral. O movimento inflexível da câmara, as
cores ostensivamente alegres, quase extravagantes, fluindo na mudança dos
cenários, o guarda-roupa, a expressividade fulcral dos actores no interior de
um filme musical que apesar de trágico mantém a ténue postura de um final, por
hipótese, ainda feliz.
A
cena final é de uma precisão e rigor emocional impressionantes, colocando o
destino do melodrama no seu lugar e recordando tristemente a cena onde
Geneviève (Catherine Deneuve) e Guy (Nino Castelnuovo), acompanhados da sua
bicicleta, fazem a jura de amor eterno, seguindo o cenário sem andar,
deslizando suspensos numa nuvem de afecto.
Enfim, um musical belíssimo e absolutamente adorado mas para os maiores de idade que já entendem como sobreviver em infeliz felicidade.
Um filme musical americano mas à francesa. Ah, Nouvelle Vague!
jef,
dezembro 2024
«Os
Chapéus de Chuva de Cherburgo» (Les Parapluies de Cherbourg) de Jacques Demy. Com
Catherine Deneuve, Nino Castelnuovo, Anne Vernon, Marc Michel, Ellen Farner, Mireille
Perrey, Jean Champion, Pierre Caden, Jean-Pierre Dorat, Bernard Fradet, Michel
Benoist, Philippe Dumat, Dorothée Blanck, Jane Carat, Harald Wolff, Danielle
Licari (voz de Geneviève), José Bartel (voz de Guy), Christiane
Legrand (voz de Madame Emery), Georges Blaness (voz de Roland), Claudine
Meunier (voz de Madeleine), Claire Leclerc (voz de Tia
Élise). Argumento: Jacques Demy. Produção:
Mag
Bodard. Fotografia: Jean Rabier. Música: Michel Legrand. Guarda-roupa: Jacqueline
Moreau. Cenografia: Bernard Evein. França / Alemanha, 1964, Cores, 91 min.
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