quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Sobre o filme «Ainda Estou Aqui» de Walter Salles, 2024



 
















Talvez o filme seja muito mais importante do que parece, mais importante do que a polémica que parece existir sobre a origem de classe de Walter Salles (ou de Rubens Paiva – pai). Também os burgueses se revoltaram contar as ditaduras, pela liberdade e pela democracia. E todos têm o direito de construírem a sua arte com base no que reside no seu passado e no seu coração, sem dogmas ou condescendências. Pelo que consta, o conde Luchino Visconti não teve pudor em inaugurar um certo cinema “político” com «Obsessão» (1943), «A Terra Treme» (1948) ou «Belíssima» (1951). E tendo neste momento  Hollywood inaugurado um novo sistema para a nomeação dos filmes candidatos, talvez seja hora de aproveitar a publicidade e a mega distribuição para o cinema mundial repor alguma inteligência “social” perante a época perigosamente imbecil que estamos a viver.

Burguesia à parte, existe um cuidado particular em separar as águas. Por um lado a alegria, despreocupada, colorida e carioca provocada pela habitual câmara tão familiar super 8, para depois entrar no cinzento-negro opressivo da ausência, da vigilância policial, da falta de respostas, das masmorras prisão política, no fundo da tristeza pela perseguição.

Para além da estética, do guarda-roupa, da banda-sonora, dos decores e cenários, das obras de arte expostas e da luminosidade, um dos fulcros definitivos do filme. Sem contar com a assombrosa história de resistência e perseverança da personagem Eunice Paiva (Fernanda Torres) no centro da odiosa ditadura militar brasileira. Sem contar com o papel cativante de Selton Mello encarnando o perseguido Rubens Paiva. Sem contar com a representação de todas aquelas crianças.

Sem contar, ainda, com Fernanda Torres e a brevíssima mas colossal cena final de Fernanda Montenegro em frente do ecrã da televisão.

O cinema é feito principalmente de beleza e comoção. 

Também e não tanto de denúncia, muito mais de consciência.

Que o mundo volte a entrar no cinema para se rever a si próprio e conseguir talvez fazer mea culpa.


jef, janeiro 2025

«Ainda Estou Aqui» de Walter Salles. Com Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello, Valentina Herszage, Maria Manoella, Bárbara Luz, Gabriela Carneiro da Cunha, Luiza Kosovski, Marjorie Estiano, Guilherme Silveira, Antonio Saboia, Cora Mora, Olívia Torres, Pri Helena, Humberto Carrão, Charles Fricks, Maeve Jinkings, Luana Nastas, Isadora Ruppert. Argumento: Murilo Hauser e Heitor Lorega, segundo o romance de Marcelo Rubens Paiva. Produção: Maria Carlota Bruno, Martine de Clermont-Tonnerre, Rodrigo Teixeira. Fotografia: Adrian Teijido. Música: Warren Ellis. Guarda-roupa: Cláudia Kopke. Brasil / França, 2024, Cores, 136 min.

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Sobre a peça «Tudo A Que Se Chama Nada» de Nathalie Sarraute. Teatro São Luiz, 2025






























Nada de mais real sobre tudo o que se passa hoje sobre o planeta Terra. Um silêncio talvez inadequado, uma expressão mal ouvida, uma entoação mais pronunciada, uma palavra mal entendida. No fundo, Nathalie Sarraute escreve tudo sobre nada e ainda lhe coloca por cima o véu subtil do humor, como se parafraseasse o grande Rui Cardoso Martins: “o humor não aligeira, aprofunda”.

Dois amigos de longa data encontram-se por acaso e sentem que têm alguma coisa a esclarecer. Um deles não sabe bem como, o outro não sabe bem porquê. Como se existisse uma substância indefinida e silenciosa a pairar sobre aquela relação. Alguma centelha de superioridade manifestada numa recomendação de emprego, algum toque de condescendência ou soberba quando se exibe as palavras de Verlaine: “A vida está ali, simples e tranquila!”.

Um homem pensa que uma colaboradora terá ouvido certa conversa que ele terá tido com um amigo, fazendo um esgar de incompreensão. Ou talvez, de desdém. Ora aí está um problema grave que tem de ser resolvido. Que necessidade terá o outro de fazer um juízo diferente, ou o direito de formular uma simples ideia diversa sobre a ideia que ele exprimiu? Intolerância, tolerância? É isso que ele terá de esclarecer. Por ventura, com um duplo, ou seja, consigo próprio. Assim, ficamos confortáveis no nosso cantinho, sem contraditório. Também assim ficaremos a falar para as paredes. Sozinhos.

Nathalie Sarraute é de uma subtileza atroz que a encenação de Carla Bolita expõe de modo cru e fundamental ao juntar as duas peças em questão naquele cenário despojado da inauguração de uma possível exposição de pintura. Aliás, aqueles diálogos quase não precisariam de cenário. Apenas necessitam do abstracto significante do vocábulo que está encerrado no levantar de uma sobrancelha, num sorriso quase amarelo, numa entoação insinuante. Textos para grandes actores que trabalham sem rede mas com a minúcia quase muda da poesia.

Todo drama da humanidade, toda a comédia em que ela está enterrada numa simples palavra por ouvir. Numa palavra por dizer.

 

26 de janeiro de 2025

«Tudo A Que Se Chama Nada». Texto: uma adaptação de “Por tudo e por nada” e “Aqui está ela” de Nathalie Sarraute. Tradução: Ricardo Marques e Carla Bolito. Encenação: Carla Bolito. Com Álvaro Correia, Anabela Brígida, João Cabral, Marcello Urgeghe. Cenografia: Carlos Bártolo. Figurinos: Ricardo Preto. Desenho de luz: Daniel Worm. Efeito sonoro: Rui Dâmaso. Produção: Lorena Pirro Apoio SPA – Fundo Cultural / Coprodução Estado Zero e Teatro São Luiz. 80 minutos.

Teatro São Luiz.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Sobre o livro «Assim para Nós Haja Perdão» de A. M. Homes, Relógio D’Água, 2014. Tradução de Miguel Serras Pereira.


 









Harold Silver e George Silver são dois irmãos que parecem ter sido separados à nascença. Mas não. Foram separados no final de um Dia de Acção de Graças em família e depois de um beijo ilícito, engordurado pelo molho do perú. Ah, e também após aquele brutal (involuntário?) acidente de viação.

George Silver é um empresário de sucesso na comunicação social, porém violentamente instável, e Harold Silver, um pacato professor universitário, estudioso entusiasta da figura de Richard Milhous Nixon. Mais do que isso, apaixonado e potencial biógrafo de R.M. Nixon.

Mas toda a história centra-se no reservado, quase invisível, e envolvido no tal beijo engordurado, Harold, e na posterior sucessão quase demoníaca de desastres, quase ao estilo paranoico de «Os Desastres de Sofia» da Condessa de Ségur. Contudo, enquanto tudo desaba sobre este em consequência do desvario do irmão, tudo parece querer reorganizar-se a partir da brutalidade dos escombros, em torno de um conjunto de personagens à deriva de um certo desequilíbrio americano. Harold teoriza como Nixon lançou a campanha do Sonho Americano e como ele também o fez descarrilar.

A.M. Homes não tem contemplações. Usa o humor, o sexo, as tradições judaicas, as relações entre pais e filhos, essas ligações enraizadas na sociedade americana para escrever uma comédia ultra-negra, uma saga quase sangrenta, muito veloz e sem capítulos, suportada por diálogos imparáveis e hilariantes, quantas vezes confrangedores.

Uma sociedade americana dividida ao meio, onde a metade “Harold” tenta manter de pé e a todo custo o que a outra metade vai destruindo. Uma America Great Yet contra a outra America Great Again.

Um livro que dez anos depois, e após o fatídico 20 de Janeiro, parece adquirir um fôlego que gostaríamos que fosse apenas ficcionado.

Uma nota de grande desalento perante uma difícil tradução bastante competente, contudo estragada por uma insuportável revisão de texto (Helder Guégués) que, página sim página não, arranca-nos da concentração da leitura por um gigantesco bando de gralhas, omissões ou tropeções ortográficos. Nada a que não estamos nós já habituados no apressado e imparável fogo cruzado das edições de Relógio D’Água. Uma triste tradição.


jef, janeiro 2025

 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Sobre o filme «As Múmias do Faraó - As Aventuras de Adèle Blanc-Sec» de Luc Besson, 2010

























«Adèle Blanc-Sec! Comme le vin.» Assim se apresenta a heroína para registo. Essa indiana jones viajada, destemida, voluntariosa e aventureira, ainda romântica, envolta em Arte Nova parisiense, cirandando por um misterioso mas auspicioso novo século XX. Do Egipto ao Museu de História Natural de Paris. Adèle (Louise Bourgoin) tem de salvar a irmã gémea, em pausa mortal após um insólito acidente num court de ténis. Só a múmia de um físico ou médico de faraó a pode ajudar. E só o paleontólogo Espérandieu (Louise Bourgoin) o fará reviver mas este está a braços com o nascimento extemporâneo de um Pterodáctilo esfomeado que acaba por adoptar um fox terrier preto… Para complicar, ainda temos pelo meio o maléfico Dieuleveult (Mathieu Amalric) e o ensonado inspector Caponi (Gilles Lellouche) que deve averiguar o caso assaz difícil em apenas 24 horas.

Embora se possa perder a magia escondida nos traços da banda desenhada de Jacques Tardi, ainda assim, Luc Besson compõe uma aventura divertida, infantil, rápida, despretensiosa, cujas personagens masculinas são copiadas, sem descrédito, da tradição de onde saíram aquelas encarnadas por Fernandel, Michel Simon, Bourvil ou Jacques Tati.

Uma excelente tarde cinema como acontecia quando éramos miúdos.


jef, janeiro 2025

«As Múmias do Faraó - As Aventuras de Adèle Blanc-Sec» (Les aventures extraordinaires d'Adèle Blanc-Sec) de Luc Besson. Com Adèle Blanc-Sec, Mathieu Amalric, Gilles Lellouche, Jean-Paul Rouve, Jacky Nercessian, Philippe Nahon, Nicolas Giraud, Laure de Clermont-Tonnerre, Gérard Chaillou, Serge Bagdassarian, Claire Pérot, François Chattot, Youssef Hajdi, Mohamed Aroussi, Moussa Maaskri, Mostefa Zerguine, Sayed Mohamed, Grégory Ragot, Tonio Descanvelle, Pierre Khorsand, Guillaume Briat, Swann Arlaud, Jean-Louis Barcelona, Max Delor, Cyrille Dobbels, Patrick Chupin. Argumento: Luc Besson segundo a banda desenhada criada por Jacques Tardi. Produção: Virginie Besson-Silla. Fotografia: Thierry Arbogast. Música: Éric Serra. Guarda-roupa: Olivier Bériot. França, 2010, Cores, 107 min.

 

Sobre o filme «A Pequena Crónica de Anna Magdalena Bach» de de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1982



 






























Para entender o método “austero” ou “minimalista” da filmagem de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet talvez seja bom concentrarmo-nos no filme de Pedro Costa «Onde Jaz o Teu Sorriso?» (2001) que observa o fotograma exacto que estabelece a diferença de expressão da personagem sentada no comboio – o fotograma que retém o início ou o fim de um suposto sorriso. Os realizadores montam «Sicilia!» (1999) e discutem. Logo se entende que esse “rigor” nada tem de “austero” ou “minimalista”. Apenas tem a ver com um sentido global e ético a que podemos chamar “estética absoluta”.

Ora, para entender a capacidade universal e infinita da estética de Johann Sebastian Bach podemos ler o livro «Bach» de Pedro Eiras (2014). Pelos diversos textos encadeados nas partituras BWV olhamos a influência emocional que o compositor, professor, músico alemão exerce na sociedade até aos dias de hoje.

O filme rescreve a música de Bach através das dificuldades financeiras, de saúde e de reconhecimento de uma família a braços com uma sociedade que transitava do velho suporte económico da arte por mecenas aristocráticos da realeza e da burguesia emergente para um romantismo introspectivo e, de certo modo, libertário mas solitário. O filme é a música de Bach corporizada por Gustav Leonhardt e pontuada pelos “recitativos” em voz off de Anna Magdalena Bach (Christiane Lang) que nos vai contando a história dessa espécie de cerco pelo não sustento e pela falta de reconhecimento. Recitativos apressados, angustiados, quase melodramáticos.

Tudo o resto é a música de Bach, filmada numa espécie de campo fechado, espaço fechado, quase monástico sobre os músicos, sobre Anna Magdalena, onde a câmara, se não está fixa sobre a cena, apenas se afasta ou aproxima de modo imperceptível, quase a desculpar-se por ali se encontrar. Todo o som ouvido é aquele que a câmara acompanhou no momento.

Do outro espaço, o aberto, apenas existe o mar que se move, silencioso, por segundos, ou a atmosfera onde as nuvens e as aves vão lentamente fugindo.

Esta obra é uma dádiva musical. Desse espaço universal, fica o olhar sentido de Anna Magdalena. Fica, por fim, o olha cego Johann Sebastian Bach.

 

jef, janeiro 2025

«A Pequena Crónica de Anna Magdalena Bach» (Chronik der Anna Magdalena Bach) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Com Gustav Leonhardt, Christiane Lang, Paolo Carlini, Ernst Castelli, Hans-Peter Boye, Joachim Wolff, Rainer Kirchner, Eckart Bruntjen, Walter Peters, Kathrien Leonhard, Anja Fahrmann, Katja Drewanz, Bob van Asperen, Andreas Pangritz, Bernd Weikl, Wolfgang Schöne, Karl-Heinz Lampe, Bernhard Wehle, Christa Degler, Karl-Heinz Klein, Nikolaus Harnoncourt, Hellmuth Costard. Argumento e Montagem: Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Produção: Gian Vittorio Baldi, Danièle Huillet, Franz Seitz, Jean-Marie Straub. Fotografia: Ugo Piccone. Música: Johann Sebastian Bach. Guarda-roupa: Vera Poggioni. Alemanha, 1968, P/B, 95 min.

 

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Sobre o filme «Um Quarto na Cidade» de Jacques Demy, 1982



 





























Como uma ópera dramática, romântica, seguindo a ondulação do texto sempre cantado, sempre atrás da previsível tragédia. Ninguém já é dono de nada. Todos estão em desequilíbrio. Guilbaud (Richard Berry), o operário metalúrgico está em greve e desempregado, não ama Violette (Fabienne Guyon) mas ela está muito feliz. Edith (Dominique Sanda) entra em ruptura total com o marido Edmond (Michel Piccoli), acusando-o de impotência e consequente prepotência. Edith prostitui-se por vingança e uma cartomante determina que um dia breve ela se apaixonará loucamente por um metalúrgico.

Tudo se passa entre duas ruas, duas casas, um bar, a loja de consertod de televisores de Edmond, o pátio onde os piquetes de greve fazem vigilância. Cores operáticas dos cenários e do guarda-roupa a contrastar com os temas musicais quase obscuros, quase melancólicos. No centro da história, e como anti-clímax permanente, situa-se a casa onde vive Margot Langlois (Danielle Darrieux), mãe de Edith, viúva diletante, entediada, quantas vezes risível, de copo de branco na mão, burguesa a sonhar com a tranquila vida passada, quando a burguesia era verdadeira e não “pequena”, quando o odioso marido e o pobre filho eram vivos, quando podia abrir a janela e respirar. O oposto daqueles dias (de 1955), em que o ar andava empestado do gás lacrimogéneo que a polícia lançava sobre os grevistas. Uma época em que não precisava de alugar um quarto. E logo a um operário metalúrgico. Precisamente a Guilbaud!

Como na ópera Verdiana toda a intriga e a comoção são levadas através dos desencontros instantâneos, da cena e da contracena, de silêncios e omissões, pelos desacertos emocionais, pela impossibilidade das relações. Pela ordem maior do palco e do teatro!

Uma ópera romântica, desabrida, minuciosa, inverosímil para a época em que foi realizada. Uma ópera belíssima e inclassificável.


jef, janeiro 2025

«Um Quarto na Cidade» (Une Chambre en Ville) de Jacques Demy. Com Dominique Sanda, Richard Berry, Danielle Darrieux, Michel Piccoli, Fabienne Guyon, Anna Gaylor, Jean-François Stévenin, Jean-Louis Rolland, Marie-France Roussel, Georges Blaness, Yann Dedet, Nicolas Hossein, Gil Warga, Antoine Mikola, Marie-Pierre Feuillard, Monique Créteur, Patrick Joly. Argumento: Jacques Demy. Produção: Christine Gouze-Rénal. Fotografia: Jean Penzer. Música: Michel Colombier. Coreografia: Norman Maen. Guarda-roupa: Rosalie Varda. França, 1982, Cores, 88 min.

 

domingo, 12 de janeiro de 2025

Sobre o disco «Lives Outgrown» de Beth Gibbons, Domino Recording 2024










Mais de duas décadas depois de «Out of Season» (2002, com Paul Webb), Beth Gibbons deixa-nos no colo esta série de canções quase sussurradas, como se fossem dez canções-poemas sinfónicos para embalar a tristeza e aceitá-la como trampolim, único modo de olhar o passado para buscar o futuro.

Canções quase antigas, muito simples ou muito complexas, onde a percussão sem rodriguinhos, quase bruta, as orquestrações sem arpejos e o modo acústico das guitarras fazem como que o apelo ao regresso do ancestral folclórico. Existe mesmo um lado demoníaco na dissonância improvisada que se une aos coros quase infantis e arranjos harmónicos das cordas e sopros.

E o pesadelo da ausência de uma criança pelo início da noite “Tell me who you are today” acaba por ser superado com a chegada do crepúsculo da manhã. Afinal, “Whispering Love”.

Como se June Tabor, Joni Mitchell e Margo Timmins estivessem ali a apoiar moralmente e Virginia Astley, Haley Heynderickx e Liz Harris pairassem perto, pelo espaço.


jef, janeiro 2025

Sobre o filme «A História de Souleymane» de Boris Lojkine, 2024



 













Um filme sem música mas onde a banda sonora é um dos primeiros elementos. A cidade de Paris em estado de atroz ansiedade, deixando todo o seu ruído urbano a envolver a bicicleta desenfreada de Souleymane Sangaré (Abou Sangare), distribuidor de refeições ao domicílio mas com uma conta telefónica profissional alugada a um intermediário. Não pára um segundo porque não pode parar um segundo sequer, há contas a pagar, família a ajudar, e o sistema económico ocidental assente nesta assumida escravatura. A exploração do homem pelo homem é legal e, ainda por cima, aplaudida. Ele é guineense e tenta a todo custo o visto de permanência em França através de outro esquema intermediário que envolve a história falsa de um refugiado político. Mas Souleymane nada sabe da política do seu país.

O filme é um imenso flashback, iniciando-se com um silêncio e terminando, de novo, com uma sequência no serviço de refugiados francês. A última e magistral sequência de contenção e tensão reside num diálogo entrecortado de silêncios entre Souleymane e a agente inquiridora dos serviços. Souleymane não resiste à mentira que mal preparou, a agente não resiste à verdade que lhe é exposta. Todo o filme está incluído e concluído nesses momentos de um dramatismo brutal, de uma realidade insuportável. Contudo de uma fotogenia teatral e humanismo imensos.

É neste dramatismo, encarnado de alma, corpo, expressão e coração por Abou Sangare, que reside o valor ancestral da ficção (do teatro), esse pathos milenar, único modo de nós compreendemos dentro de nós uma realidade tão hostil mas que é precisamente aquela onde estamos mergulhados.

Não os encostem à parede!


jef, janeiro 2025

«A História de Souleymane» (L’Histoire de Souleymane) de Boris Lojkine. Com Abou Sangare, Nina Meurisse, Emmanuel Yovanie, Younoussa Diallo, Keita Diallo, Ghislain Mahan, Mamadou Barry, Yaya Diallo, Karim Bouziane, Amadou Bah, Sory Binta Barry, Thierno Sadou Barry, Nagnouman Touré, Frédéric Faria, William Cotteaux-Guinard, Roger Bernard, Boris Lojkine. Argumento: Delphine Agut e Boris Lojkine. Produção: Bruno Nahon. Fotografia: Tristan Galand. Guarda-roupa: Marine Peyraud. França, 2024, Cores, 93 min.

 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Sobre o filme «As Donzelas de Rochefort» de Jacques Demy, 1967
































Sob o sol da cidade portuária de Rochefort, tudo é encantador e amorável, todos se enlevam entre as suas canções e as suas danças enquanto aguardam a grande feira de domingo onde certamente todos os amantes irão encontrar o amor desejado, idealizado, abstracto ou desaparecido.

A alegria das cores e dos fatos, das coreografias, da música que nunca abandona a felicidade do reencontro. As referências musicais e aos filmes musicais americanos não plagiam nem sequer chegam a sobrepor-se a estes pois tudo aqui é de uma jovialidade francesa, de um apuro fresco e desabrido – sobre os festivos vestidos com que aparecerão na grande festa Solange (Françoise Dorléac) pergunta à irmã Delphine (Catherine Deneuve): “Tu n’as pas peur  qu’on fasse un peu putes?”. A mãe Yvonne questiona a crime cometido pelo aparentemente pacato senhor Subtil Dutrouz (as Henri Cremieux) de cortar aos pedaços a sua antiga paixão já que, na noite anterior, ele se recusara a cortar o bolo ao jantar. Um jantar onde todos falam a rimar sobre banalidades de modo quase erudito e barroco. Yvonne que não quis casar com o Simon Dame (Michel Piccoli), o Monsieur Dame, para que não ficasse depois a ser conhecida por Madame Dame. Um filme ininterrupto onde devemos seguir alegremente nesse jogo de quase pueril sedução. Tudo está à vista e é deslumbrante sob esse tal sol de Rochefort. Tudo está ali para nos oferecer o mais alegre lugar conquistado. O cinema é isto mesmo.

Filme assombroso onde todos os pormenores convocam à maior parábola da humanidade, talvez a sua maior ficção, que é a busca do Amor e a alegria de a ela pertencer.

Jacques Demy entrega-nos esse legado. Um legado de nos fazer felizes com um dos mais elegantes e, porque não, extravagantes, libertos e libertinos, filmes musicais de todos os tempos.


jef, janeiro 2025

«As Donzelas de Rochefort» (Les Demoiselles de Rochefort) de Jacques Demy. Com Catherine Deneuve, Françoise Dorléac, Danielle Darrieux, Michel Piccoli, Jacques Perrin, René Pascal, George Chakiris, Jacques Riberolles, Grover Dale, Geneviève Thénier, René Bazart, Henri Crémieux, Pamela Hart, Leslie North, Patrick Jeantet, Gene Kelly, Dorothée Blanck, Anne Germain (voz cantada de Catherine Deneuve), Claude Parent (voz cantada de Françoise Dorléac), Donald Burke (voz cantada de Gene Kelly), Georges Blaness (voz cantada de Michel Piccoli), Jacques Revaux (voz cantada de Jacques Perrin). Argumento, diálogos e letras de canções: Jacques Demy. Produção: Mag Bodard, Gilbert de Goldschmidt. Fotografia: Ghislain Cloquet. Música: Michel Legrand. Coreografia: Norman Maen. Guarda-roupa: Marie-Claude Fouquet, Jacqueline Moreau. França, 1967, P/B, 121 min.