segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Sobre o filme «As Donzelas de Rochefort» de Jacques Demy, 1967
































Sob o sol da cidade portuária de Rochefort, tudo é encantador e amorável, todos se enlevam entre as suas canções e as suas danças enquanto aguardam a grande feira de domingo onde certamente todos os amantes irão encontrar o amor desejado, idealizado, abstracto ou desaparecido.

A alegria das cores e dos fatos, das coreografias, da música que nunca abandona a felicidade do reencontro. As referências musicais e aos filmes musicais americanos não plagiam nem sequer chegam a sobrepor-se a estes pois tudo aqui é de uma jovialidade francesa, de um apuro fresco e desabrido – sobre os festivos vestidos com que aparecerão na grande festa Solange (Françoise Dorléac) pergunta à irmã Delphine (Catherine Deneuve): “Tu n’as pas peur  qu’on fasse un peu putes?”. A mãe Yvonne questiona a crime cometido pelo aparentemente pacato senhor Subtil Dutrouz (as Henri Cremieux) de cortar aos pedaços a sua antiga paixão já que, na noite anterior, ele se recusara a cortar o bolo ao jantar. Um jantar onde todos falam a rimar sobre banalidades de modo quase erudito e barroco. Yvonne que não quis casar com o Simon Dame (Michel Piccoli), o Monsieur Dame, para que não ficasse depois a ser conhecida por Madame Dame. Um filme ininterrupto onde devemos seguir alegremente nesse jogo de quase pueril sedução. Tudo está à vista e é deslumbrante sob esse tal sol de Rochefort. Tudo está ali para nos oferecer o mais alegre lugar conquistado. O cinema é isto mesmo.

Filme assombroso onde todos os pormenores convocam à maior parábola da humanidade, talvez a sua maior ficção, que é a busca do Amor e a alegria de a ela pertencer.

Jacques Demy entrega-nos esse legado. Um legado de nos fazer felizes com um dos mais elegantes e, porque não, extravagantes, libertos e libertinos, filmes musicais de todos os tempos.


jef, janeiro 2025

«As Donzelas de Rochefort» (Les Demoiselles de Rochefort) de Jacques Demy. Com Catherine Deneuve, Françoise Dorléac, Danielle Darrieux, Michel Piccoli, Jacques Perrin, René Pascal, George Chakiris, Jacques Riberolles, Grover Dale, Geneviève Thénier, René Bazart, Henri Crémieux, Pamela Hart, Leslie North, Patrick Jeantet, Gene Kelly, Dorothée Blanck, Anne Germain (voz cantada de Catherine Deneuve), Claude Parent (voz cantada de Françoise Dorléac), Donald Burke (voz cantada de Gene Kelly), Georges Blaness (voz cantada de Michel Piccoli), Jacques Revaux (voz cantada de Jacques Perrin). Argumento, diálogos e letras de canções: Jacques Demy. Produção: Mag Bodard, Gilbert de Goldschmidt. Fotografia: Ghislain Cloquet. Música: Michel Legrand. Coreografia: Norman Maen. Guarda-roupa: Marie-Claude Fouquet, Jacqueline Moreau. França, 1967, P/B, 121 min.

domingo, 5 de janeiro de 2025

Sobre o filme «Frenzy - Perigo na Noite» de Alfred Hitchcock, 2024



 
























O penúltimo filme de Hitchcock é diabolicamente divertido. Sugere que o realizador deu largas ao seu pendor humorístico no centro da conhecida veia teatral para o macabro, para o ilícito. Sem nunca abrir mão do rigor estético, da perfeição dramática para iluminar o suspense no interior da sua Londres, do seu Convent Garden. É incrível o pormenor das escadas do prédio onde mora Robert Rusk (Barry Foster), num dos momentos cruciais da intriga, por serem filmadas às arrecuas. Todo o mercado é fulgurante de acepipes vegetais a dar o mote alimentar a toda história. Pelo meio das bancas coloridas, circula fugitivo o herói anti-herói, o acusado, desgrenhado, desmazelado, despedido do bar onde trabalhava, Richard Blaney (Jon Finch), com a sua namorada Babs Milligan (Anna Massey). No meio de uma intricada correria, Robert acaba acusado de ser o assassino em série o “neck tie strangler”. Porém, o seu amigo negociante em fruta Bob Rusk contará outra história.

E Hitchcock ainda contará outra, usando todos os meios para colocar em falência o acto do casamento, para quase ridicularizar a implícita componente afectiva, para deixar a mulher primeiro como detentora da sabedoria e da força primárias mas ficando, depois, permanentemente secundarizada. (Talvez misoginia, dirão alguns.) Basta ter atenção à conversa e à caracterização do casal que sai da bem sucedida firma de matrimónios liderada por Brenda Blaney (Barbara Leigh-Hunt), ex-mulher de Richard, ou na caracterização da secretária de Brenda (Jean Marsh). Também na perspicaz e fazedora de ‘verdadeiros’ acepipes franceses, a esposa do esfomeado inspector Tim Oxford (Tim Oxford), Mrs. Oxford (Vivien Merchant). Até os corpos das mulheres parece estar apresentados como iguaria a ser psicanaliticamente consumida, envolta em batatas e pronta a ser deglutida. São raras ou muito poucas as vezes que Hitchcock usou assim a nudez do corpo feminino, exposto, vilipendiado, fazendo suar abundantemente quem dele abusou, e deixando bem vivo, quase a raiar o burlesco, o fácies no estertor final das vítimas. Também os comentários públicos sobre os crimes são feitos gulosamente, deleitando-se com os pormenores escabrosos.

Tudo aqui parece ser deliciosamente grotesco, requintadamente contado e digerido, dando azo à plena satisfação do espectador ao assistir a uma finíssima comédia ultra-negra.

 

jef, janeiro 2025

«Frenzy - Perigo na Noite» (Frenzy) de Alfred Hitchcock. Com Jon Finch, Barry Foster, Barbara Leigh-Hunt, Anna Massey, Alec McCowen, Jean Marsh, Vivien Merchant, Billie Whitelaw, Clive Swift, Bernard Cribbins, Michael Bates, Jean Marsh, Madge Ryan, Elsie Randolph, Gerald Sim, John Boxer, George Tovey, Jimmy Gardner, Noel Johnson. Argumento: Anthony Shaffer segundo o romance “Goodbye Piccadilly, Farewell Leicester Square” de Arthur La Bern. Produção: Alfred Hitchcock. Fotografia: Gilbert Taylor. Música: Ron Goodwin. Guarda-roupa: Julie Harris. Cenografia: Sidney Cain e Robert Laing. EUA / Grã-Btretanha, 1972, Cores, 116 min.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Sobre o filme «Lola» de Jacques Demy, 1961



 




























Parece ser a definição de Amor, este filme. De um amor desejado, sonhado e, por fim, conquistado. Daí, o happy end, apesar de tudo. E Jacques Demy define o Amor através de Lola (Anouk Aimée), através desse ‘apesar de tudo’, apesar desse ‘happy end’. Lola vive, Lola corre, Lola espera. Lola ri e ama, maternalmente. E todos chegam e depois todos partem. A solidão parece ser um espectro a pairar… O provérbio chinês dá o mote: ‘Ri quem quer, chora quem pode’.

«Lola» é como o corolário de um cinema passado e futuro. É dedicado a Max Ophüls e o cabaret onde Lola trabalha assemelha-se ao ninho de afecto e de amor de «La Maison Téllier» de Ophüls / Maupassant («Le Plaisir» 1952), Lola é um nome que evoca Marlene Dietrich em «O Anjo Azul» (Josef von Sternberg, 1930). Lola corre como Anna Magnani em «Belíssima» (Luchino Visconti, 1951) ou Gena Rowlands em «Glória» (John Cassavetes, 1980). É quase um filme musical à Hollywood mas onde tudo é feito numa espécie de Nouvelle Vague carinhosa.

O movimento incessante da câmara atrás das imparáveis personagens que circulam pelos cenários de Nantes, lembrando os filmes de Jean Renoir ou Jean-Luc Godard. Todos se cruzam (ou quase se cruzam) numa espécie de alegre tristeza pontuada pelas canções de Michel Legrand, pelo dramatismo da sétima sinfonia de Beethoven, pela agitada suavidade de Bach ou Mozart.

O espampanante e descapotável carro de Michel (Jacques Harden) – a lembrar certos filmes de Wim Wenders – abre e fecha o filme em sentidos contrários aos dos passos levados pelo desempregado e filosófico Roland Cassard (Marc Michel), do marinheiro Frankie (Alan Scott), da jovem apaixonada e fugitiva Cécile (Annie Duperoux) e da mãe desta (Elina Labourdette) que também foge encurralada pelo destino. A guerra a pairar como motor da separação, as diferenças sociais como fatalidade para os desencontros.

Aqui, as personagens são belas, bondosas e enternecedoras. Ninguém é mau. Anseiam apenas melhor para a vida e para os outros. É impossível não nos apaixonarmos por todas elas. Difícil esquecermos Lola.

Digamos que «Lola» toca uma Nouvelle Vague mas caridosa, enciclopédica e expressionista.


jef, janeiro 2025

«Lola» de Jacques Demy. Com Anouk Aimée, Marc Michel, Jacques Harden, Alan Scott, Elina Labourdette, Margo Lion, Annie Duperoux, Catherine Lutz, Corinne Marchand, Yvette Anziani, Dorothée Blanck, Isabelle Lunghini, Annick Noël, Ginette Valton, Anne Zamire, Jacques Goasguen, Babette Barbin, Jacques Lebreton, Gérard Delaroche. Argumento: Jacques Demy. Produção: Georges de Beauregard e Carlo Ponti. Fotografia: Raoul Coutard. Música: Michel Legrand. Guarda-roupa: Bernard Evein. França / Itália, 1961, P/B, 83 min.