O
penúltimo filme de Hitchcock é diabolicamente divertido. Sugere que o
realizador deu largas ao seu pendor humorístico no centro da conhecida veia
teatral para o macabro, para o ilícito. Sem nunca abrir mão do rigor estético,
da perfeição dramática para iluminar o suspense no interior da sua Londres, do
seu Convent Garden. É incrível o pormenor das escadas do prédio onde mora Robert
Rusk (Barry Foster), num dos momentos cruciais da intriga, por serem filmadas às
arrecuas. Todo o mercado é fulgurante de acepipes vegetais a dar o mote
alimentar a toda história. Pelo meio das bancas coloridas, circula fugitivo o
herói anti-herói, o acusado, desgrenhado, desmazelado, despedido do bar onde trabalhava,
Richard Blaney (Jon Finch), com a sua namorada Babs Milligan (Anna Massey). No
meio de uma intricada correria, Robert acaba acusado de ser o assassino em
série o “neck tie strangler”. Porém, o seu amigo negociante em fruta Bob Rusk
contará outra história.
E
Hitchcock ainda contará outra, usando todos os meios para colocar em falência o
acto do casamento, para quase ridicularizar a implícita componente afectiva,
para deixar a mulher primeiro como detentora da sabedoria e da força primárias mas
ficando, depois, permanentemente secundarizada. (Talvez misoginia, dirão
alguns.) Basta ter atenção à conversa e à caracterização do casal que sai da bem
sucedida firma de matrimónios liderada por Brenda Blaney (Barbara Leigh-Hunt), ex-mulher de Richard, ou na caracterização da secretária de Brenda (Jean Marsh).
Também na perspicaz e fazedora de ‘verdadeiros’ acepipes franceses, a esposa do
esfomeado inspector Tim Oxford (Tim Oxford), Mrs. Oxford (Vivien Merchant). Até
os corpos das mulheres parece estar apresentados como iguaria a ser
psicanaliticamente consumida, envolta em batatas e pronta a ser deglutida. São
raras ou muito poucas as vezes que Hitchcock usou assim a nudez do corpo
feminino, exposto, vilipendiado, fazendo suar abundantemente quem dele abusou, e
deixando bem vivo, quase a raiar o burlesco, o fácies no estertor final das
vítimas. Também os comentários públicos sobre os crimes são feitos gulosamente,
deleitando-se com os pormenores escabrosos.
Tudo
aqui parece ser deliciosamente grotesco, requintadamente contado e digerido,
dando azo à plena satisfação do espectador ao assistir a uma finíssima comédia
ultra-negra.
jef,
janeiro 2025
«Frenzy
- Perigo na Noite» (Frenzy) de Alfred Hitchcock. Com Jon Finch, Barry Foster, Barbara
Leigh-Hunt, Anna Massey, Alec McCowen, Jean Marsh, Vivien Merchant, Billie
Whitelaw, Clive Swift, Bernard Cribbins, Michael Bates, Jean Marsh, Madge Ryan,
Elsie Randolph, Gerald Sim, John Boxer, George Tovey, Jimmy Gardner, Noel
Johnson. Argumento: Anthony Shaffer segundo o romance “Goodbye Piccadilly,
Farewell Leicester Square” de Arthur La Bern. Produção: Alfred Hitchcock. Fotografia: Gilbert
Taylor. Música: Ron Goodwin. Guarda-roupa: Julie Harris. Cenografia: Sidney
Cain e Robert Laing. EUA / Grã-Btretanha, 1972, Cores, 116 min.
Sem comentários:
Enviar um comentário