quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Sobre o livro «Assim para Nós Haja Perdão» de A. M. Homes, Relógio D’Água, 2014. Tradução de Miguel Serras Pereira.


 









Harold Silver e George Silver são dois irmãos que parecem ter sido separados à nascença. Mas não. Foram separados no final de um Dia de Acção de Graças em família e depois de um beijo ilícito, engordurado pelo molho do perú. Ah, e também após aquele brutal (involuntário?) acidente de viação.

George Silver é um empresário de sucesso na comunicação social, porém violentamente instável, e Harold Silver, um pacato professor universitário, estudioso entusiasta da figura de Richard Milhous Nixon. Mais do que isso, apaixonado e potencial biógrafo de R.M. Nixon.

Mas toda a história centra-se no reservado, quase invisível, e envolvido no tal beijo engordurado, Harold, e na posterior sucessão quase demoníaca de desastres, quase ao estilo paranoico de «Os Desastres de Sofia» da Condessa de Ségur. Contudo, enquanto tudo desaba sobre este em consequência do desvario do irmão, tudo parece querer reorganizar-se a partir da brutalidade dos escombros, em torno de um conjunto de personagens à deriva de um certo desequilíbrio americano. Harold teoriza como Nixon lançou a campanha do Sonho Americano e como ele também o fez descarrilar.

A.M. Homes não tem contemplações. Usa o humor, o sexo, as tradições judaicas, as relações entre pais e filhos, essas ligações enraizadas na sociedade americana para escrever uma comédia ultra-negra, uma saga quase sangrenta, muito veloz e sem capítulos, suportada por diálogos imparáveis e hilariantes, quantas vezes confrangedores.

Uma sociedade americana dividida ao meio, onde a metade “Harold” tenta manter de pé e a todo custo o que a outra metade vai destruindo. Uma America Great Yet contra a outra America Great Again.

Um livro que dez anos depois, e após o fatídico 20 de Janeiro, parece adquirir um fôlego que gostaríamos que fosse apenas ficcionado.

Uma nota de grande desalento perante uma difícil tradução bastante competente, contudo estragada por uma insuportável revisão de texto (Helder Guégués) que, página sim página não, arranca-nos da concentração da leitura por um gigantesco bando de gralhas, omissões ou tropeções ortográficos. Nada a que não estamos nós já habituados no apressado e imparável fogo cruzado das edições de Relógio D’Água. Uma triste tradição.


jef, janeiro 2025

 

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