quarta-feira, 26 de março de 2025

Sobre o filme «Sol nos Últimos Dias do Shogunato» de Yuzo Kawashima, 1957



 

























Uma inusitada comédia imparável vinda de uma das épocas de ouro do cinema japonês. Uma espécie de clássica "comédia de portas” (os Irmãos Marx nunca desdenharam tais enredos) onde se abrem e fecham espaços e enganos, onde se misturam histórias e intrigas. Onde as personagens surgem zangadas mas terminam conciliadas e amorosas.

O filme começa pela visão contemporânea, entre linhas de caminho-de-ferro, túneis e viadutos, onde antes, por meados do século XIX, se encontrava um dos bairros de divertimento e prostituição de Tóquio – Shinagawa.

Naquela época de transição política, Bakumatsu, com grupos de intervenção violenta contra a presença estrangeira e pelo nacionalismo e contra os pro-imperialistas, contudo, todos se cruzavam num dos bordéis de sucesso de Shinagawa. Entre eles, um fura-vidas, cheio de inteligência e artimanhas, Saheiji (Furanki Sakai) que após ter lubribriado os donos do estabelecimento dizendo que iria ter dinheiro para pagar toda a despesa, dele e dos seus comparsas, declara ser tudo mentira. Não tinha algum dinheiro e dispôs-se a pagar a dívida em género, ou seja, em serviços prestados à família dos donos e também às gueixas que ali trabalhavam como aos respectivos clientes.

Saheiji é uma espécie de faz-tudo encantador (a tradução em português chama-o "encarregado") que possui um monte de cartas impressas que vende às gueixas para que declarassem em simultâneo o amor aos mesmos clientes, e um futuro e estável casamento. Claro que as gueixas (Sachiko Hidari e Yoko Minamida) se digladiam pelo sedutor enquanto este vai atando e desatando os diversos nós entre os proprietários, os clientes vindos dos diversos sectores da sociedade e as gueixas que sempre aspiravam a uma vida melhor. Saheiji é amável e muito ágil em desintrigar intrigas e até ressuscitar suicidas, Kinzo (Shoichi Ozawa).     

É inverno, Saheiji também é divertido e muito trabalhador mas está disposto a ir-se embora sem darem por isso, mas tem ainda de mostrar no cemitério a campa inexistente de uma amante a um choroso apaixonado. Saheiji tosse por estar tuberculoso e sai de cena, paisagem fora. Nunca saberemos o seu destino.

Uma raríssima e divertida comédia japonesa de contornos sociais e políticos que nos deixa apaixonados pelas suas personagens.


jef, março 2025

«Sol nos Últimos Dias do Shogunato» (Bakumatsu taiyoden) de Yuzo Kawashima. Com Furanki Sakai, Sachiko Hidari, Yoko Minamida, Yujiro Ishihara, Izumi Ashikawa, Toshiyuki Ichimura, Nobuo Kaneko, Hisano Yamaoka, Yasukiyo Umeno, Masao Oda, Masumi Okada, Toshio Takahara, Tomio Aoki, Sanpei Mine, Kin Sugai, Shoichi Ozawa, Kenjiro Uemura. Argumento: Yuzo Kawashima, Hisashi Yamanouchi e Shohei Imamura Produção: Takeshi Yamamoto. Fotografia: Kurataro Takamura. Música: Toshiro Mayuzumi. Japão, 1957, P/B, 110 min.

 

terça-feira, 25 de março de 2025

Sobre o filme «Siga a Banda!» de Emmanuel Courcol, 2024























Temo dizer que desconfio bastante (e espero que não seja presunção) quando vejo pela rua publicidade a dizer-me que o filme “comoveu dois milhões de franceses”. O cinema francês tem no currículo as melhores comédias do mundo mas, depois, especializou-se a realizar as piores comédias do mundo. Por isso, entrei no cinema com um ou dois pés atrás.

Contudo, o filme derrotou-me e também me comoveu. E a música faz sempre milagres!

A história vem dos tempos mais ou menos clássicos ou românticos, da Grécia antiga até Shakespeare ou Eça de Queiroz. Dois irmãos que se desconhecem Thibaut Desormeaux (Benjamin Lavernhe) e Jimmy Lecocq (Pierre Lottin), vindos de ambientes sociais opostos, por razões clínicas acabam por se encontrar, desconfiar, apoiar e, depois, amar. Talvez por cumplicidade genética (ou esforço de argumento) estão ambos ligados à musica. O primeiro, maestro numa grande orquestra sinfónica, pianista, professor e compositor, o segundo, a trabalhar na cozinha de uma empresa mineira que está em regime de insolvência, é trombonista na banda filarmónica dos mineiros. O primeiro encontra-se doente, o segundo podê-lo-á ajudar.

No fim, Mozart, Beethoven, Mahler, Ravel ou Michel Petrossian, irão unir o coração de todos como só a música parece fazê-lo de modo tão abstracto e emocional.

É muito difícil realizar uma boa comédia dramática como esta. Os diálogos são sinceros e muito convincentes os actores Benjamin Lavernhe e Pierre Lottin, a que se junta a imprescindível presença da actriz Sarah Suco (Sabrina), fazendo de contraponto ou contra-regra ao cozinheiro trombonista Jimmy.

Talvez a forma um tanto forçada de conciliar dois cenários musicais distintos e a necessidade de contar tanta história em tão poucos minutos e cenas tão curtas, me tenham feito distrair (ou abstrair) do motivo central. Enfim, não há bela sem senão!


jef, março 2025

«Siga a Banda!» (En fanfare) de Emmanuel Courcol. Com Benjamin Lavernhe, Pierre Lottin, Sarah Suco, Jacques Bonnaffé, Clémence Massart-Weit, Anne Loiret, Mathilde Courcol-Rozès, Yvon Martin, Isabelle Zanotti, Nicolas Ducron, Charlie Nelson, Marie-José Billet, Antonin Lartaud, Rémi Fransot, Johnny Montreuil, Johnny Rasse, Gabrielle Claeys, Annette Lowcay, Jean-Luc Lebacq, Joël Lebacq, Stéphanie Cliquennois, Lulu Lomendie, Rui-Mickaël Dias, Nathalie Desrumaux. Argumento: Oriane Bonduel, Emmanuel Courcol, Irène Muscari segundo o texto de Marianne Tomersy. Produção: Marc Bordure, Robert Guédiguian. Fotografia: Maxence Lemonnier. Música: Michel Petrossian. Guarda-roupa: Laura Vallot. França, 2024, Cores, 103 min.

 

segunda-feira, 24 de março de 2025

Sobre o livro «Mitologia Nórdica» de Neil Gaiman, Presença, 2017. Tradução de Maria de Almeida.



 







A minha mãe sempre dizia que o bicho-homem é um bicho que sempre viveu com medos. Muitos. Medo da trovoada, do oceano sem fim, do céu escuro da noite, da floresta, do inverno, do sol, das feras, e por aí fora... E para aplacá-los foi imaginando seres mais ou menos superiores que comandavam tanto os fenómenos naturais como a sua relação com os homens e, claro, também o respectivo catálogo dos medos. A filosofia foi evoluindo e também os conhecimentos científicos no espaço e no tempo. E os medos foram-se reduzindo, assim como o número de deuses. Mas como é evidente, foi ficando o grande medo, único e tenebroso – a Morte. E como era um medo insolúvel, o homem imaginou para o acompanhar um deus apenas. Mesmo assim, multiplicaram-se as congregações para adorar o tal único ser (ou ente ou entidade). Nascia o monoteísmo, para nem bem nem mal dos nossos pecados. Origem de muitas guerras. Assim, rezava a minha mãe que obviamente era ateia.

Mas antes de nascer esse monobloco, essa mono-obsessão, cada cultura foi-se entretendo a criar um altar de divindades à sua imagem e semelhança. Umas mais animistas para o lado africano, outras mais imaginativas e dolorosas para o lado da América meridional, outras pelo convívio com sucessivas e eternas reencarnações para o lado mais oriental. Estas foram migrando até ao Egipto, misturando-se, depois até ao mediterrâneo passando pela Grécia, por terra de Etruscos, pelo império romano e mais além, como diria o nosso Buzz Lightyear.

Mas no imenso Norte gelado de noites sem fim, iam estacionando criaturas gigantes, mal dispostas e muito difíceis de entender, que comandavam as frotas dos Vikings dando o mote a parte da grande literatura nórdica. (Vá lá a gente conceber à luz da tradição cultural católica, por exemplo, o mundo de certos e belos romances de Selma Lagerlöf – «A Saga de Gösta Berling», 1891, ou «Os Milagres do Anticristo», 1897).

Pois, um grande amigo emprestou-me o presente livro com as loucas histórias das divindades e proto-divindades nascidas junto do Círculo Polar Norte entre universos de muitos mundos, luz e trevas, gelo e fogo, serpentes gigantes, lobos péssimos, anões habilidosos, ogres manhosos, árvores do mundo, bodes como cavalos que sobrevivem mesmo depois de guisados, cavalos de oito pernas, deuses que se mascaram de deusas ou se metamorfoseiam em éguas para serem fecundadas, gigantes que vão à pesca, deusas carecas, ou deuses belos que têm medo de pesadelos.

Claro que todos prestam relativa vassalagem ao maior, Odin, que trocou um olho pela sabedoria. Todos têm um certo medo de Thor, o célebre Thor, filho de Odin, grande e hirsuto, que recebeu um cinto ampliador da força e um martelo infalível, cobiçado por todos, oferecido por anões. Mas Thor não deve grande coisa à deusa da inteligência.

Todavia, como toda a história politeísta ou monoteísta tem de ter um diabo ou diabrete ou mafarrico para a intriga possuir sal, pimenta, sangue, suor e lágrimas, aparece o lindo, maléfico, o ardiloso, o sedutor, Loki, irmão de Odin. Loki, o traidor mas também por vezes salvador, tem sapatos que o deixam voar e não há história onde ele não meta o bedelho.

Não restam dúvidas. As mitologias religiosas, politeístas ou monoteístas, são um poço de imaginação, encantamento, horror, bondade e fantasia. Talvez sejam mesmo a maior obra de ficção criada pelo homem.


jef, março 2025

 

sábado, 22 de março de 2025

Sobre o disco «Maçã d’Adão» de Jonas, SPA / Valentim de Carvalho 2024


 








Jonas dá largas ao curso da sua voz magnífica. Também da irreverente criatividade artística. Afasta-se da coerência do disco «São Jorge» (2020) mas, sem dúvida, fadista ele é (“Pai de Santo”, “Sol Solidão”, “Fado Bipolar”, “Ira”)!

Mas não fica quieto, não desdenha outros ritmos, harmonias ou acordes (maiores ou menores), venham elas do grande Andaluz (“Bato à Porta”, “Severa y la Virgen”, “Ira”), do grande Brasil (“Pai de Santo”, “Vaidade – Lundu Marajoara”, “Preguiça”), talvez do grande Cabo Verde (“Mouraria Moirama”), da grande Argentina tanguista (“Luxúria”), do grande Alentejo sofrido (“Gula”), da velha e grande Idanha-a-Nova / Monsanto (“Soberba”). Também das ruas da grande Lisboa (“Papagaio Verde”, “Vaidade – Lundu Marajoara”). E da grande Líbido, do infinito Amor (“Maçã d’Adão”, “Bato à Porta”, “Luxúria”, “Sol Solidão, “Soberba”).

Um disco que abre com “Maçã d’Adão” em ritmo de contrabaixo swingado, uma canção que acelera depois quase desesperadamente, e termina com “Mouraria Moirama” em compasso crioulo ainda mais dançável.

Disco que só nos compreende à quinta audição seguida, obrigando depois a outras tantas audições sem parar. Os poemas e as músicas são quase todas de Jonas (confirmando que o disco anterior será integralmente da sua autoria). Assim como toda a produção musical. Os coros masculinos transformam-no em definitivo, assim como as cordas (Tiago Valentim – viola de fado, Yami Aloelela – baixo, Bernardo Romão e Acácio Barbosa – guitarra portuguesa).

Enfim, ouvindo bem, em «Maçã d’Adão» talvez o pecado da incoerência seja mesmo o seu maior privilégio.


jef, março 2025

domingo, 16 de março de 2025

Sobre a exposição «De Muito Longe» de Margarida Jardim, Galeria Monumental, 2025



 
































A porta entreaberta faz chegar o vento de inverno. Os quadros, antes as telas, antes as cortinas movimentam-se. São grandes quadros suspensos no topo. Papel kraft impregnado de alcatrão ao qual lhe foi retirado a espessura, a densidade, o negro, a absorção da claridade e do brilho. Rasuras até ao limite da luz, diluente, emendas ao negro para atingir os castanhos quase renascentistas, aquele castanho que apenas faz sentido se o olharmos como dourado. Pinceladas reversas, como correcções mas sem forma ou credo. Apenas linhas, sombras, prespectivas que roem o preto do papel original. Do modo inicial. Por vezes, roído até ao osso. É necessário suturá-las carinhosamente com adesivo e agrafos. Fingir que vem de muito perto para restituir um novo brilho ao sombrio nocturno.

São quadros de grandes dimensões, outras nem tanto (120 x 170 cm / 80 x 80 cm), a movimentarem-se, inflando, adquirindo o volume do vento, agradecendo o brilho reflexo de uma luz que vem da rua, que não lhe é original mas que ali, naquele segundo, o é em definitivo. Com o relevo líquido que o vento lhe dá. Sem forma mas com volume, como nós estudámos no liceu. E aquele movimento é o seu relevo, ponto final. Como uma escultura em calcário corroído até ao fim pelo tempo.

Os castanhos e os negros, os brancos e os dourados. Vindos de muito longe para nos ensinar como a ruína e o movimento eterno representam apenas o renascimento para que estas pinturas rasuradas, a sua luz e o vento, nos convocam. Nos provocam.


jef, 15 de março 2025

«De Muito Longe» de Margarida Jardim. Galeria Monumental. Lisboa.

15 de Março a 12 de Abril de 2025

sexta-feira, 14 de março de 2025

Sobre o filme «O Romance de Jim» de Arnaud Larrieu e Jean-Marie Larrieu, 2024



 












Afinal, o romance de Jim parece ser toda a vida de Aymeric. E a vida de Aymeric confunde-se, ou antes, cola-se à pele do actor Karim Leklou. Porque este filme é todo virado, reflectindo integralmente, a expressão da cara e do corpo do actor. A expressão de Karim Leklou, no centro familiar e este no centro das montanhas do Juras. Esta paisagem como personagem supra-citada ou de sobrolho franzido como um coro grego. Aliás, aqui, montanhas e sociedade, tudo soa a família.

Um melodrama revisitado e contado como se fossem pranchas de um livro de quadradinhos, virando as páginas sem pausas mas com notas coloridas sobre os meses e os anos que estão a passar. Todas as personagens acompanham o tempo, excepto Aymeric, esse super-pai-adoptivo-quase-forçado (mais tarde descartado) que mantém eternamente (e para quem o contempla) a aura de uma bonomia calada e amorosa, talvez desajeitada mas certamente cativante, de quem tudo parece aceitar sem quase reclamar. Contudo, nada tem de néscio ou tolo. A sua silenciosa inteligência emocional tudo dita, tudo agrega, tudo sintetiza.

Um enorme actor dentro de uma grande personagem (ou vice-versa) que faz o pleno num filme que, por vezes, parece querer virar as páginas um pouco depressa demais ou ficar suspenso em pormenores que podíamos esquecer.


jef, março 2025

«O Romance de Jim» (Le Roman de Jim) de Arnaud Larrieu e Jean-Marie Larrieu. Com Karim Leklou, Laetitia Dosch, Bertrand Belin, Noée Abita, Andranic Manet, Eol Personne, Sara Giraudeau, Mireille Herbstmeyer, Suzanne De Baecque, Sabrina Seyvecou, Marguerite Machuel, Robinson Stévenin, Omar Saad, Christine Dory, Marine Egraz, Pierre Morel, Julien Commaret, François Berger. Argumento: Arnaud Larrieu, Jean-Marie Larrieu baseado no romance de Pierric Bailly. Produção: Kevin Chneiweiss. Fotografia: Irina Lubtchansky. Música: Bertrand Belin,

Shane Copin. Guarda-roupa: Judith de Luze. França, 2024, Cores, 106 min.

 

segunda-feira, 10 de março de 2025

Sobre o disco “Não sei do que é que se trata mas não concordo!” de Vitorino, Jugular Edições, 2024



 







É impossível não referir logo de início os seus 82 anos. É espantoso como Vitorino sempre se reinventa nunca ultrapassar os limites da sua ilimitada persona e personalidade musicais.

Ainda estamos no Redondo, ainda estamos em Lisboa. Um lugar ora luminoso ora melancólico que é só de Vitorino mas que nos pertence por inteiro. Há muito.

Dedicado ao Sr. Arnaldo Trindade que assim dizia, gente da terra, de profundidade filosófica e talvez carpinteiro, usando sempre fato-de-macaco: «Não sei do que é que se trata mas não concordo!», a primeira das 11 canções. Um coro repete algo fantasmagórico, um vago tom menor, talvez de tango argentino, encenando o contraditório – “compromisso com o homem na total felicidade exigida, desejada, sempre querida!”.

Depois, logo muda em versão “marcha-popular-charleston”, «Moda Revolta» (sem idade, que todos os anos em Abril traz o vermelho da revolta) ou o dueto com Cuca Roseta «Para Quando Eu te Encontrar», de Sérgio Costa, um fado-ranchero, ou depois a canção de embalar cabo-verdiana «Terra Tão Longe». Ou «Por Ela», um bolero versão Ritz Club, versão de baile ou em versão roufenha para velho rádio de pilhas.

Ao meio está «Cravos Vermelhos» com letra de Florbela Espanca, que poderia ter sido gravada numa desaparecida esquina parisiense. A seguir a letra vem de Carlos Mota de Oliveira «Uma Pontinha por Ti» com um romantismo irónico e sinfónico.

O tom melodramático chega com «Não é Meia Noite Quem Quer», a letra de António Lobo Antunes, segue com o cançonetismo de «Santo e Senha» (letra de Miguel Torga e música de José Cid).

Para terminar em modo requiem «Pai» com letra de José Jorge Letria, a lembrar certas linhas musicais de José Afonso.

Vitorino continua a ser aquela peça musical de resistência, namoro, divertimento e memória que todos precisamos visitar nos dias sombrios e angustiados que andamos por aqui e por ali a viver.

É justo referir que quase todos os arranjos são do músico Sérgio Costa.


março de 2025