sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Sobre a peça «Jantar» de Moira Buffini. Teatro Paulo Claro, / Artistas Unidos. 2025.


 































“Precisamos de bebidas!”

Aqui muito se fala do apocalipse da lagosta. Uma frase dita por Paige (Catarina Campos Costa) que prodigaliza a sua veia de bem receber num jantar íntimo, requintadamente conceptual, em honra à última obra literária de seu marido Lars (Tiago Matias): “Para Lá da Crença”. Uma obra ao estilo auto-ajuda intelectual para lamber as feridas de uma burguesia à beira do seu próprio apocalipse. Um apocalipse que se parece mais com o decadente ciúme que o espírito da pequena burguesia sempre devota pela defunta aristocracia.

Pelas palavras e pelo silogismo, lembrei-me de modo abstracto de duas obras: «O Apocalipse dos Trabalhadores» de Valter Hugo Mãe (2008) e «Aprender a Rezar na Era da Técnica» de Gonçalo M. Tavares (2007).

Em «Jantar» de Moira Buffini tudo parece sumptuosamente ameaçado, num clima de uma vingança calculada que se deve servir gelada. A esse clima de intriga e suspeita latente não é estranha a profundidade de campo por onde, a dado momento, se vislumbra o criado contratado para a ocasião (Vicente Wallenstein), ao longe, a deitar fora pelo chão os restos abomináveis do “consommé” de plâncton que os convidados não conseguiram tragar. Existe mesmo um progressivo clima de envenenamento e de mentira, de sedução e permanente traição.

Contudo, esta comédia negra apenas nos indica como actualmente os protótipos sociais burgueses ligados à ciência e as artes plásticas, à literatura, ao jornalismo, à alimentação ou à sexualidade podem ser transpostos para o palco tal como seriam na altura as personagens da “commedia dell’arte” – por vezes risonhos, por vezes trágicos, por vezes mimos do ridículo, outras, mimos da verdade.

Uma encenação rigorosa num espaço amplo e quase soturno, como se a mansão de estilo se fosse transformando nos bastidores de uma catacumba funesta, onde as personagens se vão despindo, vão confessando, preparando-se para um epílogo inexorável, cómico e trágico em simultâneo.

“Precisamos de bebidas!”


jef, 30 de Outubro de 2025

«Jantar» de Moira Buffini. Encenação: Pedro Carraca. Tradução: Joana Frazão. Cenário e Figurinos Rita Lopes Alves. Assistência de cenografia: Francisco Silva. Assistência de encenação: Joana Calado e Nuno Gonçalo Rodrigues. Luz: Pedro Domingos. Som: André Pires. Com Catarina Campos Costa (Paige), Gonçalo Carvalho (Hal), Inês Pereira (Wynne), Pedro Caeiro (Mike), Raquel Montenegro (Siân), Tiago Matias (Lars) e Vicente Wallenstein (o criado). Produção: Teatro Paulo Claro / Artistas Unidos. Duração: 110 minutos.

 

Teatro Paulo Claro de 23 de Outubro a 15 de Novembro

(Rua do Açúcar 37)

3ª e 4ª às 19h30 | 5ª e 6ª às 21h00 | Sáb. às 16h00 e às 21h00

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Sobre o filme «Springsteen: Deliver Me from Nowhere» de Scott Cooper, 2025



 























Elogio.

Há muito que não via um filme americano biográfico à antiga. Escorreito, sem rodriguinhos ou tiques estéticos. Comovente sem lamechices. Protagonizado pelo extraordinário actor Jeremy Allen White que se funde no ecrã e na história com uma benevolência e uma entrega únicas. Um filme onde a fotografia segue a mesma linha de justiça e beleza, sóbria mas marcante, rigorosa e terna, do argumento. A fotografia é de Masanobu Takayanagi e o argumento parte do livro de Warren Zanes que conta a história pré-estrelato do Boss, seguindo os passos da gravação acústica, num quarto algures em New Jersey, de «Nebraska» (1982). Uma gravação obscura e única pela qual lutou com unhas e dentes após o sucesso da digressão de um álbum extraordinário «The River» (1980), e precedendo aquele que o levaria pelo mundo fora: «Born in the U.S.A.» (1984).

Sem dúvida um belo e carinhoso filme sobre o trajecto de uma personalidade musical única que nos faz lembrar uma América que ainda era grande no interior dos seus eternos conflitos sociais e dissonâncias políticas, também na continua superação das respectivas cicatrizes.

A história de um dos discos da minha vida «Nebraska», um disco que me levou até aos outros dois, precedente e posterior. Um filme que me fará seguir o percurso cinéfilo do actor Jeremy Allen White, sobre a vida de um compositor que, pelo narrado, foi influenciado por dois dos filmes que jamais esquecerei: «A Sombra do Caçador» (Charles Laughton, 1955) e «Noivos Sangrentos». (Terrence Malick, 1973).


jef, outubro 2025

«Springsteen: Deliver Me from Nowhere» de Scott Cooper. Com Jeremy Allen White (Bruce Springsteen), Jeremy Strong (Jon Landau), Paul Walter Hauser (Mike Batlan), Stephen Graham (Doug Springsteen), Odessa Young (Faye), Gaby Hoffman (Adele Springsteen), Marc Maron (Chuck Plotkin), David Krumholtz (Al Teller). Argumento: Scott Cooper e Warren Zanes sobre o livro deste último com o mesmo título. Produção: Scott Cooper, Ellen Goldsmith-Vein, Eric Robinson, Scott Stuber. Fotografia: Masanobu Takayanagi. Música: Jeremiah Fraites. Guarda-roupa: Kasia Walicka Maimone. EUA, 2025, Cores, 120 min.

Sobre a peça «À Espera de Godot» de Samuel Beckett. Teatro do Bairro, 2025.



 




































Hoje em dia, talvez até mais do que em 1948-1949, quando Samuel Beckett a escreveu, ou em 1953, ao estrear-se em Paris, esta seja a peça-símbolo da eterna modernidade, afastando-a de drasticamente do epíteto “absurdo”. Talvez possamos apelidada, assim, mais "abstracta" do que "absurda". Representa a realidade, não é a realidade. Esta, hoje em dia, é que é muito mais “absurda” do que a espera a que Vladimir / Didi (Adriano Luz) e o seu amigo Estragon / Gogo (João Barbosa) se sujeitam.

Afinal, a espera (de Godot) é também a filosófica finalidade de toda a existência. Por isso, o banco de jardim onde Dido e Gogo aguardam ou passam os seus dias, inventando uma qualquer finalidade. Por isso, as folhas mortas e a terra molhada no chão; ainda a árvore que parece morta (apresentando apenas um pequeno broto primaveril, porventura esperançoso), uma árvore que nunca chega a suster os corpos de um duplo e inconsequente desejo de enforcamento. Uma morte continuamente adiada, como a espera, imagem crucial da existência. Godot sempre surgirá, mas só no dia seguinte, avisa a rapariga (Carolina Campanela), ela que é a sua assustada e rural empregada. A violência permanece latente.

Como violenta é a chegada de Pozzo (Francisco Vistas), afectado e distante pseudo-aristocrata, desejoso de assistência, que chega arrastando pela trela-corda de forca Lucky (Mário Sousa), o escravo imundo, que não consegue pousar as malas do amo no chão. A violência da sociedade perante o sentido inábil dos dois mendigos, unidos quase visceralmente, que apenas aguardam a noite para poderem regressar no dia seguinte. Didi e Gogo são o coro que nos faz rir, angustiar e incompreender já que representam cada um de nós que continuamente aguardamos que o mundo nos dê uma explicação. Uma explicação que não chegará. Como Godot.

Texto circular, pois toda a espera é circular, redonda, repetida e incompleta, por inconclusiva. Cheia de silêncios, expressões voluntárias e involuntárias, olhares, rictos, também repetições. Um texto eterno, exaustivo e exausto sobre o que somos e talvez nunca seremos. Um texto apenas para actores com uma resistência emocional e fisíca fora de comuns. Assim estes são!

Temos mesmo de ir ao teatro!


jef, Teatro do Bairro, 26 de Outubro de 2025

«À Espera de Godot» de Samuel Beckett. Encenação: António Pires. Tradução: José Maria Vieira Mendes.  Cenário: Alexandre Oliveira. Desenho de luz: Rui Seabra. Desenho de som: Paulo Abelho. Construção de cenário: Fábio Paulo. Figurinos: Sol Piloto, Larissa Angeli. Com Adriano Luz (Vladimir, Didi), João Barbosa (Estragon, Gogo), Francisco Vistas (Pozzo), Mário Sousa (Lucky), Carolina Campanela (empregada de Godot). Produção: Ar de Filmes /Teatro do Bairro. Teatro do Bairro. Duração: 1h10 (com intervalo).



terça-feira, 28 de outubro de 2025

Sobre o livro «Quatro Estações» de André Ruivo, The Inspector Cheese Adventures, 2025.



 










































21x15 centímetros. 60 páginas (miolo). Em parte, colorido com grandes manchas monocromáticas. Frases a linha preta (ou quase) escritas com um dos 20 lápis adquiridos, planfetárias como escritas nos ditos panfletos ou em tarjetas de distribuição na rua para divulgar ideias políticas fortes, para que não restem dúvidas de que o gajo (o senhor artista) é de esquerda. Ou então frases adquiridas no café (sem fachos) onde já o tratam por Gonçalo (ao fim de 3 dias de ausência, uma tristeza!)

O caso começa num Verão onde só vão de férias os que tem essa possibilidade. O Setembro aproxima-se com o Outono e a Palestina pela mão e o desejo de receber um presente pelo Natal se se portar e lavar bem os dentinhos. O tal Natal tem um Pai que se parece com o Senhor Henrique Ruivo (um artista também!) com um braçado de cravos vermelhos no saco gordo. O Inverno chega, o ano termina, o ano começa (Que não nos encostem à parede!), a Primavera avança com a esperança de Abril (Fascismo nunca mais!), a moção de censura, o parlamento dissolvido. E o Verão renova-se mais uma vez com nova esperança: a de um beijo e um banho no oceano, ao pôr-do-sol.

O mesmo caso termina, muito luminoso, com uma frase embandeirada “Em Cada Esquina Um Amigo” e, ao lado, uma alegre chapelada de mútuo “Bom Dia!”.


"Meu caro artista

Considerando as obras «Vírus» (2021), «Vota» (2022) e «Vida de Artista 2022-2024» (2024), aquelas mais directamente ligadas à crónica (pública, política, de bairro ou mais íntima, como artista), onde o dia-a-dia está figurativamente, ou melhor, ostensivamente narrado, e ainda como a dita narração é uma representação da realidade, e esta uma ilustração da nossa verdade comum, por isso, temo contrariá-lo. Neste caso, André Ruivo é mesmo um ilustrador!"


jef, outubro 2025

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Sobre o filme «Depois da Caçada» de Luca Guadagnino, 2025

 




 

















(Curioso o filme começar e terminar como os clássicos filmes de Woody Allen. A banda sonora e os genéricos na mesma fonte gráfica a branco sobre o fundo negro – a produção de Jack Rollins & Charles H. Joffe!)

Talvez o tempo seja o mais interessante no filme. Sim, claro, depois de vermos Julia Roberts (Alma) num dos papéis mais intrigantes da sua carreira: uma professora na universidade, reconhecida e com a carreira à beira de concluir-se com a definitiva agregação, híper-controlada no modo exterior, insegura no modo interior, um passado oculto, com um casamento perfeito, apesar de longínquo, muito afectuoso e compreensivo com Frederik (Michael Stuhlbarg). Uma sintonia colaborativa e amigável com o camarada de trabalho académico Hank (Andrew Garfield). No meio, uma talentosa aluna, Maggie (Ayo Edebiri), pronta a realizar uma excelente dissertação sobre um dificil tema filosófico… Esta é negra, lésbica e vem de uma família abastada que financia a própria Universidade de Yale. Será que o seu talento é legítimo e puro? Por fim, a intriga conclui-se, a verdade essa permanece sem fim.

O tempo de Alma é marcado sonoramente pelo tiquetaquear do metrónomo, entre a frontal segurança como académica e a crescente insegurança no interior de conflitos que parecem surgir daquelas histórias académicas de David Lodge, mas sem a graça britânica deste. O metrónomo marca ansiosamente a vida de Alma e o espectador segue entusiasmado e com crescente ansiedade a extraordinária interpretação de Julia Roberts.


jef, outubro 2025

«Depois da Caçada» (After The Hunt) de Luca Guadagnino. Com Julia Roberts, Ayo Edebiri, Andrew Garfield, Michael Stuhlbarg, Chloë Sevigny, Lio Mehiel, David Leiber, Thaddea Graham. Argumento: Nora Garrett. Produção: Luca Guadagnino. Fotografia: Shigeyoshi Mine. Música: Trent Reznor, Atticus Ross. Guarda-roupa: Giulia Piersanti. EUA, 2025, cores, 138 min.

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Sobre a exposição «Com as Minhas Tamanquinhas» de João de Azevedo. Biblioteca Camões, 2025.










































No dia em que soube da morte de João Queiroz (1957-2025), esse aguarelista das doces paisagens do absurdo, visito a exposição das obras concebidas por João de Azevedo (1950-2020) a pedido de José Afonso para o álbum «Com as Minhas Tamanquinhas» (1976). Algo de delírio visionário, cromático e definitivo, qualquer coisa de plástico e onírico, careto transmontano, ave-rara, medusa e espectro animista de uma África alucinogénia. Talvez ainda o sopro gélido e róseo na sombra de um nórdico Thor em hibernação, Ícaro levitado. As cores enchem o espaço e a nossa imaginação. A alegria do figurativo desfigurado e fulgurante das peças de João Azevedo contra a triste notícia da memória do aquoso mundo verde-cinzento, quase concreto quase granítico, a desaparecer no abstracionismo do pincel plácido de João Queiroz.

O único modo de preservarmos a nossa alma numa triste, húmida, tropical tarde de uma leitosa Lisboa, a abarrotar de turistas basbaques, é mantermos no coração as cores e os traços de João de Azevedo, a névoa que cobre a possível floresta de João Queiroz.


jef, 22 de outubro de 2025

«Com as Minhas Tamanquinhas, A obra de João de Azevedo na obra de José Afonso.

Biblioteca Camões, Largo do Calhariz, 17, Lisboa.

9 a 31 de Outubro de 2025

Curadoria e design expositivo: José Teófilo Duarte

Programação: Biblioteca Camões / Lithales Soares

Design de Comunicação, produção e montagem: DDLX


Sobre a peça «Alice no País das Maravilhas» de Lewis Carroll. Teatro Variedades, 2025.



 


































«Alice no País das Maravilhas» sempre contém, para mim, o gosto amargo da ansiedade e da frustração. Tão fantasiosas como reais tais sensações na jovem idade. Lewis Carroll, num jeito anacrónico quase surrealista de certa literatura inglesa supostamente para crianças, vai colocando Alice dentro de um mundo sem saída onde todas as personagens correm, aparecem e desaparecem, sem explicação aparente, deixando-a presa num espaço sem espaço, num tempo sem tempo. Fogem todos de um relógio, de uma Rainha de Copas, déspota e vingativa, como certas crianças sempre são.

A nossa mãe não gostava da história, dizia que não era para nós. Franzia o nariz quando nas matinés de uma televisão arredondada e a preto e branco passavam «Alice in Wonderland» de Norman Z. McLeod (1933) – Não tenho a certeza se é este o filme mas a norma do IMDB parece impor-mo –.

Esqueço por momentos o de Tim Burton (2010). Concentro-me num espectáculo que tem por garantia uma espécie de cenário-lego, jogo infantil, montado e desmontado pelos próprios actores, que entre o apagão das luzes e a crepitação estridente do lustre sobre a plateia, vai-nos levando através dos diversos episódios passados nessa espécie de ansioso vácuo temporal por Alice (Soraia Tavares). O Coelho sempre atrasado (FF), o Catterpilar, o cogumelo, a tartaruga, a Duquesa, o Gato de Cheshire (Ruben Madureira), o chá das cinco… Todos com medo da Rainha de Copas (Sissi Martins). Até que esta surge e impõe a sua lei do “corta a cabeça”. E tudo muda de figura…

…Sissi Martins, através de uma mínima, vermelha, louca, americanizada e rolante Rainha, vai impor pelo meio do críquete-croquete, das festas e da alegria dos confettis a acusação-prévia-ao-julgamento feita a Alice pelo roubo das tartes que arrefeciam à janela. A partir dali, todos os enegrecidos episódios diacrónicos reunem-se numa assembleia iluminada em torno de uma personalidade-revelação que tem tanto de terrível como de cómico e delirante.

Sissi Martins transforma essa tragédia que afinal parece nem estar assim a passar tanto do tempo numa comédia secundada pelas suas cartas de jogar, por FF na pele de um Coelho ansioso e contador de histórias e por um Ruben Madureira, Gato de Cheshire consciente do tempo que se pode contar de frente para trás. Ruben Madureira esclarece a uma Alice suspensa que, afinal, o tempo é uma simples abstracção quase poética que apenas nos leva até à morte. Sissi Martins e Ruben Madureira representam os polos positivo e negativo (ou vice-versa) de uma história sem tempo ou espaço. Uma história tão real quanto absurda.


Teatro da Trindade, 19 de outubro de 2025

«Alice no País das Maravilhas» de Lewis Carroll. Tradução e adaptação: Maria João da Rocha Afonso. Com Alexandre Carvalho, Diogo Mesquita (Duquesa), FF (o Coelho sempre atrasado), JP Costa, Mariana Lencastre, Rita Tristão da Silva, Romeu Vala, Ruben Madureira (o Gato de Cheshire), Sissi Martins (Rainha de Copas) e Soraia Tavares (Alice). Músicos: André Galvão, Artur Guimarães, Carlos Meireles, João Valpaços, Marcelo Cantarinhas e Tom Neiva. Encenação: Marco Medeiros. Música e direção musical: Artur Guimarães. Direção vocal e assistência à direção musical: Carlos Meireles. Desenho de luz: Marco Medeiros. Desenho de som: Sérgio Milhano. Movimento: JP Costa. Cenografia (conceção e construção): Ângela Rocha. Figurinos: Rafaela Mapril. Assistência de encenação: Rebeca Duarte. Apoio à construção da cenografia: Catarina Sousa, Filipe Dominguez, Jorge Miguel e Rita Cabrita. Fotografia de cena: Alípio Padilha. Produção: Teatro da Trindade INATEL. Duração: 1h40.