Hoje em dia, talvez até mais do que em 1948-1949, quando Samuel Beckett a escreveu, ou em 1953, ao estrear-se em Paris, esta seja a
peça-símbolo da eterna modernidade, afastando-a de drasticamente do epíteto “absurdo”. Talvez possamos apelidada, assim, mais "abstracta" do que "absurda". Representa a realidade, não é a realidade. Esta, hoje em dia, é que é muito mais “absurda” do que a espera a que Vladimir
/ Didi (Adriano Luz) e o seu amigo Estragon / Gogo (João Barbosa) se sujeitam.
Afinal, a espera (de Godot) é também a filosófica finalidade de toda
a existência. Por isso, o banco de jardim onde Dido e Gogo aguardam ou passam
os seus dias, inventando uma qualquer finalidade. Por isso, as folhas mortas e a
terra molhada no chão; ainda a árvore que parece morta (apresentando apenas um pequeno
broto primaveril, porventura esperançoso), uma árvore que nunca chega a suster
os corpos de um duplo e inconsequente desejo de enforcamento. Uma morte continuamente
adiada, como a espera, imagem crucial da existência. Godot sempre surgirá, mas só no
dia seguinte, avisa a rapariga (Carolina Campanela), ela que é a sua assustada
e rural empregada. A violência permanece latente.
Como violenta é a chegada de Pozzo (Francisco Vistas),
afectado e distante pseudo-aristocrata, desejoso de assistência, que chega arrastando
pela trela-corda de forca Lucky (Mário Sousa), o escravo imundo, que não
consegue pousar as malas do amo no chão. A violência da sociedade perante o
sentido inábil dos dois mendigos, unidos quase visceralmente, que apenas
aguardam a noite para poderem regressar no dia seguinte. Didi e Gogo são
o coro que nos faz rir, angustiar e incompreender já que representam cada um de nós que
continuamente aguardamos que o mundo nos dê uma explicação. Uma explicação que não chegará. Como Godot.
Texto circular, pois toda a espera é circular, redonda, repetida
e incompleta, por inconclusiva. Cheia de silêncios, expressões voluntárias e
involuntárias, olhares, rictos, também repetições. Um texto eterno, exaustivo e
exausto sobre o que somos e talvez nunca seremos. Um texto apenas para actores
com uma resistência emocional e fisíca fora de comuns. Assim estes
são!
Temos mesmo de ir ao teatro!
jef, Teatro do Bairro, 26 de Outubro de 2025
«À Espera de Godot» de Samuel Beckett. Encenação: António
Pires. Tradução: José Maria Vieira Mendes. Cenário: Alexandre Oliveira. Desenho de luz:
Rui Seabra. Desenho de som: Paulo Abelho. Construção de cenário: Fábio Paulo. Figurinos:
Sol Piloto, Larissa Angeli. Com Adriano Luz (Vladimir, Didi), João Barbosa (Estragon, Gogo),
Francisco Vistas (Pozzo), Mário Sousa (Lucky), Carolina Campanela (empregada de
Godot). Produção: Ar de Filmes /Teatro do Bairro. Teatro do Bairro. Duração: 1h10
(com intervalo).






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