segunda-feira, 29 de agosto de 2016

As mãos de D. Guilhermina












D. Guilhermina não sabe o que fazer às mãos. É um problema das mãos, não de Guilhermina. Um caso para levar os membros superiores ao psicólogo.

O assunto assume proporção mais grave quando elas se encontram com algum vizinho ou conhecido, no bairro. O olhar de Guilhermina baixa, ruborizado, e fica preso nos dedos da mão esquerda que gostariam de se esconder na mão direita. E vice-versa. Os dedos de D. Guilhermina não têm jeito para conversetas.

No entanto, quando estão sozinhos em casa,

sofá rombo no assento e coberta de chita barata para não sujar o tecido; coluna, cachepô e avenca empapada em água, pteridófito desmaiado;  televisão a remoer baixinho catástrofes alheias, incêndios, inundações, terramotos, afogamentos, assassínios de avós por netos, filhos por pais, violações de sobrinhas por tios; entre outros assuntos domingueiros,

os dedos atiram-se ao croché como gato a bofe,

já que o Antero, animal fino, não toca em pulmão guisado ou sopas de carapau. Só ração seca para gato obeso, comprada no Sr. Abílio que a traz a casa de D. Guilhermina, ao segundo andar de certo prédio.

As mãos sentem conforto no fundo dos bolsos da bata de fantasia que Guilhermina usa para poupar a blusa e a saia, não vá o salpico saltar da panela da canja.

As mãos de Guilhermina são também muito poupadas. Unhas cortadas rente, algumas manchas que a idade gosta muito de exibir, certas artroses a entortar articulações. Tudo no lugar. Menos a aliança. As mãos de Guilhermina sempre se recusaram a usá-la.

Que feitio danado! Nada de converseta, nada de afectos, nada de afagos. Mãos poupadas a enclavinhar-se até ficarem brancas.

A televisão gosta de atormentar os dedos de D. Guilhermina que, a certa altura, confundem-se com a agulha que puxa a linha em velocidade sobre o dedo indicador forçando a linha na laçada. Assim dão o apoio certo às justas operações de bombeiros, socorristas, médicos, polícias, enfermeiros, juízes.

As mãos de D. Guilhermina não gostam de novelas. Preferem os canais de notícias. As notícias exageradas ou não, atormentam melhor. Enchem-lhe o peito de dor externa, cobrindo a dor interna, essa um tanto mais feroz.

O Antero e a avenca são os seus parceiros de disputa e diálogo. São o seu mundo. Nunca tinham precisado de psicólogo.

O croché alivia a ânsia do presente porque acrescenta sempre uma nova laçada de futuro. O croché refaz o passado às mãos de D. Guilhermina porque se mantém quedo e mudo. Retém o tempo que sobra a D. Guilhermina.

Que psicólogo eficaz é o croché de D. Guilhermina. E tão em conta!

jef, agosto 2016

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