quinta-feira, 1 de setembro de 2016

O Paralelismo e os Peixes










Para ter a verdadeira noção da gravidade do problema era necessário olhar bem de frente para os carris do eléctrico quando chovia e, acima de tudo, quando os rodízios do transporte colectivo lhes passavam por cima.
Chegava a ser ilícito a velocidade cega, vibrante, sublinhada pelo guincho do metal contra metal, com que a vida, ou a vidinha, era contabilizada por aqueles regatos encanados e paralelos à distância de uns quantos, poucos, centímetros.
Se o caminho fosse teoricamente a direito, as paralelas ainda se uniriam no horizonte. Uma questão interessante de perspectiva. Linhas de fuga ou de concentração do olhar. Mas não, as ruas eram estreitas naquela carreira. O eléctrico era obrigado a uma acentuada mudança de direcção junto à esquina dos prédios, ao estendal da roupa, à gaiola do canário, à conversa da vizinha a entrar pela janela do veículo na justa medida da citada perspectiva.
Pelo contrário, quando as rodas se sobrepunham ao brilho dos carris, a distância regulamentar era mantida, incansável. Mesmo na subida mais íngreme.
Sem dizer água vai, ou água foi, sem dar tempo a tirar a roupa da chuva ou o canário da janela, o guarda-freio pisava com insolente responsabilidade a campainha para fazer afastar a miudagem da frente. Olhava os dois veios metálicos, riachos, onde a água corria sem nunca se tocar. Caçava as memórias. Ou pescava todas as trutas, adultas ou ainda alevins, que faziam pela vida, ou pela vidinha, subindo a colina do castelo à força de guelra e barbatana, por entre os kispos coloridos dos turistas. 
O guarda-freio, de seu nome Frederico Joaquim, que já esquecia carvalhais e granitos, mais apreciava sardinha assada com batata cozida e salada de pimento ou carapauzinhos fritos com açorda de alho, respectivamente. Não gostava do peixe do rio antigo, invariavelmente sensaborão e com espinha a mais.
A cidade tinha outro pendente, era de alvenaria. O calcário estava-lhe no sangue e tinha carris que, observados bem de perto e quando chovia, eram quase paralelos.
Frederico Joaquim, o guarda-freio, apesar de ser do rio, já era mais do mar. Como a cidade. Quando olhada de longe, também ela era de marés. Corvinas e robalos confirmavam-lhe a perspectiva e desafiavam o paralelismo dos carris.

jef, setembro 2016

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