quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Juvita Maria nasceu tarde








Juvita Maria nasceu tarde.
Fora de horas, noite dentro. O pai desesperava, a mãe mais ainda, os rins a doer, as dilatações a contrair, as horas lentas a passar, os médicos ora impacientes ora distraídos, as enfermeiras cansadas.
Juvita Maria lá nasceu, lá foi crescendo, lá foi vivendo, com alegria. A mãe de um lado, o pai do outro, os avós por cima e por baixo. Sem irmãos. Uma chegava e sobrava.
Nunca ela se toldou pelo pormenor do carinho, cercada de exageros afectuosos, de protecções cuidadas pela aflição. Apenas pressentia que nascer custava e, por isso, vivia com atenção. Não era mimada. Não fazia birras.
Gostava muito da atenção dos outros.
Gostava dos beijos que os outros lhe davam, do sorriso da família, das festas no cabelo que os vizinhos lhe faziam. Das idas ao hospital iluminado e a cheirar a lavado. Ali, ia brincando em vez de esperar. Tarde fora, fora de horas. Sem saber bem, muito se entretinha a observar os outros que se entretinham a observá-la.
Entre brincadeiras, aprendeu, por fim, o jogo das cores e dos nomes respectivos. Plasticina.
Gostava muito de plasticina. Tanto, que os outros se habituaram a dar-lhe plasticina.
Gostava de repetir o que via na matéria colorida. Com nomes já. Repetia e aprendia. Tinha jeito para aquilo. Repetia cães com trela e árvores de fruto, a mãe, o pai, o médico. Repetia os outros pelas cores da plasticina. Pelos nomes respectivos. Gostava de os outros gostarem das formas que repetia e que a mãe guardava com cuidado.
Juvita Maria entretinha-se a ver a cara dos outros a olhar os nomes coloridos quando a mãe ou o pai os levavam para espantarem o médico.
Mas sabia que, com o calor das mãos ou do Verão, as cores desapareciam. Ou melhor, transformavam-se em vez de desaparecerem. O calor fazia moldar as cores e amolecer as formas. Mas Juvita Maria não se entristecia. Mais cores novas apareceriam enquanto o calor do Verão não passava. E novas plasticinas chegavam no aniversário seguinte.
Era só esperar um pouco e continuar a brincar.
Melhor ainda era repetir a forma dos nomes sob o olhar dos outros. Com o correr do tempo. Ocre. Magenta. Anil. Violeta. Sépia. Terra de Siena queimada. Carmim. O preto que nunca o é. O branco que tudo junta. O verde que é azul e amarelo.
Cores nas palavras. Todos compreendiam o que elas significavam. Como todos falavam. Apenas não compreendiam que o tempo assim corria.

Um dia, Juvita Maria parou de misturar as palavras mas permaneceu agarrada à caixa de plasticinas por abrir. Sorria ligeiramente com a alegria de quem repetia o gato que todos os dias espreitava pela janela. Afinal era uma gata e tinha três cores. Branco, cor de laranja, cor de burro quando foge.
A gata voltou. Todos vieram dar-lhe uma festa nos cabelos. O médico também. Tentaram sorrir.
Juvita Maria morreu cedo. Era manhã dentro, finda nas horas.


jef, setembro 2016

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