domingo, 3 de julho de 2022

Sobre o livro «O Osso do Meio» de Gonçalo M. Tavares, Relógio D’Água, 2020


















Não podemos confundir pressentimentos com os instintos que são coisa muito mais imediata. Diz-se de Albert Mulder, médico, que gosta de observar os rapazes. Tem uma irmã.

«A tíbia de um animal tem exactamente a mesma inteligência que a nossa, não há diferença. Um osso estúpido – O importante é o osso do meio!» – diz Vassliss Rânia, com as mãos em sangue das peças de carne que vende no talho. Tem um irmão, Gada, que dizem estar louco. Não trabalha e fica em casa a aprender a tocar violino.

Maria Llurbai percorre as ruas à chuva. Foi posta na rua pelo marido, Walter Llurbai, depois de ter ido com Kahnnak. Este, com vinte anos, era a erva daninha da casa e recorda que leu a história de, num país pobre, um pedinte andrajoso mas de grande audácia estende a mão e exige: «Estou vivo, dá-me!». Kahnnak um dia será preso.

«Nos cemitérios, usam-se fórmulas fixas de linguagem porque os cidadãos, por pudor, fingem-se menos vivos. A cidade não é excelente na circulação de substantivos fortes, mas em redor dos mortos a mediocridade agrava-se.» Por fim, todos se reúnem em torno do silêncio de uma canção triste, próxima da morte.

«– O osso do meio!! Percebe? O que é necessário é encontrar o osso do meio de cada coisa, e depois parti-lo!, assim, de uma só vez!»


O 43º Caderno de Gonçalo M. Tavares está colocado na secção de “O Reino”. Aqui, permanecemos nesse mundo estranho que insiste ser a felicidade um corpo estranho ao dia-a-dia, assunto mais pressentido que vivido, toldado pela guerra sistemática que é uma das células-génese da humanidade.

Gonçalo M. Tavares escreve prosa forte como se escrevesse poesia adúltera.


jef, junho 2022

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