sexta-feira, 8 de março de 2024

Sobre o livro «Clarissa» de Erico Veríssimo, Livros do Brasil – 5.ª edição (? / 1933)










Os livros esquecidos não são propriamente livros perdidos. Numa conversa com um amigo meu brasileiro veio à baila um livro que estava esquecido entre bastantes outros do autor na segunda fila de uma das prateleiras da estante. Um livro encontrado. Um velho livro nunca lido mas que a minha mãe assegurava ser um dos seus livros preferidos. Eu nunca o havia lido talvez pela simples razão dos livros se atrapalharem uns aos outros infinitamente, quando a escolha múltipla chega ao caos da leitura.

Por uma razão afectiva peguei nele de imediato, agora que já não posso discutir com a minha mãe as razões da sua escolha. Li-o com a paixão que o livro transporta reconhecendo nele um dos temas primeiros, senão mesmo o primeiro, da literatura de todos os tempos – A viagem iniciática da criança que chega à adolescência e, nesta, se confronta com o mundo adulto.

Li-o acima de tudo com o vigor e a comoção de agora melhor entender o íntimo da minha mãe nesse possível retrato de Clarissa, uma criança de treze anos à beira de poder calçar sapatos de salto quando chegar aos catorze, apartada, porque estuda, da casa de seus pais, da liberdade da fazenda, da sua vaca de estimação, dos banhos no rio. Contudo, na pensão da Tia Zina, em Porto Alegre, vai encontrar novos e ternos motivos de alegria e descoberta, em descrições tão pormenorizadas e enfáticas que nos deixam a um breve passo real do crepúsculo sobre o jardim da pensão, situada esta entre um casarão vistoso de ricos e a casa da pobre viúva Dona Tatá que mora com o seu filho único Tonico que arrasta a sua deficiência numa cadeira de rodas.

Clarissa olha esse mundo com espanto, alegria e inocência e entre aquelas duas casas, na sala de refeições da pensão juntam-se todos os hóspedes e comensais discutindo o Brasil e o Mundo dos anos trinta do século passado. Convocam a sociedade inteira, brandindo argumentos sobre todos os conflitos contemporâneos, toda a religião, todo o cinema, toda a solidão, todo o desejo inicial e reprimido. Em modo luminoso, humorístico, descritivo, comovente, intuitivo.

De imediato, lembrei-me visualmente da estrutura e do silêncio observador dos filmes de Jacques Tati, apesar do permanente, intenso e circunstanciado diálogo que ocupa grande parte do livro. Jacques Tati era outros dos artistas que a minha mãe quase venerava.

E depois existe aqui um apreço maravilhoso pelo minúsculo, pela partícula, pelo infinitesimal que ocupa (ou também devia ocupar) estrategicamente o nosso dia-a-dia. O grito do papagaio Mandarim. As voltas no brilho aquoso do peixinho Pirolito. O perpétuo andar no silêncio do gato Micefufe. Sem contar com as formigas no canteiro das margaridas e dos craveiros. (Os malmequeres eram as flores preferidas da minha mãe, a que mais tarde se juntaram certos cravos vermelhos.)

Este é o dom dos livros e o mistério de «Clarissa». Um dom misterioso que só através da nossa memória lida e do afecto por ela construído pode ser revelado.

«Clarissa» de Erico Veríssimo será um grande livro esquecido mas nunca perdido.


jef, março 2024

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