Os
livros esquecidos não são propriamente livros perdidos. Numa conversa com um
amigo meu brasileiro veio à baila um livro que estava esquecido entre bastantes
outros do autor na segunda fila de
uma das prateleiras da estante. Um livro encontrado. Um velho livro nunca lido
mas que a minha mãe assegurava ser um dos seus livros preferidos. Eu nunca
o havia lido talvez pela simples razão dos livros se atrapalharem uns aos
outros infinitamente, quando a escolha múltipla chega ao caos da leitura.
Por
uma razão afectiva peguei nele de imediato, agora que já não posso discutir com a
minha mãe as razões da sua escolha. Li-o com a paixão que o livro
transporta reconhecendo nele um dos temas primeiros, senão mesmo o primeiro, da
literatura de todos os tempos – A viagem iniciática da criança que chega à
adolescência e, nesta, se confronta com o mundo adulto.
Li-o
acima de tudo com o vigor e a comoção de agora melhor entender o íntimo da
minha mãe nesse possível retrato de Clarissa, uma criança de treze anos à beira
de poder calçar sapatos de salto quando chegar aos catorze, apartada, porque estuda, da casa de seus pais, da liberdade da fazenda, da sua vaca de
estimação, dos banhos no rio. Contudo, na pensão da Tia Zina, em Porto Alegre, vai
encontrar novos e ternos motivos de alegria e descoberta, em descrições tão
pormenorizadas e enfáticas que nos deixam a um breve passo real do crepúsculo
sobre o jardim da pensão, situada esta entre um casarão vistoso de ricos e a casa da
pobre viúva Dona Tatá que mora com o seu filho único Tonico que arrasta a sua
deficiência numa cadeira de rodas.
Clarissa
olha esse mundo com espanto, alegria e inocência e entre aquelas duas casas, na
sala de refeições da pensão juntam-se todos os hóspedes e comensais discutindo
o Brasil e o Mundo dos anos trinta do século passado. Convocam a sociedade inteira,
brandindo argumentos sobre todos os conflitos contemporâneos, toda a religião, todo
o cinema, toda a solidão, todo o desejo inicial e reprimido. Em modo luminoso,
humorístico, descritivo, comovente, intuitivo.
De imediato, lembrei-me visualmente da estrutura e do silêncio observador dos
filmes de Jacques Tati, apesar do permanente, intenso e circunstanciado diálogo
que ocupa grande parte do livro. Jacques Tati era outros dos artistas que a
minha mãe quase venerava.
E
depois existe aqui um apreço maravilhoso pelo minúsculo, pela partícula, pelo infinitesimal
que ocupa (ou também devia ocupar) estrategicamente o nosso dia-a-dia. O grito
do papagaio Mandarim. As voltas no brilho aquoso do peixinho Pirolito. O perpétuo
andar no silêncio do gato Micefufe. Sem contar com as formigas no canteiro das
margaridas e dos craveiros. (Os malmequeres eram as flores preferidas da minha
mãe, a que mais tarde se juntaram certos cravos vermelhos.)
Este
é o dom dos livros e o mistério de «Clarissa». Um dom
misterioso que só através da nossa memória lida e do afecto por ela construído
pode ser revelado.
«Clarissa»
de Erico Veríssimo será um grande livro esquecido mas nunca perdido.
jef,
março 2024
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