terça-feira, 19 de março de 2024

Sobre a peça «Tempestade Ainda» de Peter Handke, 2024

 





 



Compreender a história do dia de hoje através do teatro parece um contrassenso ou um anacronismo. Principalmente olhado pela «Tempestade Ainda» no modo de Peter Handke. Um modo expressionista e onírico, quase psicanalítico de revisitar o passado, trazendo-o de volta para com ele conviver e reconciliar-se. Os avós, a mãe, a tia, mais os três tios homens. João Pedro Vaz é ele, esse ser sem tempo que une as pontas da memória como um arco fechado e que por ele vai passando os dedos para lhe sentir a rugosidade das alegrias e das tragédias que apenas lhe chegaram por sonho, rejeição ou desejo.

Na Caríntia, um erro de fronteira, um lapso cartográfico onde os viventes, em certo momento, são proibidos de falar a língua materna. Um espaço quase austríaco, quase esloveno, quase iugoslavo. Nasce em 1942, no interior de um clã agricultor e cultivador de maçãs, filho de um pai biológico, outro adoptivo, mas ambos de farda nazi. Não é bem vindo. Depois, os tios são mortos na guerra, uns com o uniforme alemão, outros nas montanhas entre os partisans. E o pomar queimado para aí ser montado um parque de estacionamento.

Sobre isto tudo, a intemporalidade da memória (ou da imagem) de um prado em ligeiro declive, sentado está ele ao lado da mãe num banco por baixo de uma árvore agitada ligeiramente pela brisa. Talvez nem seja uma leve memória, apenas o anseio de fazer ainda valer a quase eterna alegria materna. Trazê-la de volta, para dentro de si, guardá-la no coração como a semente do futuro. Ainda.

 

jef, janeiro 2024

«Tempestade Ainda». Texto: Peter Handke. Versão: João Lourenço e Vera San Payo de Lemos. Dramaturgia: Vera San Payo de Lemos. Encenação e Cenário: João Lourenço. Direcção Musical: Renato Júnior. Coro: João Paulo Santos. Figurinos: Marisa Fernandes. Com Carolina Picoto Pinto, Crista Alfaiate, João Pedro Vaz, Luís Barros, Manuel Sá Pessoa, Mia Henriques, Sérgio Praia e Susana Arrais e os Músicos: Carlota Ferreira e Ernesto Rodrigues. Desenho de Luz: João Lourenço e Paulo Santos. Teatro Aberto. 140 minutos.

 



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