
Compreender
a história do dia de hoje através do teatro parece um contrassenso ou um
anacronismo. Principalmente olhado pela «Tempestade Ainda» no modo de Peter
Handke. Um modo expressionista e onírico, quase psicanalítico de revisitar o
passado, trazendo-o de volta para com ele conviver e reconciliar-se. Os avós, a
mãe, a tia, mais os três tios homens. João Pedro Vaz é ele, esse ser sem tempo
que une as pontas da memória como um arco fechado e que por ele vai passando os
dedos para lhe sentir a rugosidade das alegrias e das tragédias que apenas lhe
chegaram por sonho, rejeição ou desejo.
Na
Caríntia, um erro de fronteira, um lapso cartográfico onde os viventes, em
certo momento, são proibidos de falar a língua materna. Um espaço quase
austríaco, quase esloveno, quase iugoslavo. Nasce em 1942, no interior de um
clã agricultor e cultivador de maçãs, filho de um pai biológico, outro
adoptivo, mas ambos de farda nazi. Não é bem vindo. Depois, os tios são mortos
na guerra, uns com o uniforme alemão, outros nas montanhas entre os partisans.
E o pomar queimado para aí ser montado um parque de estacionamento.
Sobre
isto tudo, a intemporalidade da memória (ou da imagem) de um prado em ligeiro
declive, sentado está ele ao lado da mãe num banco por baixo de uma árvore
agitada ligeiramente pela brisa. Talvez nem seja uma leve memória, apenas o
anseio de fazer ainda valer a quase eterna alegria materna. Trazê-la de volta,
para dentro de si, guardá-la no coração como a semente do futuro. Ainda.
jef,
janeiro 2024
«Tempestade
Ainda». Texto: Peter Handke. Versão: João Lourenço e Vera San Payo de Lemos.
Dramaturgia: Vera San Payo de Lemos. Encenação e Cenário: João Lourenço.
Direcção Musical: Renato Júnior. Coro: João Paulo Santos. Figurinos: Marisa
Fernandes. Com Carolina Picoto Pinto, Crista Alfaiate, João Pedro Vaz, Luís
Barros, Manuel Sá Pessoa, Mia Henriques, Sérgio Praia e Susana Arrais e os
Músicos: Carlota Ferreira e Ernesto Rodrigues. Desenho de Luz:
João Lourenço e Paulo Santos. Teatro Aberto. 140 minutos.
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