terça-feira, 10 de junho de 2025

Sobre o filme «A Prisioneira de Bordéus» de Patricia Mazuy, 2024

 


















Após o longo genérico inicial reflectindo o tecto "botânico" que vai espelhando o deambular de uma mulher numa loja de flores ao som da magnífica canção “Je sens tu mens”, percebemos que Alma (Isabelle Huppert) é uma mulher diletante, rica, sem um objectivo concreto, que se passeia com uma caixa de bolos na mão para retardar a chegada à sua mansão recheada de obras de arte de alto valor. A cena é da actriz até nos apercermos que irá encontrar brevemente Mina (Hafsia Herzi), mulher magrebina que trabalha sem descanso numa lavandaria, com dois filhos e que faz muitos quilómetros para ir visitar o marido no estabelecimento prisional em Bordéus, preso por roubar relógios. Elas estão em campo opostos da luta de classes e da justiça. Também Alma tem o marido preso na cela ao lado mas por razões bem diferentes.

Alguém como eu que não esquece o filme «O Segredo de um Cuscuz» (Abdellatif Kechiche, 2007), mal Hafsia Herzi aparece no ecrã sabe que ela irá  responder taco a taco à mestria de Isabelle Huppert. Duas interpretações que nos vão prendendo de modo irremediável mas que, ao mesmo tempo, nos fazem esquecer, aos poucos, o móbil da intriga e desvanecer esse possível confronto social, a luta de poder e de dominação entre as personagens.

É impossível não comparar (com alguma desilusão) o anterior filme de Patricia Mazuy, esse extraordinário filme de suspense, amoral, carnal, quase visceral, de nome «Bowling Saturno» (2022).


jef, junho 2025

«A Prisioneira de Bordéus» (La Prisonnière de Bordeaux) de Patricia Mazuy. Com  Isabelle Huppert, Hafsia Herzi, Noor Elasri, Jean Guerre Souye, William Edimo, Magne-Håvard Brekke, Lionel Dray, Jana Bittnerová, Lamya Bouladiz, Céline Chlebowsky, Any Mendieta, Marianne Auzimour, Robert Plagnol. Argumento: Pierre Courrège, François Bégaudeau e Patricia Mazuy. Produção: Alice Girard e Xavier Plèche. Fotografia: Simon Beaufils. Música: Amin Bouhafa. Canção “Je sens tu mens” (Amin Bouhafa / Patricia Mazuy) cantada por Sarah McCoy. França, 2024, Cores, 108 min.


sábado, 7 de junho de 2025

Sobre o disco «Gloom» de Decline and Fall. Bleak Recordinds, 2024.



 







Será necessário regressar a «Gloom», o primeiro EP do trio Decline and Fall, para compreender o mundo que os envolve (nos envolve). Talvez mesmo esperar pela quarta e última faixa, “Europa” para entender como a música (a arte) pode estar, agora mesmo, a fazer ainda mais sentido.

                                   «Villains as leaders

                                      Banks are now the white bull

                                      People are weaker, nothing left to lose

                                      Land soaked in blood, in mud we crawl

                                      Bang the war drum, as we decline and fall»

Assim fala o poema de Ricardo S. Amorim. Premonitório? Talvez sim.

Contudo, as quatro faixas (“Belief”, “Undone”, “Gloom” e a referida “Europa”) têm um lado muito mais espiritual, mesmo psicanalítico, do que político. Tudo gira no interior de uma Europa que nós construímos dentro de nós do que a Europa politicamente histriónica, também a das redes digitais, que nos inunda e irrompe na nossa intimidade espiritual.

Digamos, que aqui encontro um lado cinematográfico. Como se um certo David Lynch viesse convocar os Portishead ou Joy Division para construir um mundo visual forte e peremptório, onde Beth Gibbons, Ian Curtis ou Julie Cruise fossem apenas peças soltas que a minha própria memória, ostensivamente parcial, insiste em sobrepor e baralhar.

Porque é evidente que o vigor obscuro, entre a pena e o remorso, a perda e a eterna busca, é a obstinada independência e a força resistente e original de Decline and Fall (Armando Teixeira, Hugo Santos, Ricardo S. Amorim, e o baixo convidado de Miguel L. Pereira em “Undone”).

Música que devemos continuar a ouvir no nosso futuro.            

 

jef, junho de 2025

https://banddeclineandfall.bandcamp.com/album/gloom

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Sobre o filme «Marés Vivas» de Jia Zhang-ke, 2024


































Longe vai o ano de 2006, quando estreou o soberbo «Still Life – Natureza Morta». Longe vai também a inauguração em Pequim dos Jogos Olímpicos de 2008 ou a pandemia global de 2019. Este filme é como um enorme álbum de fotografias animadas e musicais. É um belo arquivo fotográfico, cheio de tele-discos, que não assume a presunção de se sobrepor a toda a obra do próprio realizador, apesar de nos recontar a história de Pequim a Zhuhai passando pela velha cidade de Fengjie que se viu submergida pela colossal barragem das Três Gargantas, destruída tijolo a tijolo com milhares e milhares de deslocados. Assim nos conta o tal filme «Still Life – Natureza Morta». Soberbo, repito.

Aqui vamos visitar (ou revisitar) a história recente da China e da produção artística do realizador através de certo “desencontro-procura-encontro-desencontro” entre Qiao (Zhao Tao), cantora e dançarina, com o produtor musical Bin (Li Zhubin).

Um filme para quem gosta de observar e escutar sem tentar ligar as imagens captadas, aqui e ali, como sinal de um povo e do seu modo privado no seio do espaço público. Nunca invasivo ou etnográfico, mas consciencioso e amável. Talvez mesmo essa característica de silencioso observador e coleccionador de olhares e gestos o mais importante e belo neste filme-resumo “Jia Zhang-ke”.


jef, junho 2025

«Marés Vivas» (Feng liu yi dai / Caught by the Tides) de Jia Zhang-ke. Com Zhao Tao, Li Zhubin, Pan Jianlin, Lan Zhou, Hu Maotao, Xu Changchu. Argumento: Jiahuan Wan e Jia Zhang-ke. Produção: Zhang Dong, Shozo Ichiyama, Casper Liang Jiayan. Fotografia: Eric Gautier, Nelson Lik-Wai Yu. Música: Lim Giong. China, 2024, Cores, 111 min.

 

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Sobre a peça «Sonho de Uma Noite de Verão» de William Shakespeare, Teatro da Trindade 2025




































Na realidade, William Shakespeare é infinito. «Sonho de Uma Noite de Verão» é uma das peças mais seguidas, copiadas, desfeitas, reconstruídas. E mantém-se sempre de pé, entre risos, mal entendidos, reis, rainhas, fadas, amores desavindos, amores vindos e poções mágicas mal geridas. Ingmar Bergman ou Woody Allen, sabem disso. Diogo Infante também, apropriando-se da bela tradução de Augusto Sobral e permeando-a de dichotes musicais, excertos de canções da sobejamente conhecida, próxima ou longínqua, pop portuguesa (José Cid, Doce, Paulo de Carvalho, Heróis do Mar, Amália Rodrigues, Ornatos Violeta, Simone de Oliveira, Ala dos Namorados, Salvador Sobral, Marco Paulo ou Expensive Soul). E Shakespeare revolta-se? Claro que não, está tudo muito bem encadeado no interior de uma louca noite de Verão feita de desejo e desencontro, aproximações e paixões trocadas. Teseu, Duque de Atenas, e Hipólita, Rainha das Amazonas, vão-se casar. Desejam ver uma peça de teatro. A tíbia escolha recai sobre um grupo amador que resolve apresentar uma espécie de Romeu e Julieta sob a forma da trágica paixão de Píramo e Tisbe. Uma verdadeira pantomima. Entretanto na floresta os desencontros sucedem-se e as poções mágicas são muito mal utilizadas por Puck, o coadjuvante de Oberon, Rei das Fadas, que pretende a reaproximação de Titânia, a Rainha das Fadas.

A tudo Shakespeare resiste, principalmente com a alegria popular da música, cantada por óptimas vozes, delicadas e afinadas, um cenário que na sua complexa simplicidade não nos distrai do ambiente de floresta encantada, pelo contrário, transporta-nos para a fina e jocosa angústia de quem é preterido, sabendo nós que no fim a jovialidade do amor sempre vencerá.

O teatro musicado em Portugal tem uma actual, inspirada dinâmica. Será estranho? Será uma notável reacção de resistência dramática aos sombrios ventos nefastos que sopram sobre nós a nível nacional e internacional?


02 de junho de 2025

«Sonho de uma Noite de Verão» de William Shakespeare. Tradução: Augusto Sobral. Encenação: Diogo Infante. Direcção musical: Artur Guimarães. Cenografia: Fernando Ribeiro. Figurinos: Dino Alves. Movimento: JP Costa. Desenho de luz: Cristina Piedade. Cenário virtual: João Alves e Bruno Caetano. Com Ana Cloe (Hipólita, Noiva de Teseu / Titânia, Rainha das Fadas), António Melo (Egeu, Pai de Hérmia / Pedro Marmeleiro, o Carpinteiro), Artur Guimarães (Maestro / Fada / Malhete, o Marceneiro), Carlos Malvarez (Filóstrato, Mestre de Festas de Teseu / Puck, Bobo de Oberon), Catarina Alves (Flor de Ervilha), Cristóvão Campos (Lisandro, apaixonado por Hérmia), Flávio Gil (Chico Flauta, o Remenda-Foles / Fada), Inês Pires Tavares (Hérmia, apaixonada por Lisandro), Jorge Mourato (Nicolau Meadas, o Tecelão), JP Costa (Tomás Pencudo, o Latoeiro / Grão de Mostarda), Mariana Lencastre (Teia de Aranha), Miguel Raposo (Teseu, Duque de Atenas / Oberon, Rei das Fadas), Raquel Tillo (Helena, apaixonada por Demétrio), Ricardo Lima (Roberto Passa-Fome, o Alfaiate / Mariposa), Ricardo Raposo (Demétrio, o preferido por Egeu para noivo de Hérmia), Sara Campina (Aia de Hipólita / Fada de Titânia). Fadas: André Galvão, Artur Mendes, Carolina Rodrigues, João Valpaços,Marcelo Cantarinhas, Tom Neiva e Vasco Avença. Músicos: André Galvão, Artur Mendes, Carolina Rodrigues, João Valpaços, Marcelo Cantarinhas, Tom Neiva, Vasco Avença. Produção: Teatro da Trindade INATEL. 120 minutos, aproximadamente. Teatro Teatro da Trindade.

5 Março a 6 Julho 2025

Quarta a Sábado 21h00 / Domingo 16:30