E
se víssemos este filme como uma impossível comédia negra? Uma comédia confrangedora
onde todos representam o papel real que a sociedade, a família ou a casa lhes
concedem, mas na qual a representação é exagerada, sublinhada, retocada, silenciada, como
no supremo teatro clássico, grego shakespeariano, vicentino. Um exagero que
apenas transforma a realidade para que nós não a subestimemos. Para que nós a
compreendamos. Quantas vezes reprimimos o riso perante a atitude
caricata de um doente grave? Sorrimos mesmo frente à crueza de uma verdade
difícil. Claro, depois, evidentemente, sentimos o peso da culpa e do remorso. A função do teatro é essa. Assim é o cinema de Mike Leigh.
Em
«Verdades Difíceis» somos confrontados com a realidade da doença familiar
incorporada (novamente) pela actriz Marianne Jean-Baptiste (Pansy). Alguém que
terá sido espoliada da sua juventude e, por essa razão, culpa sistematicamente o
mundo inteiro, fazendo-o sofrer com a sua própria pena. Toda a vida de
Pansy é suportada pelo maior cansaço depressivo que deve carregar até à
exaustão física e psicológica. Neste filme, o contraste fulminante e
psiquiátrico é dado por Pansy em todo o lado: contra a sua casa, contra a alegria
da casa da irmã Chantelle (Michele Austin); na aceitação passiva e contrariada
do marido Curtley (David Webber) ou no do filho, ainda mais obsessivamente
passivo Moses (Tuwaine Barrett); no supermercado; na loja de sofás; no parque
de estacionamento… No cemitério, frente à campa da mãe.
Em «Verdades Difíceis», a palavra “cuspida” é tão essencial quanto a palavra por dizer, o olhar calado ou mesmo o espaço de tempo entre cada uma das frases. O cinema inglês é assim. Aprendi eu com «Breve Encontro» (David Lean, 1945), onde o silêncio é emocionado pelo concerto de Rachmaninov. Em «Verdades Difíceis» esta tarefa é dada pela música de Gary Yershon. Uma música que enegrece o ecrã após as verdadeiramente brutais cenas finais. O pavor de Pansy, a lágrima de Curtley.
jef,
julho 2025
«Verdades
Difíceis» (Hard Truths) de Mike Leigh. Com Marianne Jean-Baptiste, Michele
Austin, David Webber, Tuwaine Barrett, Ani Nelson, Sophia Brown, Jonathan
Livingstone, Jo Martin, Llewella Gideon, Yvette Boakye, Chinenye
Ezeudu, Diana Yekinni, Ashna Rabheru, Syrus Lowe, Samantha Spiro. Argumento: Mike
Leigh. Produção: Georgina
Lowe. Fotografia: Dick Pope. Música: Gary Yershon. Guarda-roupa: Jacqueline
Durran. Grâ-Bretanha / Espanha, 2024, Cores, 97 min.
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