Para acabar de vez com o conceito redutor, ou classificação
preconceituosa, de livro “queer”.
Estamos perante uma quase-novela onde o amor inevitável,
interrompido e truncado entre Raimundo Gaudêncio e Cícero se encontra contido numa carta que ficará por ser lida durante décadas. De um romance sobre como o amor
iniciático e pós-adolescente entre dois rapazes, encerrado no sertão profundo, se
transforma num longo percurso-poema sobre as várias camadas que o preconceito e
o medo podem conter; como esse preconceito, a ignorância e o medo congénitos
podem ditar a violência e a profunda infelicidade dos seres. Sobre, ainda, a
necessidade premente da palavra dita oralmente e da urgência da aprendizagem na direcção da leitura da
palavra escrita, escondida, ansiada.
Como em «Carta de Uma Desconhecida» de Stefan Zweig (1922), «A Palavra que Resta» usa a expressão romântica extrema, neste caso de índole rural e oral (lembrando por vezes a cadência ritmada de Saramago), onde é
a leitura adiada que dá o mote para que o leitor siga atrás da história, levado pelo inexorável atraso de décadas de auto-repressão e desejo escondido.
Um romance-novela que tem por centro o longo capítulo “Estrada”
que nos indica o percurso a que o protagonista deverá regressar de modo
desejado e simultaneamente recusado, como sempre acontece no caminho que se faz de volta ao passado. E, já no final, em
outro mais longo capítulo, “Casa” contém o regresso final consumado. Estrada e
Casa, o eterno retorno de Raimundo Gaudêncio. O mesmo desejo de voltar à palavra que devia
ter sido dita e ouvida junto a uma cruz na margem do rio, muito tempo antes, a recusa de sofrer a
ausência que o preconceito impôs de modo tão violento para toda a vida.
Assim, aqui fica registado somente o amor inicial, carnal e
fraterno entre dois corpos unidos desunidos que descobrem que também eles foram construídos
na base da pulsão ditada pelas duas respectivas almas.
jef, julho 2025
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