sábado, 19 de julho de 2025

Sobre o livro «A Palavra que Resta» de Stênio Gardel, Dom Quixote, 2024



 







Para acabar de vez com o conceito redutor, ou classificação preconceituosa, de livro “queer”.

Estamos perante uma quase-novela onde o amor inevitável, interrompido e truncado entre Raimundo Gaudêncio e Cícero se encontra contido numa carta que ficará por ser lida durante décadas. De um romance sobre como o amor iniciático e pós-adolescente entre dois rapazes, encerrado no sertão profundo, se transforma num longo percurso-poema sobre as várias camadas que o preconceito e o medo podem conter; como esse preconceito, a ignorância e o medo congénitos podem ditar a violência e a profunda infelicidade dos seres. Sobre, ainda, a necessidade premente da palavra dita oralmente e da urgência da aprendizagem na direcção da leitura da palavra escrita, escondida, ansiada.

Como em «Carta de Uma Desconhecida» de Stefan Zweig (1922), «A Palavra que Resta» usa a expressão romântica extrema, neste caso de índole rural e oral (lembrando por vezes a cadência ritmada de Saramago), onde é a leitura adiada que dá o mote para que o leitor siga atrás da história, levado pelo inexorável atraso de décadas de auto-repressão e desejo escondido.

Um romance-novela que tem por centro o longo capítulo “Estrada” que nos indica o percurso a que o protagonista deverá regressar de modo desejado e simultaneamente recusado, como sempre acontece no caminho que se faz de volta ao passado. E, já no final, em outro mais longo capítulo, “Casa” contém o regresso final consumado. Estrada e Casa, o eterno retorno de Raimundo Gaudêncio.  O mesmo desejo de voltar à palavra que devia ter sido dita e ouvida junto a uma cruz na margem do rio, muito tempo antes, a recusa de sofrer a ausência que o preconceito impôs de modo tão violento para toda a vida.

Assim, aqui fica registado somente o amor inicial, carnal e fraterno entre dois corpos unidos desunidos que descobrem que também eles foram construídos na base da pulsão ditada pelas duas respectivas almas.


jef, julho 2025

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