Da alma da paisagem. Do bosque no quintal.
O ulmeiro Ulmus
minor Miller
«S.
Martinho de Anta, 31 de Março de 1961 - Enxertia. Perdeu-se em mim uma vocação
de silvicultor, o que explica muitos suspiros que dei e muitos versos que fiz
nas matas de Portugal e do mundo. Já no tempo da escola o meu grande dia era
sempre o da Festa da Árvore, lamentavelmente apagado do calendário pedagógico,
e que ainda hoje recordo com emoção. As raízes que eu aconcheguei à terra,
diante dos olhos paternais do senhor Botelho! À medida que os anos foram
passando, talvez por me não ser possível plantar negrilhos e mimosas no chão
cimentado das cidades onde tenho vivido, a fúria arborícola esmoreceu. Mas
vejo-me e desejo-me para lhe quebrar o ímpeto com que renasce agora no quintal
que meu Pai me deixou. Coalhei-o de caules, sem conseguir fartar o apetite
recalcado. E visto que seria absurdo tornar mais denso o bosque, meto garfos a
torto e a direito nos ramos vitalícios. Além da íntima compensação que tiro,
como amputador profissional de órgãos humanos doentes, da lúdica transplantação
de órgãos vegetais sãos, é a maneira engenhosa que a imaginação me sugeriu de
multiplicar a floresta na menina dos olhos…»
Miguel
Torga, Diário IX
Onze anos antes, Miguel
Torga escrevia: “a paisagem é, realmente, um estado de alma…”. Nessa altura,
não se sentia tranquilo. Visitava o Minho e a monotonia do verde entediava-o.
Pior, exasperava-o. Tanta folha impedia o olhar de alcançar o horizonte. Deixava-o
melancólico. Ao aproximar-se do berço da nacionalidade só lhe apetecia ruminar.
“O vinho é verde, o caldo é verde…” gracejava. Sobejavam quilómetros para chegar
ao seu reino maravilhoso: Trás-os-Montes. Entre o folhame escondiam-se os
substantivos fraga ou granito da vista de quem criara telúrico, o adjectivo.
Já instalado no interior
do Reino Maravilhoso, era São Martinho de Anta o seu jardim, a paisagem da memória
de seu Pai, o núcleo da alma como lugar próprio. A republicana Festa da Árvore,
o infantil plantio das arvorezinhas, o olhar protector do senhor Botelho. Tudo
passado e condensado num quintal (coisa portuguesa, entre o logradouro, o
jardim e a horta) que se revoltaria, mais tarde, transformando o Éden paterno em
Floresta Negra de impenetrável rebeldia. O remorso do cirurgião competente, o
ímpeto do silvicultor desajeitado lançando raízes de arvoredo farfalhudo e
este, por vingança, a cobrir de sarcasmo verde a telúrica paisagem do escritor.
Desconheço se a fúria esvaída
do arboricultor urbano o terá levado realmente a povoar o quintal do amarelo
invasor das acácias florescidas ou das plântulas esguias de negrilho, ulmeiro, olmo
ou mosqueiro, de sua copiosa identidade.
Estas últimas, caducifólias,
que se fariam de copa aristocrática e tronco robusto, atingindo os 30 metros de
altura, caso os animais domésticos ou selvagens não lhes fizessem poda natural,
já que as folhas possuem alto teor nutritivo, refreando-lhes o incansável apetite.
Ou se ao bicho-homem não
lhe der para aproveitar a madeira escura e resistente na construção de
utensílios e alfaias, ou desviar o ritidoma pelos taninos e outros compostos de
utilidade terapêutica.
Ou se os escaravelhos
curculionídeos Scolytus scolytus,
parentes de gorgulhos e carunchos, com as suas patinhas, não transportarem para
as galerias escavadas uma das estirpes do Ophiostoma
novo-ulmi. O fungo que traz essa doença devastadora – a grafiose.
Se, porventura, resistisse
à voracidade de escritores, agricultores e demais criaturas vivas, as densas
copas encontrariam espaço para medrar em praticamente todo o território
continental, nas matas ribeirinhas e nos solos frescos e profundos
das várzeas. O seu pendor trémulo vem-lhe das bastas folhas de curto pecíolo que
são sustentadas sem transição dos ramos finos e estes logo para os mais
grossos. Um pendor de paisagem quase impressionista. Folhas muito nervadas,
alternas, orladas de dupla serrilha, ovaladas e pontiagudas, ostentando na sua base
nítida assimetria.
Tal como as flores, os
frutos, de curto pedúnculo, nascem quase diretamente dos ramos. Sâmaras
achatadas e com uma asa periférica paleácea, precoces, amadurecendo antes das
folhas concluírem a sua formação.
É muito provável a
sobrevivência de Miguel Torga perante o verde
selvático de S. Martinho de Anta, mas já duvidamos que os seus negrilhos tenham
resistido à grafiose. Sorte igual a da enorme árvore que presidia, impante, à
entrada da Fundação Calouste Gulbenkian e que se despediu de Lisboa, em 2017;
ou à da clássica Livraria Ulmeiro, em Benfica, que fechou portas por 2018
quando do assalto voraz de distinto escaravelho económico.
Que nos fique, então, a
esperança da chegada de alguma variedade resistente que faça vingar a
existência desta árvore quase símbolo, tão importante na compartimentação da alma
da paisagem, e que há milénios projecta a sombra homérica sobre os túmulos dos
heróis nas epopeias da velha Grécia.
jef, maio 2021
escrito no âmbito do projeto Atlas das
Paisagens Literárias de Portugal Continental
https://ielt.fcsh.unl.pt/Projetos/atlas-das-paisagens-literarias-de-portugal-continental/
* botânica
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