«Uma
mão, que facilmente poderia ter localizado lá dentro, saiu da escuridão e,
agarrando-me pelo ombro, comprimiu-me como se fosse uma massa. Em seguida,
fez-me transpor a entrada e ergueu-me casualmente à altura de um degrau. Um
rosto enorme fitou-me e a voz profunda e baixa do gigante disse-me calmamente:
–
Com que então a meter o nariz onde não és chamado, hem? Deixa cá isto comigo,
pá!»
Deste
modo, o investigador particular Philip Marlowe é capturado (e cativado) pelo gigante Moose Malloy. Quase dois metros de altura, vestido à palhaço, chapéu de
aba larga, lenço e gravata amarelos, calças de desporto, sapatos de crocodilo. Ambos
olhavam para cima, para o andar onde parecia sobreviver o estabelecimento de
diversão Florian’s.
É
assim que começa o romance de Raymond Chandler «Farewell, My Lovely» cujo
título português arrasta até à mais baixa planura: «Perdeu-se uma Mulher».
Ainda mais injusto é o título pois Raymond Chandler parece sempre muito mais
animado em despir (ou vestir) as personagens através das características emocionais
que mais perturbam (ou atraem) o célebre detective. Quer sejam masculinas ou
femininas, o romancista coloca-se sempre a meia distância analítica das
personagens, descrevendo-as em pé de igualdade, andrógino e minucioso, deixando
que Marlowe seja seduzido tanto por sedutoras vampes endinheiradas como por californianos
efeminados, alcoólicos e falidos.
Afinal,
Marlowe é um sentimental que tem um calendário com o auto-retrato de Rembrant, homem
já idoso, segurando a paleta suja e envergando um camisão ainda mais sujo,
olhando quem o olha com amargura e traços de alcool. Ali, sobre a mesa, a
imagem mal impressa de Rembrant é o espelho de um Marlowe que, meio abandonado
meio irónico, aguarda simplesmente o toque do telefone para se meter na próxima alhada.
Assim,
por esse olhar ao mesmo tempo cínico e confiante, é descrita a inacreditável
casa de Jessie Florian, profissional do gin, ou os ademanes do petulante
Lindsay Marriott que pede ajuda para reaver um célebre colar de jade roubado à persuasiva
Mrs. Grayle. A casa dos Grayle sai, aliás, de um manual de arquitectura e jardim enquanto
os desfiladeiros sobre a costa californiana são como labirintos percorridos
por personagens que espreitam através de cenários de Frank Lloyd Wright, Alfred
Hitchcock ou David Lynch.
A
história de «Perdeu-se uma Mulher» assenta muito mais nesse detalhe estético dentro
do traço psicanalítico, na volúpia descritiva pelo pormenor extravagante, do
que na simples estratégia da intriga que coloca Philip Marlowe no meio do caminho
desesperado de Moose Malloy procurando a desaparecida Velma.
jef,
julho 2021
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