quarta-feira, 22 de junho de 2022

Sobre o livro «A Dama do Lago» de Raymond Chandler (1943), Visão – Mestres Policiais, Colecção Lipton 2001. Tradução de Jorge Pinheiro. Capa de Carlos Bravo.










Mas, afinal, quem foi encontrada no Little Fawn Lake? Quem é a mulher do lago: Crystal Kingsley, Muriel Chess, Mildred Haviland, Mrs. Fallbrook? A pergunta desde logo se coloca, muito pouco tempo depois de Philip Marlowe entrar no escritório de Derace Kingsley e fazer-se anunciar à sua secretária, Miss Fromsett.

Em Raymond Chandler existe uma pulsão irreprimida para descrever detalhes, mobiliário, decores, arquitecturas – a cor do chapéu de Mrs. Fallbrook; o carro, o escritório fanado e a indumentária surrada do impagável polícia Jim Patton que pede para votarem nele como candidato ao edil pois já está velho para trabalhar como polícia; o olhar azul metálico do agente Al Degarmo; o apartamento às quatro na madrugada de Miss Fromsett; as estradas nocturnas que ligam Bay City à região montanhosa dos lagos; o cheiro do tabaco, dos charutos e do gin derramado aos litros; o corpo musculado e cativante de Christoher Lavery caído na banheira; as tonalidades do pó-de-arroz e do batom de Miss Fromsett.

Tudo fornece à solidão amargurada e mal dormida de Philip Marlowe uma aura quase erótica da sua própria paisagem humana. O seu discernimento sagaz e ininterrupto face à agitação crescente da intriga deixa-o a um passo da exaustão total. Assim o crê o leitor atento e solidário. Mas não. Ele não esmorece, permanece insone, dorido e só. Ternamente solitário.

Philip Marlowe também é enganado e não é emocionalmente infalível mas garante a sobrevivência da verdade, para além dos murros, das contusões e nódoas negras. Apesar de sofrido, o detective de Raymond Chandler não desarma nem enriquece e, também ele, é confundido pela sobreposição das sucessivas imagens femininas que, neste romance, surgem de modo virtual, caleidoscópico, como os reflexos quebrados de «A Dama de Xangai» (Orson Welles, 1947).

Aqui, não interessa a coincidência dos factores, a exiguidade de uma enorme cidade onde todos se encontram e cruzam a toda a hora, a simultaneidade teatral das circunstâncias. A realidade é um espaço demasiado curto para colorir a intriga imaginada por Raymond Chandler.

Afinal, a realidade está mesmo presente no interior de um quarto, no pormenor de um jardim, no detalhe de um quadro preso na parede, no gesto de um cigarro aceso na noite, na ansiedade por detrás da porta que não se abriu.

Apesar do bando de gralhas ortográficas e da ninhada de gatos de tradução que inundam a presente edição, ler este livro é um prazer total, quase um prazer arcaico ou infantil. É a própria definição de leitura.

 

jef, junho 2022

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