sábado, 4 de junho de 2022

Sobre a peça de teatro «Morte de um caixeiro viajante» de Arthur Miller. Teatro D. Maria II, Lisboa 2022.


























Esta história não é sobre o fim do capitalismo. Também não será sobre a sua eterna ressurreição, renascimento, reinvenção. Eu, que nada percebo de história, suspeito que o capitalismo terá nascido com a primeira troca entre aqueles homens que não sabiam escrever nem andar sobre rodas. Mesmo antes dos Fenícios, de Marco Polo e da rota da seda, de Vasco da Gama e dos caminhos marítimos para a Índia, dos mercadores flamengos, dos comerciantes árabes, judeus e dos vendilhões do Templo. Antes de Karl Marx e Friedrich Engels terem inventado a mais-valia. Antes de Vladimir Ilitch Ulianov e Mao Tsé Tung terem inventado a máxima de um país vinte sistemas.

Aqui, pouco interessa tudo o que se passa antes do coração do caixeiro viajante Willy Loman sucumbir ao desastre do sonho americano do quanto mais vendo, mais tiro, mais tenho. Talvez seja mais sobre o desastre de muitos dos nossos próprios sonhos que vão ficando, incólumes de realização, pelo caminho. Esta peça é essencialmente sobre a força que se exerce e persiste em tentar anular a tristeza e a solidão. Não é sobre o eterno retorno mas sim sobre o eterno falhanço. Como diria o outro, esta história é sobre a continuada tentativa de falhamos novamente mas menos mal.

Esta peça é também sobre a alegria de Willy Loman.

«Morte de um caixeiro viajante» é um prodígio de condensação e cruzamentos narrativos, convocando toda a vida de Linda e Willy Loman, e dos seus dois filhos falhados, Biff e Harold, para duas horas de representação emotiva. Desde o primeiro segundo, quando a música desce sobre a madrugada de Willy e este regressa a casa, desasado, e ainda tenta esconder, mentir, sorrir. Todos, nesta crónica de uma morte anunciada, escondem, mentem, sorriem para não morrerem.

Feliz, tão feliz é toda esta (e também nossa) representação da infelicidade humana dos actores maiores Américo Silva, Joana Bárcia, António Simão, Pedro Caeiro ou André Loubet.

Feliz, mas tão feliz mesmo, é a minha memória de Jorge Silva Melo (desde o ano de 1974 quando o vi representar «A Herança» de Marivaux lá pelo alto terraço do Capitólio)!

Que sempre viva Jorge Silva Melo!


jef, junho 2022

«Morte de um caixeiro viajante» de Arthur Miller. Com Américo Silva, André Loubet, António Simão, Hélder Braz, Joana Bárcia, Joana Resende, José Neves, Nídia Roque, Paula Mora, Pedro Baptista, Pedro Caeiro, Raquel Montenegro, Tiago Matias. Tradução Ana Raquel Fernandes, Rui Pina Coelho. Cenografia e Figurinos: Rita Lopes Alves. Luz: Pedro Domingos. Som: André Pires. Direcção artística: Pedro Marques. Encenação: Jorge Silva Melo. Produção Artistas Unidos. Teatro D.Maria II. Junho 2022

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