A Beleza das Empregadas Domésticas. Roubo a frase ao título
da peça de Manuel Jerónimo (Boutique da Cultura, 2024). Ou poder-lhe-ia chamar, igualmente,
A Queda e Ascensão da Vida de uma Mulher-a-Dias. Simplesmente, Maria do Carmo.
Em três partes e de um modo ágil, minucioso, de narrativa rápida e circunstanciada, finamente
descrito e com justas e directas referências a factos políticos e geografias lisboetas, Manuel Abrantes conta-nos a Verdadeira História de Portugal nos
Últimos Sessenta Anos. Aliás, embora esses três capítulos representem mudanças
ou fracturas decisivas na vida de Maria do Carmo, eles situam-nos nas clivagens
que Portugal sofreu nas últimas décadas. Portugal sofreu, levando as populações
do interior no País para o litoral e do litoral para a emigração. Tudo aos
ombros da tenacidade, abnegação, resignação, espírito de luta, resistência e
revolta do universo feminino. Inscrito nas mãos, no corpo e na entrega de
Maria do Carmo. Como se estivéssemos a contemplar as obras intrínsecas de Maria
Lamas ou Maria Judite de Carvalho. De um certo sentido, veio-me à lembrança «Os
Verdes Anos» de Paulo Rocha (1963). Portugal no feminino.
Mas apesar do silêncio quase sistemático e da figura que sugere
subserviência, Maria do Carmo ensina a não ficar no mesmo lugar se esse lugar
implica desistência. Também, ultrapassando os remorsos, a insegurança e os
medos, Maria do Carmo, no final, faz uma súmula filosófica da sua existência
perante o julgamento dos outros:
«Esse compasso de espera trouxe a
Carmo uma sucessão de ideias bizarras. A primeira: talvez Deus esteja a tentar
ensinar-me alguma coisa, mas eu não percebo o que é. A segunda: talvez a culpa
não seja minha, talvez Deus tenha pouco jeito para professor. Mais tarde,
censurar-se-ia pela insolência. Naquele instante, porém, teve de algum modo e
certeza de que não era sua a falha.»
Talvez esta frase indique bem a secreta força de rebeldia de
Maria do Carmo Gouveia que já vinha desde as primeiras páginas
quando foi obrigada a seguir viagem num carro de chapa azul, para ir servir em
Lisboa, na Pascoal de Melo, em casa dos Lemos de Almeida.
Talvez Portugal também tenha servido, também se tenha
resignado e depois rebelado.
jef, abril 2025