quarta-feira, 16 de julho de 2025

Sobre o livro «O Clube do Crime das Quintas-Feiras» de Richard Osman, Planeta, 2021. Tradução de Rui Azeredo.


Existirá um padrão para o humor criativo britânico? Poderemos conceber um modo de “livro policial”?

Após ler este, surge-me um definido “sim” para o primeira e um “não” tímido para a segunda questão.

Mesmo que Richard Osman venha do humor televisivo inglês existe aqui um modo específico de lidar com a terceira idade e as suas permanentes características ou condicionantes físicas, mentais, neurológicas. A jovialidade que ele dá a este grupo amador de investigação criminal vem precisamente de os colocar sob a batuta do “humor-gag”, por vezes sem sentido aparente, que nós temos o hábito de associar ao referido “humor-britânico” – Ron, um ex-aguerrido-sindicalista que lutara pelas condições do trabalho operário, pai do ex-pugilista Jason; Ibrahim que fora psiquiatra de renome; Elizabeth ex-investigadora policial, casada com Stephen, um velho ausente, exímio jogador de xadrez, Elizabeth que tinha sido colega e camarada de Penny (agora em coma, agora sua confidente passiva), esta última casada com o paciente enamorado John. Por fim, Joyce, ex-enfermeira e viúva de Gerry, mãe da arredia filha, a contabilista Joanna. Joyce que apoia emocionalmente Bernard, viúvo de Asima, guardião de um banco de jardim.

O livro é escrito em pequenos capítulos numerados e com narrativa alternada. Uma terça parte está identificada com o nome de Joyce pois são excertos do respectivo diário. A segunda parte é dirigida pelo vaivém das deambulações de Elizabeth, asinha na sua perspicaz correria, enquanto o último terço descreve o trabalho da investigadora Donna De Freitas que trabalha na polícia sob as ordens do inspector-chefe Chris Hudson, dedicado trabalhador, mais dedicado do que gostaria pois fá-lo também para esconder uma determinada frustração afectiva, familiar e até física. Aqui, na descrição de um homem solitário, depressivo e desmazelado, sugere-se a resposta para a segunda questão colocada lá atrás. Sim, Richard Osman concilia a estrutura emocional do investigador policial americano, pos-Marlowe, condensando-o na figura de Chris Hudson, pondo-o, no entanto, em confronto com as figuras dos quatro velhos amigos mais velhos, que lembrarão a divertida sobriedade aristocrática de Marple ou a empatia socio-psicológica de Maigret.

Pelo meio, existe um, dois, três, quatro, talvez cinco mortos espalhados e mais alguns supostos assassinos que poderão escapar por entre as malhas judiciais da sorte oficial ou, por outro lado, serem apanhados (e desculpados) pelo mais criativo grupo privado de investigação criminal. Todos instalados no centro residencial para velhos em Kent, Coopers Chase, instalado em cinco hectares de terreno arborizado com direito a antigo convento, igreja e a cemitério.

Naturalmente, devemos esquecer todas as extraordinárias coincidências (talvez demasiadas) que se encontram em cinco hectares e arredores ou no facto de todos, afinal, possuírem uma ligação mais ou menos forte com o evento, familiar ou geograficamente, Isso talvez pouco importe, pois Richard Osman tem um modo muito divertido de nos emocionar, até, talvez, a uma lágrima, ao transferir o carinho da escrita para todos aqueles seres que aguardam com paciência e alguma energia a chegada do luto. Aliás, o melhor do livro.

jef, julho 2025

 


terça-feira, 15 de julho de 2025

NOS Alive 2025









NOS Alive 2025

Passeio Marítimo de Algés

12 de Julho


Palco Heineken

Líquen 17h00

Constança Ochoa (voz, poesia), Rui Jorge Lopes, Leonardo Patrício (teclas e programação) e Luís Pedro Keating


Dead Poet Society 17h50

Jack Underkofler (voz e guitarra), Jack Collins (guitarra), Dylan Brenner (baixo) e Will Goodroad (percussão)


(Intervalo)

gov.pt – chave móvel actualizada


Bright Eyes 19h00

Conor Oberst (compositor e guitarra), Mike Mogis (multi-instrumentalista e produtor) e  Nate Walcott (compositor, arranjos, trompete e piano)


Future Islands 01h15

Samuel T. Herring (letras e voz), Gerrit Welmers (teclas e programação), William Cashion (baixo, guitarra eléctrica e acústica) e Michael Lowry (percussão)


Palco Coreto

Luís Severo (guitarra e voz) 18h35


Palco NOS

Muse 21h15

Matthew Bellamy (composição, voz, guitarra e piano), Christopher Wolstenholme (baixo, voz e teclas) e Dominic Howard (bateria e percussão)

 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Sobre o filme «A Lua Ascendeu» de Kinuyo Tanaka, 1955



 




















Uma comédia bucólica. Uma pastoral nostálgica. Ou como Kinuyo Tanaka transforma o universo familiar, denso, “interior de portas”, teatral e nostálgico de Yasujiro Ozu numa paisagem extrema, em plena paisagem. Afinal, Ozu é um dos argumentistas, talvez mentor. Um argumento muito fino que praticamente modela a própria comédia, toldando-lhe os contornos de recomeço com a névoa sumptuosa do fim inexorável. A cena final (e a presença do inesquecível Chishu Ryu interpretando o benévolo pai, uma das outras almas de Ozu) assim dita o tema maior do realizador.

Contudo, existe uma alegria sem fim na fotografia, na luz e contraluz, nas sombras da floresta, da casa, do templo, no conluio feliz que a filha mais nova, Setsuko (Mie Kitahara), prepara com o seu proto-namorado, amigo da família, Yasui (Shoji Yasui), tentando a reaproximação da sua irmã Ayako (Yoko Sugi) a um velho conhecido seu e antigo colega de Yasui, Amamiya (Ko Mishima). Uma artimanha que necessita permanentemente da cumplicidade da criada Yoneya, a própria Kinuyo Tanaka. Tudo tem de ser meticulosamente calculado para que a lua ascenda, o luar seja magnífico e o amor, abençoado. Aqui espreita a alma de Shakespeare.

Existe uma promessa de felicidade, mas ela está sempre velada pelo espectro da guerra finda, do desemprego, também da tradição familiar.

Um filme muito belo onde a poesia codifica realmente o desenlace da intriga, envolvendo com secreto entusiasmo toda a família.

Um filme que é a definição do próprio código poético.

 

jef, julho 2025

«A Lua Ascendeu» (Tsuki wa noborinu / The Moon Has Risen) de Kinuyo Tanaka. Com Chishu Ryu, Shuji Sano, Hisako Yamane, Yoko Sugi, Mie Kitahara, Ko Mishima, Shoji Yasui, Kinuyo Tanaka, Junji Masuda, Miki Odagiri, Hiroshi Shiomi. Argumento: Yasujiro Ozu, Ryosuke Saito. Produção: Eisei Koi. Fotografia: Shigeyoshi Mine. Música: Takanobu Saitô. Japão, 1955, P/B, 99 min.

domingo, 6 de julho de 2025

Sobre o disco «More.» de Pulp, 2025, Rough Trade


 

Devo dizer que na segunda metade dos anos 90 do século que passou, os meus ouvidos foram educados de modo sistemático pela hard-pop de «Different Class» dos Pulp (Island, 1995) e pela pop-sinfónica dos The Divine Comedy «Casanova» (Setanta, 1996). Quase um vício.

Trinta anos depois, Jarvis Cocker e a sua trupe de pop-rock circense aparece para negar tudo o que dizia em “Common People”, “Underwear” ou “Disco 2000”. Nega-o mas afirma tudo de novo. Afinal, podemos agora ouvi-lo cantar em “Got to Have Love”:

“Without love you’re just making a fool of yourself

 Without love  you’re just jerking off inside someone else”

Afinal, ainda podemos ter esperança. Podemos voltar a ser crianças em busca de sermos adultos e adultos a exigir ‘demência infantil’, esquecer as fábricas que fecham, esquecer essa coisa de crescermos em torno da puberdade e acender as velas de todos os aniversários ao mesmo tempo. Jarvis Cocker canta que ainda vamos a tempo de esquecer tudo, relembrar tudo e seguir em frente e ainda por cima, sorrir.

30 anos depois «More.» parece não se esquecer de que sou fã (incondicional) do veneziano «Casanoca» dos Divine Comedy, regressando para minha memória com uma ópera ultra-pop orquestral, sinfónica, coral. Dançável e reflectida, entre Burt Bacharach e Angelo Badalamenti, a lembrar a canção falada de Leonard Cohen, a infalível dança coral de David Byrne, a história sem fim de Ziggy Stardust…

Enfim, será que gostamos porque algum dia já gostámos. Talvez seja o crédito ou o defeito da memória de longo termo… Pouco me importa, ouço «More.» com o entusiasmo de hoje sem beliscar o papel de parede da pop britânica de há três décadas atrás. E é óptimo.


jef, julho 2025

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Sobre o filme «A Vida Luminosa» de João Rosas, 2025



 






























Reconhecer Lisboa pelos passos que o cinema nos concede. Reais e falsos ao mesmo tempo. Tão banais e quotidianos quanto literários. A vida é assim: melancolicamente luminosa.

A primeira longa metragem de João Rosas é uma espécie de achado. E não resisto a confessar, meio envergonhado, que a frase me surgiu ao ver o filme começar com o coro da Casa da Achada a cantar em polifonia “a única certeza que temos é a consabida e permanente dúvida”. Um arco longo onde a câmara vai mostrando cada cantor até se fixar em Nicolau (Francisco Melo). Todo o filme se desenvolve como esta cena, parcimonioso mas convicto, mostrando cada rua da cidade como habitat ou residência de um grupo de jovens que circulam contidos como as moléculas num frasco de gás que se deixou em repouso. As dúvidas, os receios, os temores e os leves dramas são como uma sugestão de uma irónica visão do futuro. Tudo pode correr mal mas o final do dia pode sempre trazer uma molécula de esperança.

Nicolau faz 24 anos mas não comemora. Vive na ressaca do abandono da namorada que partiu para um longínquo retiro espiritual, Nicolau aguarda qualquer coisa até a sua bicicleta avariar, até sair de casa dos pais para um quarto alugado, até aceitar um emprego numa livraria de bairro onde um personagem cliente-residente, o próprio realizador João Rosas, é convidado a abandonar os filmes para se dedicar à literatura, coisa para a qual terá bastante  mais talento. Quem o diz é alguém que esclarece o paradigma nefasto do capitalismo. Nicolau faz publicidade à livraria na rua vestido de Pai Natal, em plena Primavera. Na Cinemateca, entre a égide de Joseph Von Stroheim ou Robert Bresson, ele senta-se ao lado de uma réplica da antiga namorada. Mas é com Chloé (Cécile Matignon) que ele reencontra o espaço erigido para encerrar os mortos e o tempo que para estes terminou. Nicolau passa a sonhar com cemitérios.

Em entrevista, João Rosas cita todos aqueles cineastas que fazem filmes a partir de nada, a partir dessa existência que tem tanto de comédia como de nostálgica finitude. A vida, afinal, quando damos por ela, olha, já lá vai. Inevitável é citar as comédias e provérbios de Éric Rohmer, o país nova-iorquino de Woody Allen, o círculo eternamente político e palavroso de Nanni Moretti, a cidade castelhana onde nada acontece de Fernando Trueba, os monótonos dias seguintes e teatrais do sul-coreano Hong Sang-soo. Afinal, a vida é igual em todo o planeta. Todos eles (João Rosas incluído) fazem aquela proeza de nos levar atrás de coisa aparentemente nenhuma e, por fim, quando termina o filme, dizem: estão a ver, eu não vos disse, afinal a felicidade é tão honesta e comum como a infelicidade ou a depressão, vale a pena filmá-la.

Vale a pena também vivê-la, apesar de, na sua grande parte, não lhe encontrarmos grande drama ou paixão substancial.

Apesar de tudo haverá sempre tempo para o cinema e para a literatura.


jef, junho 2025

«A Vida Luminosa» de João Rosas. Com Francisco Melo, Cécile Matignon, Margarida Dias, Federica Balbi, Gemma Tria, Ângela Ramos, Francisca Alarcão. Argumento: João Rosas. Produção: Pedro Borges, Midas Filmes. Fotografia: Paulo Menezes. Som Olivier Blanc. Guarda-roupa: Susana Moura. Portugal / França, 2025, Cores, 106 min.

domingo, 29 de junho de 2025

Sobre o livro «Desconhecido Nesta Morada» de Kathrine Kressmann Taylor, Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, 2025 (1938). Tradução e prefácio de José Lima.



 








Uma pequena grande novela dos tempos que foram para os tempos que estão.

Uma reedição a demonstrar a perspicácia editorial dos Livros do Brasil. Uma autêntica pérola que esperemos não venha a ser de novo premonitória de odiosos tempos futuros, de regresso tenebrosamente incompreensível.

A escritora americana Kathrine Kressmann Taylor publica em 1938, dois anos depois de um certo Congresso de Nuremberga e no ano em que ocorreu a “Noite de Cristal”, a curta ficção «Desconhecido Nesta Morada» tão eficaz quanto visionária, e que nos devolve o estupor e a ansiedade do crescimento do nazismo após a grande depressão na Alemanha.

Tal como Bram Stoker em «Drácula» (1897), Kathrine Kressmann Taylor usa o modo epistolar para nos contar a história de dois amigos íntimos, sócios de uma galeria de arte em São Francisco, Martin Schulse e Max Eisenstein, quando o primeiro decide regressar à Alemanha natal nos finais de 1932.

O romance termina de modo gráfico a 18 de março de 1934. Adressat Unbekannt Desconhecido nesta morada.

Curioso o facto de eu ter lido há pouco tempo, de modo acidental, o romance de Georges Simenon «Os Três Crimes dos Meus Amigos», publicado inicialmente também em 1938, que nos coloca igualmente frente à depressão económica e política ocorrida na Europa entre as guerras.

Em «Desconhecido Nesta Morada» não existe julgamento moral superiormente omnisciente. Apenas nos podemos agarrar aos factos descritos nas cartas trocadas pelos correspondentes. Apenas, temos acesso factual ao desmoronamento de uma relação. Apenas assistimos, sem adjectivos ou advérbios de modo atenuantes, à progressiva transformação política e social de Martin Schulse e, em simultâneo, ao crescente desespero e posterior raiva distante do judeu americano Max Eisenstein.

O posfácio do filho da autora, Charles Douglas Taylor, esclarece e oferece-nos talvez uma pequena centelha de esperança no que respeita ao ódio e à violência políticas contemporâneas, ao descrever o sucesso que estas cartas têm tido a nível universal ao longo das décadas. O regresso oficial da estupidez mundial e do horror nazi pode ainda não consistir numa brutal inevitabilidade presente e futura.


jef, junho 2025

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Sobre o livro «Boneca que Mata» de John Creasey, Romano Torres, Colecção Grandes Mistérios n.º 140, 1966 (1959). Tradução de Aurora Rodrigues (Dora).



 







Ir de férias e encontrar numa certa prateleira com algum pó, algumas teias sem aranhas, encostado a outros tantos de lombadas esbranquiçadas pelo Sol de décadas, um livro policial (sempre de bolso), daqueles publicados para serem comprados no quiosque das estações com a finalidade de nos levarem pelos carris do comboio, sem que deles déssemos conta. Letra pequena, papel que amarelecia. Histórias cuja intriga quase que adivinhamos, mas sempre mirabolante com as suas coincidências inverosímeis, heróis belos e incorruptíveis, jovens lindas e manipuláveis, polícias malandros, repórteres que se infiltram. A causa por vezes pouco importa, a linha corrida da intriga, essa sim!

O inglês John Creasey (1908 –1973), com centenas de livros publicados e mais de 20 pseudónimos, inventa essa personagem The Toff, o Honourable Richard Rollison, londrino, a morar em Gresham Terrace, e secundado por um mais que devoto mordomo, cozinheiro, mais que “olhos e ouvidos do rei”, principalmente substituto nas investigações, sabemos nós mais lá o quê, o Jolly.

O que é mesmo muito curioso neste romance é o facto da questão central ser a revolta ostensiva contra a imigração jamaicana para Londres (Inglaterra) e os meios ilegais que usam para os obrigarem ao repatriamento: o medo imposto através de objectos voodoo usados etnograficamente nas Índias Ocidentais. Para além, da importância da imprensa inglesa tabloide na interferência da investigação policial e na manipulação da opinião pública.

Quem diria que, quase 70 anos depois, iria ler um simples romance de comboio, com o mesmo ódio, a mesma irracionalidade bestial do ser humano que se passa actualmente mesmo aqui, nas nossas barbas, pelas nossas ruas, pela nossa Assembleia da República.

Claro que, no fim, Rollisson apresenta as boas razões para a imigração e a sua integração; desvenda todo o caso com a ajuda dos pugilistas de uma escola de bairro; usa um método inacreditavelmente subtil para aniquilar o criminoso, o falso repórter Fitzherbert, aliás Warren; a secretária linda e apaixonada Annabel Lee mostra-se arrependida pelo seu erro; e o mordomo Jolly irá certamente preparar uma chávena de chá preto, talvez Earl Grey, e todos ficarão contentes.

Adoro livros policiais!

 

jef, junho 2025

 

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Sobre o filme «Queer» de Luca Guadagnino, 2024





 



















Pelo que sugere, a obra de William S. Burroughs é interminada e interminável. Digamos inconclusiva, ou intransponível igualmente. Já com «O Festim Nu – Naked Lunch» (1991) assim parecia e o caso tinha a ver com David Cronenberg. Agora em «Queer», Luca Guadagnino, torna-se muito mais sério. Em três capítulos e um epílogo, temos um longo e enfadonho caminho onde o actor Daniel Craig (William Lee), (mas também o seu companheiro de estrada, Eugene Allerton, interpretado por Drew Starkey), tem de fazer o supremo esforço de manter a(s) personagem(ns) em estado de permanente desespero ébrio e tabágico, já para não falar da heroína. Tanto a William Lee como a Eugene Allerton não lhes é permitido sair do mesmo registo do princípio ao fim, entre o ócio negligente e a permanente procura e fuga ao desejo sexual. Talvez mesmo as mais verdadeiras, discretas e ao mesmo tempo expressionistas sejam mesmo as cenas de pulsão sexual. Tudo o resto parece surgir de um conjunto de tele-discos cuja banda sonora tem a sina de retirar o espectador do centro na sua exigida concentração cinéfila. Nirvana e New Order pelo meio de cenários da velha cidade mexicana dos anos 50 do século passado, parece um exagero ou mesmo, delírio anacrónico.

Por outro lado, para colocar um espectador no meio da história não é necessário contar-lhe tudo tim-tim por tim-tim. Nem será lícito tocar no ambiente de hotéis, quartos e corredores, espaços, adereços, decores e cores que só David Lynch pôde alguma vez oferecer-nos. Nem criar, entre a inteligência artificial e os efeitos especiais, cenários que são devidos ao mundo play-mobil de Wes Anderson. Ou cenários nocturnos, entrevistos pela janela, com reflexos de néons e ansiedade, que só se permitem exibir por Hitchcock. Terminando com um mundo alucinado de “penetrante carnificina” entre Lee e Gen que também devia pagar crédito a David Cronenberg, volto a citá-lo.

Tudo para chegar à conclusão lógica de que o amor é finito e o desejo um passo talvez evitável para a morte que pelo que consta é eterna. Já para não falar de que, afinal, a telepatia não tem a mesma eficácia do tabaco, da tequila, da heroína e de todas as substâncias neuro-conectoras enterradas nas florestas tropicais a América do Sul.

Um verdadeiro desperdício de actores num acto de cinema com tiques de presunção voyeurista que vem de um determinado universo “queer” auto-complacente, egocêntrico”, hiperbólico, quase mórbido.


jef, junho 2025

«Queer» de Luca Guadagnino. Com Daniel Craig, Drew Starkey, Daan de Wit, Jason Schwartzman, Henrique Zaga, Colin Bates, Simon Rizzoni, Drew Droege, Ariel Schulman, Andra Ursuta, Lesley Manville, Lisandro Alonso, Michael Borremans. Argumento: Justin Kuritzkes segundo o romance de William S. Burroughs. Produção: Luca Guadagnino, Lorenzo Mieli, Jaun D. Bustamante. Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom. Música: Trent Reznor, Atticus Ross. Guarda-roupa: J.W. Anderson. EUA / Itália, 2024, Cores, 137 min.






terça-feira, 24 de junho de 2025

Sobre o livro «Os Três Crimes dos Meus Amigos» de Georges Simenon, Relógio D’Água, 2018 (1938). Tradução de Ângelo Ferreira de Sousa.



 







O que é espantoso no prolífero, imaginativo, desconstructor da narrativa clássica, Georges Simenon, um autor elogiado por Georges Steiner ou José Tolentino de Mendonça, é a sua capacidade de em curtos romances, quase novelas, oferecer-nos a plenitude de um mundo social, para não dizer político, centrado na circulação de personagens do seu próprio meio, sem nunca parecer dogmático ou presunçoso. Talvez a intrínseca capacidade para analisar cada situação através do humor, por mais trágica que possa ser, seja o seu trunfo dourado. Em segundo lugar, e não menos importante, é a leveza sintética da narrativa ou a imagética breve das descrições.

Dizem que não existem muitos modelos para construir um romance. Sequer a diversidade de temas. Mas se existe apenas um romance original, ele será o romance iniciático, aquele que nos mostra como alguém ou certo grupo se transforma desde a infância até à idade adulta passado pela adolescência e a puberdade. «Os Três Crimes dos Meus Amigos» é um bom exemplo disso. Tal como «O Obelisco Preto» (Erich Maria Remarque 1956), este texto conta-nos a história muito simples de como a infância não é suficiente para salvar alguém dos crimes que uma guerra deixa no interior de uma geração de adolescentes. Alguém de nome Simenon questiona-se sobre a razão de ter ele sobrevivido ao horror e, pelo contrário, os Dois Irmãos, o Pequeno K, o Fakir, Deblauwe ou até o mais velho e misterioso livreiro Hyacinthe Danse tenham sido varridos do mapa da moral existência, assim, sem mais, apesar de “tudo isto ser medonhamente banal”. Mas será que a respectiva sobrevivência inocentá-lo-á de culpa pelos crimes dos seus próximos amigos. É a dura premissa deste livro extraordinário.

Em pouco mais de 140 páginas ficamos com o firme odor, por vezes leve, por vezes execrável, das consequências da guerra nas relações pessoais, nos comportamentos sexuais, na descoberta cultural e filosófica, na desvalorização monetária, no descrédito das relações entre classes sociais. Como um pequeno tratado de História, onde no título e logo na primeira página o autor nos avisa da conclusão a que chegará o romance, ficamos com uma visão real das consequências bélicas entre fronteiras que unem a Bélgica, os Países Baixos, a França e a Alemanha (as notas de rodapé dão uma preciosa ajuda).

Liège está no centro, os crimes são logo anunciados, mas o coração do leitor afinal fica preso ao horror sistemático com que a guerra carimba definitivamente os jovens corações que a viveram.


jef, junho 2025

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Sobre o livro «Margarita e o Mestre» de Mikhail Bulgakov, Círculo de Leitores, 1991 (1928-1940). Tradução de António Pescada. Sobrecapa de José Teófilo Duarte.



 







Um romance que pode ser entendido como um ajuste de contas literário em forma de fantasia. Uma fantasia muito particular em forma de aventura ou viagem continuas, sustentada pelo tom onírico ou mesmo surrealista (já para não falar em psicanálise). Lembro-me dos textos de Nikolai Gógol, Danill Harms ou Joseph Roth. Lembro ainda aqueles que nos transportam para um mundo onde tudo nos pode deslumbrar sem darmos muito crédito às leis da física, da química e de outras matérias que governam o nosso planeta («Manuscrito Encontrado em Saragoça» de Jan Potocki, «O Homem que Era Quinta-Feira» de G. K. Chesterton ou mesmo o «Alice no País das Maravilhas» de Lewis Carroll).

Um romance escrito sob o desígnio de um irresistível humor. Talvez o melhor método iconoclasta para combater a suprema falta de liberdade artística.

Um romance como um ajuste de contas literário contra o espartilho da burocracia soviética (e de uma censura medonha) que impedia a livre criatividade agrilhoada por um sistema de regras ou uma tipologia pré-estabelecida para heróis vencedores. Escrito a dois tempos, duas partes, que se unem no momento em que Ivan Nikolaevitch “Bezdomni” se encontra numa certa noite, numa certa clínica de um certo Stravinski, com o Mestre. O Mestre que lhe narra o encantamento por Margarita, sua musa, feiticeira e companheira, e lhe descreve o extraordinário romance que redigiu sobre o arrependimento de Pôncio Pilatos perante a entrega (e a inteligência) de alguém que iria ser levado ao sacrifício político por altura da Páscoa judaica. Um tal Ieshua “Ha-Nozri”. Um texto que,  entrecortado, justifica a terceira parte de «Margarita e o Mestre».

No entanto, as páginas iniciais levam-nos ao Lago do Patriarca, em Moscovo, quando inicialmente o citado poeta Ivan se reúne com o director de uma associação literária famosa, Mikhail Alexandrovitch Berlioz, para discutir a revisão de um poema sobre o “não-Jesus”.

Contudo, dali a pouco Berlioz ficará sem cabeça.

E também surgirão, vindos da consubstanciação da atmosfera o prestidigitador, mefistofélico mas salvador, Woland que traz no séquito Azazello, Koroviev e o gato Behemot.

Um romance desconcertante, político, hiperbolicamente visual, que também nos dá a entender um certo mundo eslavo e mágico (e em tempos de Estaline). Um romance para quem não tem medo da imaginação, do diabo, de feiticeiras e de gatos que andam de transportes públicos (e pagam o seu bilhete).


jef, junho 2025

terça-feira, 10 de junho de 2025

Sobre o filme «A Prisioneira de Bordéus» de Patricia Mazuy, 2024

 


















Após o longo genérico inicial reflectindo o tecto "botânico" que vai espelhando o deambular de uma mulher numa loja de flores ao som da magnífica canção “Je sens tu mens”, percebemos que Alma (Isabelle Huppert) é uma mulher diletante, rica, sem um objectivo concreto, que se passeia com uma caixa de bolos na mão para retardar a chegada à sua mansão recheada de obras de arte de alto valor. A cena é da actriz até nos apercermos que irá encontrar brevemente Mina (Hafsia Herzi), mulher magrebina que trabalha sem descanso numa lavandaria, com dois filhos e que faz muitos quilómetros para ir visitar o marido no estabelecimento prisional em Bordéus, preso por roubar relógios. Elas estão em campo opostos da luta de classes e da justiça. Também Alma tem o marido preso na cela ao lado mas por razões bem diferentes.

Alguém como eu que não esquece o filme «O Segredo de um Cuscuz» (Abdellatif Kechiche, 2007), mal Hafsia Herzi aparece no ecrã sabe que ela irá  responder taco a taco à mestria de Isabelle Huppert. Duas interpretações que nos vão prendendo de modo irremediável mas que, ao mesmo tempo, nos fazem esquecer, aos poucos, o móbil da intriga e desvanecer esse possível confronto social, a luta de poder e de dominação entre as personagens.

É impossível não comparar (com alguma desilusão) o anterior filme de Patricia Mazuy, esse extraordinário filme de suspense, amoral, carnal, quase visceral, de nome «Bowling Saturno» (2022).


jef, junho 2025

«A Prisioneira de Bordéus» (La Prisonnière de Bordeaux) de Patricia Mazuy. Com  Isabelle Huppert, Hafsia Herzi, Noor Elasri, Jean Guerre Souye, William Edimo, Magne-Håvard Brekke, Lionel Dray, Jana Bittnerová, Lamya Bouladiz, Céline Chlebowsky, Any Mendieta, Marianne Auzimour, Robert Plagnol. Argumento: Pierre Courrège, François Bégaudeau e Patricia Mazuy. Produção: Alice Girard e Xavier Plèche. Fotografia: Simon Beaufils. Música: Amin Bouhafa. Canção “Je sens tu mens” (Amin Bouhafa / Patricia Mazuy) cantada por Sarah McCoy. França, 2024, Cores, 108 min.


sábado, 7 de junho de 2025

Sobre o disco «Gloom» de Decline and Fall. Bleak Recordinds, 2024.



 







Será necessário regressar a «Gloom», o primeiro EP do trio Decline and Fall, para compreender o mundo que os envolve (nos envolve). Talvez mesmo esperar pela quarta e última faixa, “Europa” para entender como a música (a arte) pode estar, agora mesmo, a fazer ainda mais sentido.

                                   «Villains as leaders

                                      Banks are now the white bull

                                      People are weaker, nothing left to lose

                                      Land soaked in blood, in mud we crawl

                                      Bang the war drum, as we decline and fall»

Assim fala o poema de Ricardo S. Amorim. Premonitório? Talvez sim.

Contudo, as quatro faixas (“Belief”, “Undone”, “Gloom” e a referida “Europa”) têm um lado muito mais espiritual, mesmo psicanalítico, do que político. Tudo gira no interior de uma Europa que nós construímos dentro de nós do que a Europa politicamente histriónica, também a das redes digitais, que nos inunda e irrompe na nossa intimidade espiritual.

Digamos, que aqui encontro um lado cinematográfico. Como se um certo David Lynch viesse convocar os Portishead ou Joy Division para construir um mundo visual forte e peremptório, onde Beth Gibbons, Ian Curtis ou Julie Cruise fossem apenas peças soltas que a minha própria memória, ostensivamente parcial, insiste em sobrepor e baralhar.

Porque é evidente que o vigor obscuro, entre a pena e o remorso, a perda e a eterna busca, é a obstinada independência e a força resistente e original de Decline and Fall (Armando Teixeira, Hugo Santos, Ricardo S. Amorim, e o baixo convidado de Miguel L. Pereira em “Undone”).

Música que devemos continuar a ouvir no nosso futuro.            

 

jef, junho de 2025

https://banddeclineandfall.bandcamp.com/album/gloom

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Sobre o filme «Marés Vivas» de Jia Zhang-ke, 2024


































Longe vai o ano de 2006, quando estreou o soberbo «Still Life – Natureza Morta». Longe vai também a inauguração em Pequim dos Jogos Olímpicos de 2008 ou a pandemia global de 2019. Este filme é como um enorme álbum de fotografias animadas e musicais. É um belo arquivo fotográfico, cheio de tele-discos, que não assume a presunção de se sobrepor a toda a obra do próprio realizador, apesar de nos recontar a história de Pequim a Zhuhai passando pela velha cidade de Fengjie que se viu submergida pela colossal barragem das Três Gargantas, destruída tijolo a tijolo com milhares e milhares de deslocados. Assim nos conta o tal filme «Still Life – Natureza Morta». Soberbo, repito.

Aqui vamos visitar (ou revisitar) a história recente da China e da produção artística do realizador através de certo “desencontro-procura-encontro-desencontro” entre Qiao (Zhao Tao), cantora e dançarina, com o produtor musical Bin (Li Zhubin).

Um filme para quem gosta de observar e escutar sem tentar ligar as imagens captadas, aqui e ali, como sinal de um povo e do seu modo privado no seio do espaço público. Nunca invasivo ou etnográfico, mas consciencioso e amável. Talvez mesmo essa característica de silencioso observador e coleccionador de olhares e gestos o mais importante e belo neste filme-resumo “Jia Zhang-ke”.


jef, junho 2025

«Marés Vivas» (Feng liu yi dai / Caught by the Tides) de Jia Zhang-ke. Com Zhao Tao, Li Zhubin, Pan Jianlin, Lan Zhou, Hu Maotao, Xu Changchu. Argumento: Jiahuan Wan e Jia Zhang-ke. Produção: Zhang Dong, Shozo Ichiyama, Casper Liang Jiayan. Fotografia: Eric Gautier, Nelson Lik-Wai Yu. Música: Lim Giong. China, 2024, Cores, 111 min.