Pátria Minha Morta Amada
Li o livro ao sabor de golos, golpes e golfadas. Quero dizer, não o li de uma
só toma, como mandam fazer com os comprimidos e as doenças. Li-o aos...
pedaços, como acontece com os iogurtes que, de ácidos, se tornam frutuosos.
Li-o todo, da primeira à última página, assim, mas em fragmentos, como se
estivesse dentro de uma casa forrada de espelhos, cheia de esquinas e vértices,
em companhia de alguém que empunha uma pedra e prepara-se para a atirar,
recuando depois perante os reflexos do passado e do futuro. Os meus
companheiros são três, mas são o mesmo. Estamos todos numa casa mortuária, mais
a vigiar do que em vigília fúnebre, a velar (suspeitar) uma morta incógnita:
Ângela, Pátria, Europa, Guerra, armas escondidas… Sinto o estuque a cair e a
humidade, o Cristo de pau carunchoso, a luz que vacila, o medo e a traição. O
reflexo desse alguém que pode atirar uma pedra no escuro da noite. Lembrei-me
da cena de «A Dama de Xangai» de Orson Welles, 1947. A angústia por uma Europa
estilhaçada, uma memória que não pode tomar-se de um só golo, nem vomitar-se de
uma só golfada. Apenas o golpe da pedra sobre a lâmina de vidro (adiada, mas
certeira). De novo, a solução de alguma coisa que tem a ansiedade como
presente. Portugal. Porém, tal como em «A Dama de Xangai», está tudo ensopado
de uma calda irónica, recôndita mas indelével, um sarcasmo mauzinho, um
perverso convite ao leitor para sorrir do que não deve, como não deve, e depois
ter pesadelos. (Também não esqueci Eça de Queirós, Mário Henrique Leiria, Mário
de Carvalho…)
Mas, por fim, acabei por
tomar um táxi e voltar a casa.
jef, maio de 2013
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