quarta-feira, 30 de abril de 2025

Sobre o filme «Vermiglio» de Maura Delpero, 2024


 
























A azul e branco ou o sofrimento da neve. Também o sofrimento da Primavera.

A grande guerra está a terminar e numa aldeia muito a norte na Itália montanhosa chegam dois desertores que devem ser escondidos. Um deles quase família do professor Cesare (Tommaso Ragno), o outro, forasteiro vindo do mais sul da Itália, Pietro (Giuseppe De Domenico). A família do professor é grande e em tempos de guerra tudo tem de ser esforçadamente conquistado e repartido entre todos. E todos têm uma história para contar, começando por Lucia (Martina Scrinzi), filha mais velha do professor, que não fica indiferente a Pietro. «Vermiglio» é uma história simples, tão simples como o frio da neve ou, depois, a ansiedade pelas cartas que chegariam através do Mediterrâneo, já na Primavera próxima.

Todas as histórias se cruzam quase em silêncio, como o nascimento dos bebés, ou a sua morte. Como a repressão do ódio adolescente ou da libido escondida. Como o amor devido a todos e por todos distribuído. Como o leite bem medido, como a refeição frugal pelo Natal. Como as notas e o aproveitamento dos alunos no final do ano lectivo.

O olhar melancólico e resignado pelo ciclo injusto da vida, um ciclo contudo inelutável. Um olhar feito essencialmente pela aproximação aos objectos que as mãos tocam, que os olhos observam como se fossem os objectos a contar a verdade sobre o sentimento que as personagens devem calar. Um olhar feminino acutilante e de uma beleza feroz onde a voz da mãe é a única a quem o grito de revolta é permitido.

Tal como no outro filme italiano, «As Quatro Voltas» de Michelangelo Frammartino (2010), a paisagem e a sua eterna mutação conduzem a narrativa pelo ciclo da vida e do retorno. Torna-se a personagem principal.

Filme de um belo e extremo romantismo.


jef, abril 2025

«Vermiglio» de Maura Delpero. Com Tommaso Ragno, Roberta Rovelli, Giuseppe De Domenico, Roberta Rovelli, Martina Scrinzi, Carlotta Gamba, Orietta Notari, Santiago Fondevila, Rachele Potrich, Anna Thaler, Patrick Gardner, Enrico Panizza, Luis Thaler, Simone Benedetti, Sara Serraiocco, Domenico Ferraioli, Leone Gubert, Romina Cescolini, Fabio Daprà, Maurizio de Florian, Matteo Adriano Delpero, Sabrina Campagna, Melissa Bertolini, Luca Genetti, Maurizio Bontempelli, Pietro Longhi, Paolo Begher, Elio Gregori, Dario Ruffini. Argumento: Maura Delpero. Produção: Maura Delpero, Francesca Andreoli, Santiago Fondevila, Leonardo Guerra Seràgnoli. Fotografia: Mikhail Krichman. Música: Matteo Franceschini. Guarda-roupa: Andrea Cavalletto. Itália / França / Bélgica, 2024, Cores, 119 min.

terça-feira, 29 de abril de 2025

Sobre o livro «Why Not Now? Memórias, poesia, reflexões e outros textos» de João Carlos Roque, 2024










Este não é um livro sobre gatos, nem sobre o silêncio, apesar de começar com aqueles e terminar com este.

Como ler João Carlos Roque?

Mais do que um comunicador, é um conversador. Exerce a vocação de narrador, de contador da realidade, em simultâneo apelando, exigindo até, um interlocutor, um ouvinte para que possa documentar por palavras suas os facto, os actos e os dias que por ele vão passando. João Carlos Roque revela-se, por isso, um diarista ou, neste caso concreto, um “anuarista” a partir dos anos 50 do século passado quando os Natais aconteciam pela sua Covilhã da infância, até chegar a um certo passado-presente que ele toma nas próprias mãos como dádiva.

Por que o faz agora é a questão que coloca ao leitor através do título que regressa de um blogue que o ocupou (e o acarinhou) durante meses, largos anos, oferecendo-lhe a possibilidade de publicar correntemente através da divulgação digital, obtendo o contacto imediato com os leitores que o incentivavam directamente a continuar as sequentes crónicas ou histórias.

Mas apelidar a este conjunto de textos contos ou crónicas não será justo pois, apesar do autor não se coibir de expressar as suas opiniões, nunca termina ele com a comum moral final ou conclusão diegética que as crónicas normalmente exibem.

O livro é uma espécie de anuário de viagens, de percursos, de amor e de sexualidade (no caso, homossexualidade), expressos numa assumida agilidade narrativa, de uma descrição apaixonada e rigorosa descrição dos pontos turísticos ou até dos casos mais ou menos caricatos e divertidos, que até poderiam ser esquecíveis caso não tivessem sido vividos com tanta intensidade e emoção. Também nada tem de confissão pois aqui o autor apresenta-se integralmente, de corpo e espírito inteiro e uno.

Tal como no livro anterior, «A Ilha de Metarica – memórias da guerra colonial» (Index e-books, 2014), um tema também documentado no presente livro, os relatos são simples, sem constrangimentos ou pudor da intimidade ou do quotidiano. Os percursos, as cidades, as amizades, os encontros, os olhares são narrados comoventemente directos, olhos nos olhos do leitor. É interessante que a fotografia de capa seja a de um olhar sério, frontal, intensamente felino, que nos impõe o silêncio sem nunca nos silenciar. (Conhecemos bem tal imposição pelos gatos). Diga-se que os gatos surgem apenas em dois apontamentos: essa espécie de salmo «Há Muito Tempo» e mais no final «Boris e Teka», este por exigência do público amante desses bichos.

Porém, na página 59 «É na solidão que me Encontro» o livro parece suspender-se num ponto de situação emocional onde é colocada a poética do abandono. Um aparente contraponto de todo o livro para quem vive a par e passo com a comunicação.

Outro contraponto, ou apenas para contrariar a confessa falta de vocação como ficcionista, podemos tomar os micro-contos «A Borboleta» ou «José», exactamente como a sua poesia na qual não se ausenta a profundidade e o ritmo liricamente românticos.

Porém, o diálogo ou a rumo do livro tem uma significativa viragem em 2004, com o aparecimento de um nome e de uma cidade, personagens capitais: Déjan e Belgrado. A partir daí toda a viagem muda de figura.


Então, como ler João Carlos Roque?

Como grande colecionador e memorialista que o autor não pode desmentir que é. O autor pede tempo. Pede tempo para si e para que o oiçam, mesmo que, respeitosamente, depois o contradigam. Grande dialogador, jamais provoca, apena conta ou relata em tempo, que é seu por direito, um tempo que é presente, diria urgente, para lhe trazer de volta quem já partiu ou anda longínquo. O tempo e a distância, dois assuntos que apenas por vezes só o silêncio parece dar sentido.

Assim começa, assim o livro termina.


jef, abril 2025

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Sobre o livro «Estação Morta» de Maria Ondina Braga, colecção O Chão da Palavra, Vega 1980.


 









Maria Ondina Braga é uma autora silenciosa. A escrita aparece como um véu tutelar sobre a moderna literatura portuguesa. Igualmente como fundação estruturante da escrita contemporânea em português. Contudo e apesar de muito respeitada, quase não é lida.

Como a própria autora, é uma escrita que viaja pelos recantos do mundo, da Europa ao Oriente, iniciando a escrita de viagem e as autobiografias ficcionais. É uma autora solitária, melancólica, impressionantemente profunda, mas será injusto classifica-la como feminista ou depressiva.

Nos contos de «Estação Morta», a viagem é permanente, a solidão persistente, a interioridade que se fecha sobre si, mas também se revolta, revela-se uma espécie de coda. Também, a novidade da revolução dos cravos, do movimento dos militares ou a descolonização parecem estar como uma trama sobre a qual as personagens femininas se vão desvendando.

A desabrida Carolina, depois espectro de uma casa quase assombrada, a “Vivenda Hortense”; A Ritinha da renda de bilros, a Marina e a Senhora Teresa; o abraço de despedida da chinesa Miss Thérèse; a vida e paixão de Cremilde; a fuga e o reencontro com Virgilina; o queixo como trauma de Clementina; o profano, a devoção, a dúvida e os votos e da Irmã Desterro; o mal interior incontrolável de «O Mal Sagrado».

Contudo, Maria Ondina Braga também é uma descritora do processo masculino: numa viagem de barco de Singapura e Ceilão, encontramos Mr. Green que abandonou a produção de chá e a vida familiar e mundana pelo amor às aves («O Homem Pássaro»); talvez o grande mistério do Grande Hotel do Parque não estará propriamente em Dora ou em Mme. Henriette, mas no instável Lourenço («Estação Morta»); e o descontentamento burguês pela fisionomia de Clementina é sublinhada pelo exaspero de Rogério.

O clima quase misterioso do conto «Estação Morta» fez-me lembrar aquele de Teresa Veiga, «A Estalagem de Aldebarã» (2024), ou «O Barão» de Branquinho da Fonseca (1942).

Maria Ondina Braga é uma escritora gigante e inclassificável que terá a sua obra completa editada pela Imprensa Nacional. Até agora saíram: 1 – Autobiografias Ficcionais e 2 – Biografias no Feminino.


jef, abril 2025

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Sobre o filme «Cão Preto» de Guan Hu, 2024



 




















Um filme encantado. Desses difíceis de catalogar, de definir, saber qual é a história que realmente estão a contar. Um filme estranho mas que nos cativa, em primeiro lugar pelo coração, depois pela fotografia, e não por último, pela paisagem, pela arquitectura, por um certo design, moral e enternecedor.

O deserto de Gobi. Uma paisagem montanhosa sem fim, a noroeste da China, a sul da Mongólia, a caminho de uma povoação igualmente desertificada, desocupada por decreto, a um passo da demolição. Uma enorme matilha de cães vagueia pelo deserto e faz capotar a camioneta onde viaja Lang que regressa a casa após dez anos de prisão. Lang não fala. O pai é cuidador do decrépito e abandonado jardim zoológico, com pavões, um lobo e um tigre da Manchúria. Um galgo preto vagueia pela povoação e esconde-se num prédio, presume-se que seja perigoso, que tenha raiva. É preciso capturá-lo, assim como todos os outros que fogem pelas ruas. Mas, de facto, é o cão preto que persegue Lang que também é perseguido pela família de alguém que morreu num acidente. Lang é acusado de o ter provocado. Eis que um circo decrépito se aproxima da cidade. Eis que as Olimpíadas de Pequim 2008 se aproximam. Eis que um eclipse total do Sol acontecerá em breve, levando a uma debandada para as montanhas no deserto para o observarem. Um bom augúrio. Mas onde se terá escondido o cão preto? Por onde passeia o tigre da Manchúria?

Uma bela fábula irreal tão próxima da realidade, da solidão, do silêncio, do deserto. Quase um terno conto infantil que, por vezes, me fez lembrar a fantasia científica de Ridley Scott, ou a visionária paisagem cinematográfica de Stanley Kubrick, ou o carinho abstracto das esquecidas personagens de David Lynch. Também as imaginárias cidades circenses, sempre a um ponto da comédia, sempre a um ponto da nostalgia, de Federico Fellini. Talvez tudo aquilo não passe de um enorme sonho fantástico com os galgos de Amadeu em fundo e como alegoria.


jef, abril 2025

«Cão Preto» (Black Dog / Gou Zhen) de Guan Hu. Com Eddie Peng, Chu Bu Hua Jie, Youwei Da, Jia Zhang-ke, Liya Tong, You Zhou, Xiaoguang Hu, Yiquan Wang, Ben Niu, Yuanzhang Yin, Li Zhang, Hongzhe Mo-Tu, You Wu, Youwei Da. Argumento: Guan Hu, Bing Wu e Rui Ge. Produção: Jing Liang, Justine O e Wenjiu Zhu. Fotografia: Weizhe Gao. Música: Breton Vivian. Guarda-roupa: Zhou Li. EUA / China, 2024, Cores, 116 min.

 

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Sobre o musical «Rent» de Jonathan Larson. Teatro Variedades, 2025.



 






























Este espectáculo tem um cariz excepcionalmente nostálgico. Mas essa nostalgia agudiza-se, torna-se mais profunda, porque tudo nele é contemporâneo. Pode estar a ser vivido nos dias de hoje. É vivido nos dias de hoje. De certo modo, uma nostalgia futurista.

Felizmente, a SIDA / VIH tornou-se uma doença crónica e o AZT agora está integrado num complexo químico que salva vidas. Mas nos anos 90 do século passado não era assim…

… Porém, a pobreza, o frio e a fome na grande cidade de Nova Iorque, também a exclusão, a discriminação, a toxicodependência, a gentrificação da cidade, e a crise da habitação, permanecem e agudizam-se, tornam-se universais!

Por outro lado e como contraponto ultra-romântico, não esqueçamos que o libreto tem por pano de fundo a ópera “La Bohème” de Puccini. A amizade, apesar de todas as dificuldades, de toda a juventude, é o princípio e a força emocional e espiritual que glorifica o amor como modo para tornar infalível a resistência e manter a esperança focada no futuro.

É inevitável não nos comovermos pela longevidade e universalidade de uma peça cujo autor, Jonathan Larson, faleceu na véspera da estreia absoluta na Broadway.

Por influência de um amigo muito atento, em tempo assisti à gravação da derradeira e emocional representação de «Rent», a 7 de setembro de 2008, no Nederlander Theatre em Nova Iorque, e posso assegurar que a versão portuguesa não desmerece daquela actuação: a agilidade dos diversos planos cenográficos num palco restrito em que decorrem as histórias em simultâneo, a velocidade narrativa com que a acção e as canções se cruzam, e a qualidade musical e a entrega interpretativa de actores-cantores.

Que viva “La Vie Bohème”!

 

13 de abril de 2025

«Rent». Música e Letras: Jonathan Larson. Com Bruno Huca (Tom Collns), Carlos Martins (Gordon), Dennis Correia (Angel), Diogo Leite (Roger Davis), Gonçalo Martins (The Man), Inês Ramos (Mrs. Márquez), Margarida Martins (Alexi Darling), Marta Lys (Joanne Jefferson), Marta Mota (Mrs. Cohen), Nuno Martins (Mark Cohen), Pedro Fontes (Benny), Pedro Paz (Mr. Grey), Rafaela Monteiro (Maureen Johnson), Sara Claro (Mrs. Davis), Sissi Martins Mimi Márquez). Músicos: Pedro Alvadia, Diogo Soares, David Campos, André Soares. Encenação original e consultor artístico: Michael Greif. Encenação: Sissi Martins. Direcção Musical: Pedro Alvadia. Adaptação portuguesa: MTL. Cenografia e Figurinos: Pedro Morim. Desenho de luz: João Fontes. Desenho de som: Daniel Fernandes. Direção Cena: Sílvia Moura. Produção: Martim Galamba / Bruno Galvão / produção Musical Theater Lisbon (MTL) em acordo com Music Theatre International. Duração: 135 min.. Teatro Variedades.

De 26 de março a 27 de abril no Teatro Variedades.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Sobre «A Peça Que Dá Para o Torto» de Henry Lewis, Jonathan Sayer e Henry Shields. Teatro Tivoli, 2025.



 















Quem cresceu a ver na televisão as comédias portuguesas dos anos 30 e 40 do século passado, jamais esquecerá «O Pai Tirano» (António Lopes Ribeiro, 1941). Mais tarde, não perderá igualmente o desvario com-sentido-sem-sentido dos Monty Phyton, percebendo que existe no humor britânico qualquer coisa de burlesco, bizarro, perene e fundamental, que tem tanto de caricatural como de sarcástico. Por isso político também. As personagens vindas de Horace Walpole, de Charles Dickens ou Oscar Wilde não conseguem deixar de fazer sorrir. Também Hércule Poirot, Miss Marple ou Tommy e Tuppence, criados por Agatha Christie para resolver os seus mistérios por vezes até palhaços parecem ser.

«A Peça Que Dá Para o Torto» é, precisamente, uma paródia à peça «A Ratoeira» retirada de um conto da escritora inglesa. E tal como em «O Pai Tirano» será representada por um grupo teatral amador. Em vez de o “Grupo Teatral dos Grandelinhas” aqui é “Núcleo de Teatro da Sociedade Cultural e Recreativa do Sobralinho”. (É impossível que o tradutor Nuno Markl tenha esquecido o velho Grandela.)

Mas aqui o amadorismo toca os limites do irrazoável, os actores estão convictos que actores são mas perdem as deixas, os técnicos de apoio de palco andam distraídos. Tem tudo para correr mal mesmo antes de começar. e um facto é que o que parece acontece na realidade.

Logo no início, surge morto Charles Haversham, precisamente nas vésperas do seu casamento com Florence Colleymoore. Mas não será o último. E todos têm razões para beneficiar com aquela morte, excepto o cenário que surge como a mais indefesa vítima, que aos poucos se vai desfazendo, terminando com a queda do lustre, o último pedaço de adereço que ainda permanecia intacto.

Esta peça é, acima de tudo, uma obra impressionante de arquitetura e engenharias cenográficas dando uso a tão intricada e rápida sucessão de mudanças de cena e alteração na posição de adereços que chega a parecer impossível como os actores conseguem dizer as falas seguindo deixas tão ilógicas e, ao mesmo tempo, movimentando-se sem parar e sem se magoarem, tal a exigência física dos papéis. Tem momentos verdadeiramente hilariantes, apesar de alguns outros pecarem, por vezes, pela repetição excessiva fazendo perder, deste modo, a surpresa e intensidade dramática da comédia. O que é também muito divertido será imaginar como nos bastidores se estão a movimentar os técnicos de palco reais contra a cena dos técnicos de palco "falsos".

Dois actores parecem fazer metade da festa. O fantástico Telmo Ramalho (Cecil Haversham / o jardineiro), o deslumbrado actor que adora saber que está a ser apreciado pelo público que o aplaude na plateia, e o mais discreto e humilde defunto, Valter Teixeira (Charles Haversham) que, sistematicamente, entra fora de tempo e de cena, arcabuz em riste, perseguindo o seu assassino.

Por fim, é mesmo extraordinário como Lisboa agora se enche de espetáculos teatrais, em simultâneo, com excelentes produções, de todos os géneros, para todos os gostos e com salas esgotadas! Será que voltou a ser necessário ir ao teatro para fugir do mundo em que vivemos? Ou será, exactamente, para melhor o compreendermos?


12 de abril de 2025

«A Peça Que Dá Para o Torto» (The Play That Goes Wrong). Texto: Henry Lewis, Jonathan Sayer e Henry Shields. Tradução: Nuno Markl. Encenação residente: Frederico Corado. Com Afonso Lagarto (operador de luz e som, procura colectânea dos Duran Duran), Ana Marta Contente (apoio de palco e duplo de Florence Colleymoore), André Leitão (Perkins, o mordomo), Duarte Grilo (Mr. Thomas Colleymoore), Leonardo Progano (Mr. Fitzroy / Inspector Carter), Matilde Breyner (Florence Colleymoore), Telmo Ramalho (Cecil Haversham / o jardineiro), Valter Teixeira (Charles Haversham), Gabriel Palhais, Joana Pialgata, Rodrigo Oliveira (apoio de palco). Encenação original: Hannah Sharkey. Cenografia original: Nigel Hook. Desenho de Luz original: Ric Mountjoy. Guarda-Roupa original: Roberto Surace. Coreografia original Dave Hearn. Música original Rob Falconer. Teatro Tivoli. 120 minutos.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Sobre o Circo do Soleil «Corteo», Meo Arena / Parque das Nações



 











































Cá em casa nunca fomos amantes de circo. Não gostávamos de ver os animais cheios medo e mal tratados, não gostávamos de ter medo dos palhaços. Coisa que sempre acontecia quando, em miúdos, se aproximavam – Palhaço Pobre, Palhaço Rico – voz espalholada, a embirrarem um com o outro e os carros a estoirarem com estrondos imbecis. Ficávamos a chorar. A minha mãe não entendia por que é que a pobreza e a riqueza davam vontade de rir. Por outro lado, permanecia sobre tudo a tristeza de «A Morte do Palhaço» de Raul Brandão (1926), a eterna bendita melancolia de Federico Fellini «A Estrada» (1954) ou «Oito e Meio» de Federico Fellini (1963) e a música de Nino Rota. Enfim, o circo.

Ora nem de propósito… O Circo do Soleil apresenta Corteo, dirigida por Daniele Finzi Pasca e estreada em Montreal em 2005. Corteo é simplesmente o cortejo fúnebre de um palhaço, Mauro (interpretado pelo brasileiro Marcelo Perna) que vai imaginando a própriamorte festejada com alegria e ao som de uma banda sonora que mistura samba, passodoble, balcãs, Nino Rota e Goran Bregovic. Teria tudo para me dar a melancolia.

Porém… Esqueço-me de mim e entro no modo cénico como apresentam os números de acrobacia, funambulismo, trapezismo ou malabarismo, levando-nos através da vida de Mauro, desde a infância. Uma sucessão de peças musicais entretecidas numa história teatral onde as personagens mudam constantemente o sentido ao drama. Sim, esquecemos que é circo (apesar de o ser) e embalamo-nos nessa comédia em miniatura (qual sessão de robertos) entre a mini Julieta e o mini Romeu, enquanto o cavalo de pano vai buscar a gaivota morta, como um cão excitado pelo dono, mas que se desconjunta, ficando pelo meio, deixando o focinho em cena... De seguida, surgir um amoroso e comovente número de acrobacia elaborado por um casal de bailarinos espaciais, num ambiente de azul profundo.

E claro, Corteo é acompanhado pelo melhor assobiador do mundo, o Mr. Whistle (o finlandês Geert Chatrou), sem esquecer a série de sapatinhos que correm pelo palco fora sem nenhum pé lá dentro, ou Anita vogando leve sobre o público como bolas de sabão, e as tutelares figuras angelicais que aparecem no céu vestidas como anjos vindos do século passado, daqueles que se penduravam na árvore de Natal.

Reconheço, fui levado. Levaram-me! Não fiquei triste. Não tive medo dos palhaços, não me assustei nem chorei e fartei-me de divertir. Ah, e os cavalos eram de pano e tinham palhaços lá dentro! Não sofreram!

Todos os artistas são definitivamente extraordinários. Os cenários encantadores. O palco-arena, que se esconde por véus translúcidos e pintados em modo parisiense, está ladeado pelas duas plateias que se opõem, frente a frente. 

(de 10 a 20 de Abril de 2025)


30 de abril de 2025

terça-feira, 8 de abril de 2025

Sobre o livro «Na Terra dos Outros» de Manuel Abrantes, Companhia das Letras, 2024



 







A Beleza das Empregadas Domésticas. Roubo a frase ao título da peça de Manuel Jerónimo (Boutique da Cultura, 2024). Ou poder-lhe-ia chamar, igualmente, A Queda e Ascensão da Vida de uma Mulher-a-Dias. Simplesmente, Maria do Carmo.

Em três partes e de um modo ágil, minucioso, de narrativa rápida e circunstanciada, finamente descrito e com justas e directas referências a factos políticos e geografias lisboetas, Manuel Abrantes conta-nos a Verdadeira História de Portugal nos Últimos Sessenta Anos. Aliás, embora esses três capítulos representem mudanças ou fracturas decisivas na vida de Maria do Carmo, eles situam-nos nas clivagens que Portugal sofreu nas últimas décadas. Portugal sofreu, levando as populações do interior no País para o litoral e do litoral para a emigração. Tudo aos ombros da tenacidade, abnegação, resignação, espírito de luta, resistência e revolta do universo feminino. Inscrito nas mãos, no corpo e na entrega de Maria do Carmo. Como se estivéssemos a contemplar as obras intrínsecas de Maria Lamas ou Maria Judite de Carvalho. De um certo sentido, veio-me à lembrança «Os Verdes Anos» de Paulo Rocha (1963). Portugal no feminino.

Mas apesar do silêncio quase sistemático e da figura que sugere subserviência, Maria do Carmo ensina a não ficar no mesmo lugar se esse lugar implica desistência. Também, ultrapassando os remorsos, a insegurança e os medos, Maria do Carmo, no final, faz uma súmula filosófica da sua existência perante o julgamento dos outros:

«Esse compasso de espera trouxe a Carmo uma sucessão de ideias bizarras. A primeira: talvez Deus esteja a tentar ensinar-me alguma coisa, mas eu não percebo o que é. A segunda: talvez a culpa não seja minha, talvez Deus tenha pouco jeito para professor. Mais tarde, censurar-se-ia pela insolência. Naquele instante, porém, teve de algum modo e certeza de que não era sua a falha.»

Talvez esta frase indique bem a secreta força de rebeldia de Maria do Carmo Gouveia que já vinha desde as primeiras páginas quando foi obrigada a seguir viagem num carro de chapa azul, para ir servir em Lisboa, na Pascoal de Melo, em casa dos Lemos de Almeida.

Talvez Portugal também tenha servido, também se tenha resignado e depois rebelado.

jef, abril 2025

 

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Sobre a peça «Festa de Aniversário» de Harold Pinter. Teatro do Bairro, 2025.


Acabam de chegar dois hóspedes àquela pensão: um muito mal encarado, talvez mesmo bastante burro, McCann, o outro, um fala barato vendedor de banha da cobra, Goldberg. Foram vistos na véspera a rondar por ali. Trazem um carrinho de mão dentro da viatura e chegam precisamente no dia de aniversário de Stanley, o único hóspede da pensão que ali pernoita há um ano. Misteriosamente, parece que conhecem Stanley, que talvez este tenha traído alguma organização. Supostamente, vêm em perseguição. Contudo, o dono da pensão, Petey, apenas tenta ler o jornal e a sua esposa Meg tem uma quase protecção maternal por Stanley, preparando-lhe uma festa de aniversário. Coisa que não agrada muito ao próprio… O que terá feito Stanley no passado? Por que haverá um carrinho de mão dentro da viatura? Porque rasgará McCann tão acintosamente as folhas de jornal? Por que seria bom o recém-nascido anunciado nas páginas de jornal possuir um sexo diferente? Por que razão as luzes são apagadas durante a festa e o foco da lanterna de McCann é apontada às caras dos convivas. Tudo pode ser dramático, tudo pode ser risível. Nada será esclarecido. Tudo é um absurdo?

Mas o Teatro é absurdo, esclarece o próprio Harold Pinter (que eu me habituei a ver nas peças dos Artistas Unidos ou nos filmes de Joseph Losey). Contudo, isto não será tudo um absurdo porque ainda não o compreendemos, ainda não nos foi explicado, ainda não foi dissecado? E será que já compreendemos cabalmente a realidade que vivemos hoje, ter-nos-á já sido explicada, dissecada em definitivo? E as pessoas que são absorvidas nessa verdade por fundamentar estarão cientes do papel que representam na peça?

Ou seja, estando, assim, muito por entender, por esclarecer, sendo tanta coisa incompreensível, então talvez a nossa realidade seja um absurdo teatral, simultaneamente trágico e cómico. E se, deste modo, podemos definir o mundo em que vivemos, então a obra de Harold Pinter permanece radicalmente um acto político.


6 de abril de 2025

«Festa de Aniversário» de Harold Pinter. Tradução: Artur Ramos e Jaime Salazar Sampaio. Encenação: António Pires. Com Adriano Luz (Petey), Ana Nave (Meg), Cláudio da Silva (Goldberg), Graciano Dias (Stanley), João Barbosa (McCann), Vera Moura (Lulu). Cenografia: Alexandre Oliveira. Construção de cenário: Fábio Paulo. Desenho de Luz: Rui Seabra. Desenho de Som: Paulo Abelho. Construção de cenário: Fábio Paulo. Operação de luz: António Serrão. Operação de som: Matheus de Alencar. Direcção de cena: Alexandre Jerónimo. Estagiárias de guarda-roupa: Sol Piloto e Larissa Angeli. Ilustração: Joana Villaverde. Fotografia de cena e trailer: Jaime Freitas. Bilheteira: Sofia Estriga. Direcção de produção: Federica Fiasca. Produtor: Alexandre Oliveira. Produção: Alexandre Oliveira / Ar de Filmes / Teatro do Bairro. Duração: 100 minutos aproximadamente. Teatro do Bairro.

Até 20 Abril. Quarta a Sexta: 21h30. Sábado e Domingo: 18h00

 

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Sobre o filme «On Falling» de Laura Carreira, 2024


 















Esta não é a história de Tânia (Beatriz Batarda) em «Great Yarmouth: Provisional Figures» (Marco Martins, 2022). Também não é a de Souleymane (Abou Sangare) em «A História de Souleymane» (Boris Lojkine, 2024). Aqui, Aurora (Joana Santos) não corre para acomodar de modo fraudulento emigrantes portugueses em hotéis duvidosos e que chegam para processar a carne de perús nos matadouros do sul de Inglaterra, nem percorre apressado de bicicleta as ruas de Paris para fazer entregas de Uber Eats.

Aurora trabalha num armazém de recolha e entrega de mercadorias solicitadas on line em Glasgow, Escócia, numa rotina dormente, monocórdica. Cada recolha deve ser anotada e registada pelo código de barras, sistematicamente, mecanicamente. (Muitas cordas são recolhidas, tantas quanto dildos, a lembrar exigidas necessidades...) Ela apenas é uma pequenina roda dentada na engrenagem, somente um robô. Aurora é uma “picker” e tem um quarto arrendado num apartamento com outros trabalhadores emigrantes. O ordenado é escasso, os turnos são de escravo, o tédio, uma litania imensa, cinzenta, silenciosa. Aurora quer mudar mas não sabe como. A sua companhia é o telemóvel, a companhia de quase todos, até que este cai ao chão da cozinha partilhada e se avaria.

Afinal, é uma história diferente, apesar de igual à de Tânia ou de Souleymane. A história de um telemóvel cujo arranjo custa várias dezenas de libras.

Se os noticiários não nos conseguem explicar a verdadeira e deplorável história da escravatura laboral contemporânea, então devemos ir ao cinema.

«On Falling» é um filme sem música. Apenas no genérico final se ouve a canção irlandesa «What will we do when we have no Money?» na voz de Radie Peat do grupo folk Lankun. Uma ode amarga, um lamento glorioso aos tempos da moderna solidão.


jef, abril 2025

«On Falling» de Laura Carreira. Com Joana Santos, Inês Vaz, Piotr Sikora, Neil Leiper, Jake McGarry, Itxaso Moreno, Leah MacRae, Billy Mack, Deborah Arnott, Paul Donnelly, Ola Forman, Ross Ian-Martin, Karyna Khymchuk, Lukasz Kornacki, Daniel McGuire. Argumento: Laura Carreira. Produção: Mário Patrocínio, Jack Thomas-O'Brien. Fotografia: Karl Kürten. Guarda-roupa: Carole Millar. Grã-Bretanha / Portugal, 2024, Cores, 104 min.