sexta-feira, 4 de abril de 2025

Sobre o filme «On Falling» de Laura Carreira, 2024


 















Esta não é a história de Tânia (Beatriz Batarda) em «Great Yarmouth: Provisional Figures» (Marco Martins, 2022). Também não é a de Souleymane (Abou Sangare) em «A História de Souleymane» (Boris Lojkine, 2024). Aqui, Aurora (Joana Santos) não corre para acomodar de modo fraudulento emigrantes portugueses em hotéis duvidosos e que chegam para processar a carne de perús nos matadouros do sul de Inglaterra, nem percorre apressado de bicicleta as ruas de Paris para fazer entregas de Uber Eats.

Aurora trabalha num armazém de recolha e entrega de mercadorias solicitadas on line em Glasgow, Escócia, numa rotina dormente, monocórdica. Cada recolha deve ser anotada e registada pelo código de barras, sistematicamente, mecanicamente. (Muitas cordas são recolhidas, tantas quanto dildos, a lembrar exigidas necessidades...) Ela apenas é uma pequenina roda dentada na engrenagem, somente um robô. Aurora é uma “picker” e tem um quarto arrendado num apartamento com outros trabalhadores emigrantes. O ordenado é escasso, os turnos são de escravo, o tédio, uma litania imensa, cinzenta, silenciosa. Aurora quer mudar mas não sabe como. A sua companhia é o telemóvel, a companhia de quase todos, até que este cai ao chão da cozinha partilhada e se avaria.

Afinal, é uma história diferente, apesar de igual à de Tânia ou de Souleymane. A história de um telemóvel cujo arranjo custa várias dezenas de libras.

Se os noticiários não nos conseguem explicar a verdadeira e deplorável história da escravatura laboral contemporânea, então devemos ir ao cinema.

«On Falling» é um filme sem música. Apenas no genérico final se ouve a canção irlandesa «What will we do when we have no Money?» na voz de Radie Peat do grupo folk Lankun. Uma ode amarga, um lamento glorioso aos tempos da moderna solidão.


jef, abril 2025

«On Falling» de Laura Carreira. Com Joana Santos, Inês Vaz, Piotr Sikora, Neil Leiper, Jake McGarry, Itxaso Moreno, Leah MacRae, Billy Mack, Deborah Arnott, Paul Donnelly, Ola Forman, Ross Ian-Martin, Karyna Khymchuk, Lukasz Kornacki, Daniel McGuire. Argumento: Laura Carreira. Produção: Mário Patrocínio, Jack Thomas-O'Brien. Fotografia: Karl Kürten. Guarda-roupa: Carole Millar. Grã-Bretanha / Portugal, 2024, Cores, 104 min.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Sobre o disco «People Who Aren’t There Anymore» de Future Islands, 4AD 2024.












Dou-me conta dos Future Islands ao sétimo álbum. Algures em Baltimore, Maryland, Estados Unidos da América. Gerrit Welmers (programação e teclados), William Cashion (baixo e guitarras), Samuel T. Herring (voz e poemas), Michael Lowry (percussão). Deixando lá para trás, em 2008, «Wave Like Home», o primeiro álbum.

Um disco, pelo que se diz na net, criado sob o véu do isolamento da pandemia, do afastamento, do abandono, da procura de algo do outro lado da parede, da linha telefónica, da margem oposta do oceano. Uma tristeza vigorosa, uma toada pontuada pela batida electrónica ou pelo grito lançado do punk do centro da capital para a pista de dança perdida num qualquer lugarejo, num final de noite. Tudo parecendo simples e directo. Tudo quase antigo, quase romântico, quase sinfónico. Quase provocando saudades do que ainda não conhecíamos.

Uma produção principesca editada pela 4AD, acompanhando uma discreta mas não menos principesca arte gráfica, assente na muito recomendável arte plástica.

O algoritmo biológico da minha velha memória leva-me até aos The National ou aos Despeche Mode.


jef, abril 2025

 

Sobre o filme «Misericórdia» de Alain Guiraudie, 2024



 


























Ora aqui está uma rara e inteligente comédia. Uma comédia imoral de contornos sexuais ou, então, uma forte mas ao mesmo tempo delicada comédia sobre a libido irreprimida e com laivos amorais.

Não sei bem por que razão, vieram-me à memória duas altas comédias: «O Terceiro Tiro» de Alfred Hitchcock (1955) e «O Veneno» de Sacha Guitry (1951).

Em «Misericórdia» o espectador é colocado sem rede frente ao julgamento público e social da acção criminosa, ao dever de protecção a que o amor obriga e, acima de tudo, à vocação privada que o irreprimível desejo sexual impõe a todo o custo.

Um dos aspectos cénicos mais relevantes é a presença fundamental da floresta montanhosa de Ardèche / Auvergne, no sudeste de França. Ali, entre a misteriosa penumbra, como nos fatídicos contos dos irmãos Grimm, todos parecem encontrar-se por acaso, mas de modo sistemático, para passear e colher cogumelos. Ali reside o centro da intriga. Ali, tudo será resolvido.

Jérémie (Félix Kysyl) chega de carro a Saint-Martial numa viagem longa enquanto o genérico inicial vai correndo, vai descendo. Visita a região onde passou a adolescência a trabalhar na padaria-pastelaria de Jean-Pierre (Serge Richard). Ele regressa para assistir ao funeral do antigo patrão e instala-se em casa da viúva, Martine (Catherine Frot), no antigo quarto do filho desta, Vincent (Jean-Baptiste Durand). Jérémie também visita a miúde Walter (David Ayala) no outro lado da aldeia, um amigo comum dos velhos tempos. Vai ficando e os desejos e os ciúmes vão eclodindo. Tudo sempre vigiado pelo olhar silencioso do padre da aldeia Philippe Griseul (Jacques Develay), que tudo parece entender. Principalmente de cogumelos.

Aliás, o filme assenta em duas sequências fundamentais, revelando o padre Phllippe como contraponto e coro grego para todo o desenlace da intriga. A sequência do confessionário, onde os papéis se invertem entre Jérémie e Philippe, e tudo parece ficar claro moralmente e, mais tarde, quando os dois se voltam a encontrar à beira da ravina, e de novo os papéis são trocados, discutindo-se a menor pena sofrida com a morte em detrimento do longo sofrimento que a culpa entrega à vida longa. (Dois pedaços de literatura dignos de apontamento.)

Afinal, tudo se resolve sem grandes dramas e os polícias (Sébastien Faglain, Salomé Lopes), que possuem chaves que lhes permitem entrar a qualquer hora em qualquer casa, tudo vasculham, tudo suspeitam, mas nada conseguem ver. O “mau-da-fita” desaparece sem deixar rasto ou lágrimas no encalço, e o “bem-amado” volta a deitar-se para dormir um bom sono tranquilo.

Ora aqui está uma belíssima comédia negra para corações amorais.


jef, abril 2025

«Misericórdia» (Miséricorde) de Alain Guiraudie. Com Félix Kysyl, Catherine Frot, Jacques Develay, Jean-Baptiste Durand, Serge Richard, Jacques Develay, David Ayala, Tatiana Spivakova, Elio Lunetta, Sébastien Faglain, Salomé Lopes, Luis Serrat, Sandra Marinho de Oliveira. Argumento: Alain Guiraudie. Produção: Charles Gillibert, Olivier Père, Joaquim Sapinho, Albert Serra, Montse Triola. Fotografia: Claire Mathon. Música: Marc Verdaguer. Guarda-roupa: Khadija Zeggaï. França / Portugal / Espanha, 2024, Cores, 102 min.




terça-feira, 1 de abril de 2025

Sobre a peça «Uma Barragem Contra o Pacífico» de Marguerite Duras / Geneviève Serreau, Teatro de Almada, 2025.


 

 





































Esta é a visão teatral que Geneviève Serreau dá ao texto de autoficção escrito por Marguerite Duras. É também a perspectiva cénica oferecida pelo encenador Álvaro Correia ao mundo em transição que então se vivia no Sul da esquecida Indochina francófona. Um bungalow perdido entre o calor, as monções e as sucessivas invasões das águas salgadas do Pacífico sobre a fraudulenta venda de parcelas aos colonos que eram, portanto, desesperadamente inférteis.

Contudo, a imensa construção em madeira no centro do palco prevalece ali, de pé, rodeada de árvores, de uma iluminação caleidoscópica, do torpor ou do tédio. Toda aquela exaustão crepuscular está no campo da cinematografia. Não o cinema interiorista “nouvelle vague” de Marguerite Duras («India Song», 1975) mas sobretudo aquele pequeno e perdido episódio francófono que Francis Ford Coppola adicionou à versão final de «Apocalypse Now Redux» (1979 / 2001) – alguma família dissipada entre o seu próprio interior comum e um futuro inóspito, violento, hostil, que ainda não mostrara as garras em definitivo. Essa duplicidade cinematográfica ‘reflexo/refracção’ é-nos dada sem paliativo por aquela casa de banho onde quase todos se refrescam, todos na transparência se desejam mas, por fora, vemos encriptada pelas imagens da floresta que um dia os expulsará.

A Mãe apenas deseja comprar mais cinco hectares férteis e ressarcir o montante em dívida da área alagadiça contra a qual montou uma frágil barragem consumida por caranguejos. O calor aperta, o cavalo está doente e o Citroën está a cair aos bocados. Por mais que se esforce, as inglórias tarefas não têm fim e as cartas enviadas não chegam ao destino. A filha, Suzanne, é pretendida por alguns mas apenas deseja partir com um caçador de tigres. O filho Joseph é quase imprestável. Apenas lhe resta o desalento irritado, a sesta para evitar o calor e o submisso capataz – um cerimonioso nativo, amável e amigo.

Todo a história afinal é a eterna condição feminina, condição de mãe, condição de filha.

A condição final de sitiado, de expatriado. 

A irrefutável condição do exílio.


30 de março de 2025

«Uma Barragem Contra o Pacífico». Uma adaptação de Geneviève Serreau a partir do texto de Marguerite Duras. Tradução: Lúcia Liba Mucznik. Encenação: Álvaro Correia. Com Bruno Soares Nogueira (o vizinho), David Pereira Bastos (Senhor Jo), Erica Rodrigues (Carmen / Lina), Íris Cañamero (Suzanne), João Cabral (o caixeiro viajante), João Jesus (Joseph), Qiming Liu (o capataz), Teresa Gafeira (a Mãe). Cenografia e figurinos: Sérgio Loureiro. Música: Sofia Vitória / Margarida Campelo (piano), Kristina Van de Sand. Desenho de luz: Guilherme Frazão. Produção: Teatro Municipal Joaquim Benite / Companhia de Teatro de Almada. 110 minutos, aproximadamente. Teatro Municipal Joaquim Benite.

14 de março a 6 de abril.

Quinta-feira a Sábado – 21h00. Quarta-feira e Domingo – 16h00.