Este não é um livro sobre gatos, nem sobre o silêncio, apesar
de começar com aqueles e terminar com este.
Como ler João Carlos Roque?
Mais do que um comunicador, é um conversador. Exerce a vocação
de narrador, de contador da realidade, em simultâneo apelando, exigindo até, um
interlocutor, um ouvinte para que possa documentar por palavras suas os facto,
os actos e os dias que por ele vão passando. João Carlos Roque revela-se, por
isso, um diarista ou, neste caso concreto, um “anuarista” a partir dos anos 50 do
século passado quando os Natais aconteciam pela sua Covilhã da infância, até
chegar a um certo passado-presente que ele toma nas próprias mãos como dádiva.
Por que o faz agora é a questão que coloca ao leitor através
do título que regressa de um blogue que o ocupou (e o acarinhou) durante meses,
largos anos, oferecendo-lhe a possibilidade de publicar correntemente através
da divulgação digital, obtendo o contacto imediato com os leitores que o
incentivavam directamente a continuar as sequentes crónicas ou histórias.
Mas apelidar a este conjunto de textos contos ou crónicas não
será justo pois, apesar do autor não se coibir de expressar as suas opiniões,
nunca termina ele com a comum moral final ou conclusão diegética que as
crónicas normalmente exibem.
O livro é uma espécie de anuário de viagens, de percursos, de
amor e de sexualidade (no caso, homossexualidade), expressos numa assumida
agilidade narrativa, de uma descrição apaixonada e rigorosa descrição dos
pontos turísticos ou até dos casos mais ou menos caricatos e divertidos, que até
poderiam ser esquecíveis caso não tivessem sido vividos com tanta intensidade e
emoção. Também nada tem de confissão pois aqui o autor apresenta-se
integralmente, de corpo e espírito inteiro e uno.
Tal como no livro anterior, «A Ilha de Metarica – memórias da
guerra colonial» (Index e-books, 2014), um tema também documentado no presente
livro, os relatos são simples, sem constrangimentos ou pudor da intimidade ou
do quotidiano. Os percursos, as cidades, as amizades, os encontros, os olhares
são narrados comoventemente directos, olhos nos olhos do leitor. É interessante
que a fotografia de capa seja a de um olhar sério, frontal, intensamente
felino, que nos impõe o silêncio sem nunca nos silenciar. (Conhecemos bem tal
imposição pelos gatos). Diga-se que os gatos surgem apenas em dois
apontamentos: essa espécie de salmo «Há Muito Tempo» e mais no final «Boris e
Teka», este por exigência do público amante desses bichos.
Porém, na página 59 «É na solidão que me Encontro» o livro
parece suspender-se num ponto de situação emocional onde é colocada a poética
do abandono. Um aparente contraponto de todo o livro para quem vive a par e
passo com a comunicação.
Outro contraponto, ou apenas para contrariar a confessa falta
de vocação como ficcionista, podemos tomar os micro-contos «A Borboleta» ou
«José», exactamente como a sua poesia na qual não se ausenta a profundidade e o
ritmo liricamente românticos.
Porém, o diálogo ou a rumo do livro tem uma significativa
viragem em 2004, com o aparecimento de um nome e de uma cidade, personagens
capitais: Déjan e Belgrado. A partir daí toda a viagem muda de figura.
Então, como ler João Carlos Roque?
Como grande colecionador e memorialista que o autor não pode
desmentir que é. O autor pede tempo. Pede tempo para si e para que o oiçam,
mesmo que, respeitosamente, depois o contradigam. Grande dialogador, jamais provoca,
apena conta ou relata em tempo, que é seu por direito, um tempo que é presente,
diria urgente, para lhe trazer de volta quem já partiu ou anda longínquo. O
tempo e a distância, dois assuntos que apenas por vezes só o silêncio parece dar
sentido.
Assim começa, assim o livro termina.
jef, abril 2025
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