quarta-feira, 2 de abril de 2025

Sobre o filme «Misericórdia» de Alain Guiraudie, 2024



 


























Ora aqui está uma rara e inteligente comédia. Uma comédia imoral de contornos sexuais ou, então, uma forte mas ao mesmo tempo delicada comédia sobre a libido irreprimida e com laivos amorais.

Não sei bem por que razão, vieram-me à memória duas altas comédias: «O Terceiro Tiro» de Alfred Hitchcock (1955) e «O Veneno» de Sacha Guitry (1951).

Em «Misericórdia» o espectador é colocado sem rede frente ao julgamento público e social da acção criminosa, ao dever de protecção a que o amor obriga e, acima de tudo, à vocação privada que o irreprimível desejo sexual impõe a todo o custo.

Um dos aspectos cénicos mais relevantes é a presença fundamental da floresta montanhosa de Ardèche / Auvergne, no sudeste de França. Ali, entre a misteriosa penumbra, como nos fatídicos contos dos irmãos Grimm, todos parecem encontrar-se por acaso, mas de modo sistemático, para passear e colher cogumelos. Ali reside o centro da intriga. Ali, tudo será resolvido.

Jérémie (Félix Kysyl) chega de carro a Saint-Martial numa viagem longa enquanto o genérico inicial vai correndo, vai descendo. Visita a região onde passou a adolescência a trabalhar na padaria-pastelaria de Jean-Pierre (Serge Richard). Ele regressa para assistir ao funeral do antigo patrão e instala-se em casa da viúva, Martine (Catherine Frot), no antigo quarto do filho desta, Vincent (Jean-Baptiste Durand). Jérémie também visita a miúde Walter (David Ayala) no outro lado da aldeia, um amigo comum dos velhos tempos. Vai ficando e os desejos e os ciúmes vão eclodindo. Tudo sempre vigiado pelo olhar silencioso do padre da aldeia Philippe Griseul (Jacques Develay), que tudo parece entender. Principalmente de cogumelos.

Aliás, o filme assenta em duas sequências fundamentais, revelando o padre Phllippe como contraponto e coro grego para todo o desenlace da intriga. A sequência do confessionário, onde os papéis se invertem entre Jérémie e Philippe, e tudo parece ficar claro moralmente e, mais tarde, quando os dois se voltam a encontrar à beira da ravina, e de novo os papéis são trocados, discutindo-se a menor pena sofrida com a morte em detrimento do longo sofrimento que a culpa entrega à vida longa. (Dois pedaços de literatura dignos de apontamento.)

Afinal, tudo se resolve sem grandes dramas e os polícias (Sébastien Faglain, Salomé Lopes), que possuem chaves que lhes permitem entrar a qualquer hora em qualquer casa, tudo vasculham, tudo suspeitam, mas nada conseguem ver. O “mau-da-fita” desaparece sem deixar rasto ou lágrimas no encalço, e o “bem-amado” volta a deitar-se para dormir um bom sono tranquilo.

Ora aqui está uma belíssima comédia negra para corações amorais.


jef, abril 2025

«Misericórdia» (Miséricorde) de Alain Guiraudie. Com Félix Kysyl, Catherine Frot, Jacques Develay, Jean-Baptiste Durand, Serge Richard, Jacques Develay, David Ayala, Tatiana Spivakova, Elio Lunetta, Sébastien Faglain, Salomé Lopes, Luis Serrat, Sandra Marinho de Oliveira. Argumento: Alain Guiraudie. Produção: Charles Gillibert, Olivier Père, Joaquim Sapinho, Albert Serra, Montse Triola. Fotografia: Claire Mathon. Música: Marc Verdaguer. Guarda-roupa: Khadija Zeggaï. França / Portugal / Espanha, 2024, Cores, 102 min.




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