Ora
aqui está uma rara e inteligente comédia. Uma comédia imoral de
contornos sexuais ou, então, uma forte mas ao mesmo tempo delicada comédia sobre
a libido irreprimida e com laivos amorais.
Não
sei bem por que razão, vieram-me à memória duas altas comédias: «O Terceiro
Tiro» de Alfred Hitchcock (1955) e «O Veneno» de Sacha Guitry (1951).
Em
«Misericórdia» o espectador é colocado sem rede frente ao julgamento público e
social da acção criminosa, ao dever de protecção a que o amor obriga e, acima
de tudo, à vocação privada que o irreprimível desejo sexual impõe a todo o
custo.
Um
dos aspectos cénicos mais relevantes é a presença fundamental da floresta
montanhosa de Ardèche / Auvergne, no sudeste de França. Ali, entre a misteriosa
penumbra, como nos fatídicos contos dos irmãos Grimm, todos parecem
encontrar-se por acaso, mas de modo sistemático, para passear e colher cogumelos.
Ali reside o centro da intriga. Ali, tudo será resolvido.
Jérémie
(Félix Kysyl) chega de carro a Saint-Martial numa viagem longa enquanto o
genérico inicial vai correndo, vai descendo. Visita a região onde passou a adolescência
a trabalhar na padaria-pastelaria de Jean-Pierre (Serge Richard). Ele regressa
para assistir ao funeral do antigo patrão e instala-se em casa da viúva,
Martine (Catherine Frot), no antigo quarto do filho desta, Vincent (Jean-Baptiste
Durand). Jérémie também visita a miúde Walter (David Ayala) no outro lado da
aldeia, um amigo comum dos velhos tempos. Vai ficando e os desejos e os ciúmes
vão eclodindo. Tudo sempre vigiado pelo olhar silencioso do padre da aldeia Philippe
Griseul (Jacques Develay), que tudo parece entender. Principalmente de
cogumelos.
Aliás,
o filme assenta em duas sequências fundamentais, revelando o padre Phllippe
como contraponto e coro grego para todo o desenlace da intriga. A sequência do
confessionário, onde os papéis se invertem entre Jérémie e Philippe, e tudo
parece ficar claro moralmente e, mais tarde, quando os dois se voltam a
encontrar à beira da ravina, e de novo os papéis são trocados, discutindo-se a
menor pena sofrida com a morte em detrimento do longo sofrimento que a culpa
entrega à vida longa. (Dois pedaços de literatura dignos de apontamento.)
Afinal,
tudo se resolve sem grandes dramas e os polícias (Sébastien Faglain, Salomé
Lopes), que possuem chaves que lhes permitem entrar a qualquer hora em qualquer
casa, tudo vasculham, tudo suspeitam, mas nada conseguem ver. O “mau-da-fita”
desaparece sem deixar rasto ou lágrimas no encalço, e o “bem-amado” volta a deitar-se
para dormir um bom sono tranquilo.
Ora
aqui está uma belíssima comédia negra para corações amorais.
jef,
abril 2025
«Misericórdia»
(Miséricorde) de Alain Guiraudie. Com Félix Kysyl, Catherine Frot, Jacques
Develay, Jean-Baptiste Durand, Serge Richard, Jacques Develay, David Ayala, Tatiana
Spivakova, Elio Lunetta, Sébastien Faglain, Salomé Lopes, Luis Serrat, Sandra
Marinho de Oliveira. Argumento: Alain Guiraudie. Produção: Charles Gillibert, Olivier Père, Joaquim
Sapinho, Albert Serra, Montse Triola. Fotografia: Claire Mathon. Música: Marc
Verdaguer. Guarda-roupa: Khadija Zeggaï. França / Portugal / Espanha, 2024, Cores,
102 min.
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