Quem
cresceu a ver na televisão as comédias portuguesas dos anos 30 e 40 do século
passado, jamais esquecerá «O Pai Tirano» (António Lopes Ribeiro, 1941). Mais tarde,
não perderá igualmente o desvario com-sentido-sem-sentido dos Monty Phyton,
percebendo que existe no humor britânico qualquer coisa de burlesco, bizarro, perene e
fundamental, que tem tanto de caricatural como de sarcástico. Por isso político também. As personagens
vindas de Horace Walpole, de Charles Dickens ou Oscar Wilde não conseguem
deixar de fazer sorrir. Também Hércule Poirot, Miss Marple ou Tommy e Tuppence,
criados por Agatha Christie para resolver os seus mistérios por vezes até palhaços parecem ser.
«A
Peça Que Dá Para o Torto» é, precisamente, uma paródia à peça «A Ratoeira»
retirada de um conto da escritora inglesa. E tal como em «O Pai Tirano» será
representada por um grupo teatral amador. Em vez de o “Grupo Teatral dos
Grandelinhas” aqui é “Núcleo de Teatro da Sociedade Cultural e Recreativa do
Sobralinho”. (É impossível que o tradutor Nuno Markl tenha esquecido o velho Grandela.)
Mas aqui o amadorismo toca os limites do irrazoável, os actores estão convictos que actores são mas perdem as deixas, os técnicos de apoio de palco andam distraídos. Tem tudo para correr mal mesmo antes de começar. e um facto é que o que parece acontece na realidade.
Logo no início, surge morto Charles Haversham, precisamente nas vésperas do seu
casamento com Florence Colleymoore. Mas não será o último. E todos têm razões para beneficiar com aquela morte, excepto o cenário que surge como a mais
indefesa vítima, que aos poucos se vai desfazendo, terminando com a queda
do lustre, o último pedaço de adereço que ainda permanecia intacto.
Esta
peça é, acima de tudo, uma obra impressionante de arquitetura e engenharias cenográficas dando uso a tão intricada e rápida sucessão de mudanças de cena e alteração na posição
de adereços que chega a parecer impossível como os actores conseguem dizer as
falas seguindo deixas tão ilógicas e, ao mesmo tempo, movimentando-se sem parar e sem se magoarem, tal a
exigência física dos papéis. Tem momentos verdadeiramente hilariantes, apesar de
alguns outros pecarem, por vezes, pela repetição excessiva fazendo perder,
deste modo, a surpresa e intensidade dramática da comédia. O que é também muito
divertido será imaginar como nos bastidores se estão a movimentar os técnicos de palco
reais contra a cena dos técnicos de palco "falsos".
Dois
actores parecem fazer metade da festa. O fantástico Telmo Ramalho (Cecil
Haversham / o jardineiro), o deslumbrado actor que adora saber que está a ser
apreciado pelo público que o aplaude na plateia, e o mais discreto e humilde defunto,
Valter Teixeira (Charles Haversham) que, sistematicamente, entra fora de tempo
e de cena, arcabuz em riste, perseguindo o seu assassino.
Por fim, é mesmo extraordinário como Lisboa agora se enche de espetáculos teatrais, em
simultâneo, com excelentes produções, de todos os géneros, para todos os
gostos e com salas esgotadas! Será que voltou a ser necessário ir ao teatro para fugir do mundo em que vivemos? Ou será, exactamente, para melhor o compreendermos?
12 de abril de 2025
«A Peça Que Dá Para o Torto» (The Play That Goes Wrong). Texto: Henry Lewis, Jonathan Sayer e Henry Shields. Tradução: Nuno Markl. Encenação residente: Frederico Corado. Com Afonso Lagarto (operador de luz e som, procura colectânea dos Duran Duran), Ana Marta Contente (apoio de palco e duplo de Florence Colleymoore), André Leitão (Perkins, o mordomo), Duarte Grilo (Mr. Thomas Colleymoore), Leonardo Progano (Mr. Fitzroy / Inspector Carter), Matilde Breyner (Florence Colleymoore), Telmo Ramalho (Cecil Haversham / o jardineiro), Valter Teixeira (Charles Haversham), Gabriel Palhais, Joana Pialgata, Rodrigo Oliveira (apoio de palco). Encenação original: Hannah Sharkey. Cenografia original: Nigel Hook. Desenho de Luz original: Ric Mountjoy. Guarda-Roupa original: Roberto Surace. Coreografia original Dave Hearn. Música original Rob Falconer. Teatro Tivoli. 120 minutos.
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