segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Sobre o filme «Ensaio de um Crime» de Luis Buñuel, 1955
















Quando comecei a perceber a divertida direcção que o filme levava lembrei-me de um dos mais ternos e obscuramente esquecidos filmes de Alfred Hitchcock: «O Terceiro Tiro» (1955). Aquele em que a floresta parece um cenário de papelão (ou vice-versa) e todos desculpam o vizinho próximo de um suposto assassinato que afinal não aconteceu.

Só que em «Ensaio de um Crime» é o pobre (mas rico) e frustrado Archibaldo de la Cruz (Ernesto Alonso) que bem deseja matar, porém as tristes circunstâncias da vida impedem-no de ser um assassino encartado, bem como um aristocrata sexualmente consumado. Como se o desejo e o destino estivessem de má vontade e o impedissem, a cada segundo, de tocar a morte e o sexo.

Tudo começa durante a revolução mexicana, no interior da confortável casa de uma rica família onde o menino mimado Archibaldo de la Cruz que odeia a baby-sitter, recebe uma caixa de música que, segundo a lenda, lhe permitirá concretizar os seus maiores desejos…

…a partir daí, todas as imagens-símbolos de Buñuel começam a surgir de modo desenfreado e louco, envolvendo Archibaldo numa correria para concretizar finalmente o crime ansiado. As mulheres mais bonitas perseguem-no: Lavinia, a falsa e a verdadeira (Miroslava Stern); Patrícia, a lasciva amante de um velho que prefere ser enganado a desconfiado (Rita Macedo); Carlota, a menos casta noiva (Ariadna Welter). São depois as navalhas, bengalas, objectos-fetiches, símbolos fálicos. Copos de leite, sapatos femininos, roupa interior, mulheres duplicadas, símbolos maternais e edipianos. Caixas de música com bailarinas afogadas, freiras em fuga, quartos como celas, hospitais, camas e pijamas, troca de roupas, tudo muito púdico a um passo da derradeira perversão. As chamas, o fumo, o sonho, a toldar a realidade e o desejo. Mulheres que são ‘santas’ mas se oferecem em ‘sacríficio’ aos amantes. Um bolo de noiva a sair de um carro funerário. Tiros perdidos que matam, deixando, libidinoso, o sangue a escorrer pela pele. E a vida de um gafanhoto que, por fim, talvez venha a ser poupado pela ponta da bengala de Archibaldo quando, por um acaso, este reencontra Lavinia no recanto onírico de um jardim-floresta:

«Onde é que vai?»
«Para onde você for.»
«Que coincidência!»

Uma absoluta pérola do non-sense surrealista!

jef, agosto 2019

«Ensaio de um Crime» (Ensayo de un Crime) de Luis Buñuel. Com Ernesto Alonso, Miroslava Stern, Rita Macedo, Ariadna Welter, Rodolfo Landa, José Maria Linares Rivas, Andrea Palma, Leonor Llausas, Eva Calvo, Rafael Banquells Jr., Enrique Garcia Alvarez, Chabela Durán, Manuel Dondé, Carlos Martinez Baena, Carlos Riquelme, Roberto Meyer, Enrique Diaz Indiano, Armando Velasco, Antonio Bravo, Janet Alcoriza. Argumento: Luis Buñuel e Eduardo Ugarte baseado no romance «La Vida Criminal de Archibaldo de la Cruz» de Rodolfo Usigli. Fotografia: Agustín Jiménez. Música: Jorge Pérez Berrera, Produção: Alianza Cinematográfica / Alfonso Patiño Gómez. 1955, México, P/B, 90 min.

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