quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Sobre o filme «A Idade de Ouro» de Luis Buñuel, 1930





















E um ano depois de «Um Cão Andaluz» surge «A Idade de Ouro». Afinal, havia sucessor na fama, na irreverência, na liberdade de filmar. No espanto. Mais Buñuel que Dali, já com uma verba substancial em francos cedidos pelos excêntricos Viscondes de Noailles (mecenas também de Man Ray e Jean Cocteau), em vez das pesetas da mãe Buñuel. Produção em grande. Argumento com uma possível história a ser seguida. Um escândalo. Apenas treze dias em cartaz na cidade de Paris, em vez dos oito meses do filme anterior. O cinema atacado por grupos de direita. Petardos lançados. Cadeiras partidas. 50 anos de proibição. Só em 1982 foi visto em Portugal.


Luis Buñuel consegue o impossível. Levar o segundo filme até ao patamar do primeiro em conceito estético, em discussão ética. Talvez mesmo ultrapassando-o, quem o poderá afirmar?

Numa ilha deserta os escorpiões fazem pela vida (ou pela morte). Tal como o grupo indigente de bandidos. Tal como um grupo de bispos que, em tempo, passam a esqueletos. Um conjunto de altos dignitários desembarcam para ali lançar a primeira pedra de Roma Imperial, mas o discurso é interrompido pelas cenas de afecto apaixonado de uma mulher (Lya Lis) e de um homem (Gaston Modot) no meio da lama. Ela é banida, ele vai preso, mas reencontram-se numa festa que não é perturbada pelo guarda que mata com tiros de caçadeira o próprio filho. Eles reencontram-se mas o amor aproxima-se da morte e da não consumação. Ela chupa libidinosamente o pé de uma estátua de um deus clássico, ele acaricia-se entre as penas brancas saídas de uma almofada esventrada. Parecem apaixonadamente desesperados. Uma vaca deve sair da cama. Um bispo, defenestrado, assim como uma girafa e um velho arado. Entretanto, no castelo de Séligny, as orgias sucedem-se, como em «120 Dias de Sodoma» de Sade. Mas o Duque de Blangis é Cristo!

A revolução e a psicanálise, dois dos motes do surrealismo, estão lá. De Luis Buñuel, tudo. A surpresa, a velocidade das cenas, as personagens como que suspensas ou encarceradas nos seus desejos. Também os animais, as cordas, os objectos como personagens ou como vítimas, o amor desvairado, a impossibilidade do amor e a morte, interligados, a igreja e o poder. A narrativa que acolhe o inexplicado como vocação e adesão da lógica de quem assiste… Está lá tudo como estará em «Este Obscuro Objecto de Desejo», o último filme, em 1977.

O que representará este filme, afinal, não para a História do Cinema mas para o espectador que o vê hoje, numa sala de cinema, em horário comercial, depois de sair do trabalho e antes do quotidiano o invadir novamente?

jef, agosto 2019

«A Idade de Ouro» (L’Âge d’Or) de Luis Buñuel. Com Lya Lis, Gaston Modot, Max Ernst, Pierre Prévert, Caridad de Laberdesque, Germaine Noizet, Duchange, Evardon, Joseph Albert, Marval, Manuel Ángeles Ortiz, Ibañez, Valentine Hugo, Lionel Salem, Llorens Artigas, Jacques B. Brunius, Marie-Berthe Ernst, Jacques Prévert, Firmo, Enrique Maula, Mario Call, Pancho Coll, Simone Cottance, Xaume Miravitlles, Pedro Flores, Jean Aurenche, Juan Esplandiá, Joaquin Roa, Pruna e a voz off de Paul Éluard. Argumento: Luis Buñuel e Salvador Dali. Fotografia: Albert Duverber. Música: Georges Van Parys, Mendelssohn, Mozart, Beethoven, Debussy, Wagner, ‘paso-doble’ e os tambores de Calanda. Produção: Visconde e Viscondessa de Noailles. 1930, França, P/B, 62 min.


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