quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Sobre o filme «Noite na Terra» de Jim Jarmusch, 1991


















Quando preciso de me reconciliar com a noite (ou com o dia) e não tenho à mão um filme de Frank Capra vou buscar «Noite na Terra» (ou qualquer outro filme) de Jim Jarmusch.

Jim Jarmusch tem essa capacidade (tal como Robert Altman) de fazer filmes ‘multidão’, com dezenas de actores-amigos que circulam dentro das histórias como se as conhecessem de ginjeira, como se se sentissem em casa, como se abraçassem toda a real humanidade com o seu teatro devolvendo, depois, o filme à nossa mais profunda e afectuosa familiaridade. Uma espécie de código específico a tocar directo o coração do espectador.

Mas entre todos os seus filmes, «Noite na Terra» é(-me) muito particular. As cinco histórias (Los Angeles, Nova Iorque, Paris, Roma e Helsínquia) tocam os fusos horários que giram sobre o globo terrestre até se transformarem, novamente, em dia. E a noite, todos sabemos como é íntima, e compreende ou aviva as inseguranças, une quem tem de se unir.
Tudo no interior de um (cinco) táxi(s).

É impressionante o confronto cúmplice hollywoodesco das grandes Gena Rowlands (Victoria Snelling) e Winona Ryder (Corky). Entre a vida de sonho, toldada pelo cansaço da desilusão, da primeira e a comédia esperançosa da taxista fumadora que recusa ser estrela de cinema porque quer seguir uma carreira de mecânica de automóveis.

Em Nova Iorque, o caso carinhoso fica nas mãos de uma dupla de passageiros-taxistas: Giancarlo Esposito (YoYo) e Armin Mueller-Stahl (Helmut Grokenberger), onde o passageiro pega desesperado no táxi e o taxista-imigrante-palhaço vai ficando deslumbrado com a beleza dos subúrbios de uma enorme capital. Até que surge numa rua a maravilhosa
Rosie Perez (Angela). Um ponto a favor da ternura e dos palavrões.

Paris, como todas as capitais, é terra de imigrantes e o taxista da Costa do Marfim (Isaach De Bankolé) não está a ter uma noite fácil. Vê-se obrigado a expulsar dois passageiros racistas (Emile Abossolo M’Bo e Pascal N’Zonzi). Logo depois recebe como passageira uma mulher cega, Béatrice Dalle. São dois desencontrados que se intrigam por curiosidade, quase se repelem, mas vão-se entregando a uma distante atracção que os deixa tão próximos quanto deles está a noite parisiense.

Como em Roma sê romano, o taxista é Roberto Benigni (Gino) e o passageiro, claro, é um padre (Paolo Bonacelli) que tem de o ouvir em confissão. Mas as confissões de Gino têm o que se lhe diga e a corrida acaba a meio e a parada não chega a ser cobrada.

Em breve, o amanhecer verá a cidade de Helsínquia e o taxista Mika (Matti Pellonpää) recebe três passageiros (Kari Väänänen, Sakari Kuosmanen e Tomi Salmela) tocados pela tristeza, pelo abandono, pelo álcool. A amizade une-os profundamente e as histórias, cuja realidade dramática coincidem com a do taxista, dão o mote a uma comovente e alcoolizada troca de confidências.

Jim Jarmusch é assim, um realizador amorável cuja generosidade imensa se transforma na rara mestria em saber ‘ceder a autoria’ das obras a quem mais estima e reconhece o valor dramático, o maior ouro artístico.

Claro que este filme não seria o mesmo sem a melhor banda sonora entregue ao seu amigo de sempre, Tom Waits.

jef, agosto 2019

«Noite na Terra» (Night on Earth) de Jim Jarmusch. Com Winona Ryder, Gena Rowlands, Giancarlo Esposito, Armin Mueller-Stahl, Rosie Perez, Isaach de Bankolé, Béatrice Dalle, Emile Abossolo M’Bo, Pascal N’Zonzi, Roberto Benigni, Paolo Bonacelli, Matti Pellonpää, Kari Väänänen, Sakari Kuosmanen, Tomi Salmela. Música: Tom Waits. Fotografia: Frederick Elmes. Argumento: Jim Jarmusch. 1991, EUA, Cores, 123 min.

«Night on Earth» (Original Soundtrack Recording) de Tom Waits. Canções de Tom Waits & Kathleen Brennan. Produção: Tom Waits. Arranjos: Tom Waits & Francis Thumm. Island, 1991.

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