(a)
Eduardo Lourenço num recente Jornal de Letras diz:
«Sem um sublime filme de Max Ophüls o nome de Stefan Zweig
talvez não dissesse grande coisa à jovem geração. Para a minha, o autor de Confusão de Sentimentos e Amok dizia de mais. Para a geração
crítica que então, como é norma, separava sem complacências os vivos dos
mortos, o pobre Stefan Zweig, puro produto da Viena misteriosa dos começos do
século, tinha o pecado sem remissão de ser lido por toda a gente. A celebridade
torna-o, entre nós, um autor maldito.»
O filme referido é «Carta de uma Desconhecida» que Max Ophüls
realizou em 1948. Acrescentaria eu, humildemente, «O Medo» de Roberto Rossellini
de 1954. Muitos outros filmes foram realizados à sombra das letras de Stefan
Zweig. Os filmes são recordados, o autor das novelas não. Injustiça plena para
quem realmente era lido por toda a gente! Quem não encontra nas estantes perdidas as edições da Livraria
Civilização?
Felizmente a Assírio & Alvim, a Antígona e a Relógio d’Agua,
voltaram a colocar o famoso-esquecido autor austríaco nas prateleiras.
Stefan Zweig pertencia à elite iluminada de uma Europa
ecuménica e galante, culta, ávida pela novidade poética mas distraída perante a
novidade política, digamos antes, fleumaticamente distante da intriga social e
económica de um continente que germinava a crise como um furúnculo. E tal como
muitos judeus ricos, Stefan Zweig não se sentia judeu, apenas europeu. E foi
surpreendido.
(b)
«A maior parte das pessoas possui apenas uma imaginação
fraca. O que não as fere directamente, enterrando-se-lhes como uma punhalada em
pleno cérebro, não as chega a impressionar; porém, se diante dos seus olhos se
produz qualquer coisa, mesmo de pouca importância, mas que esteja ao alcance da
sua sensibilidade, imediatamente brota nelas uma paixão desmedida. Assim, com
uma veemência imprópria e exagerada, essas pessoas compensam, de certo modo, o
pouco interesse que têm pelos outros acontecimentos.»
Logo na primeira página, Stefan Zweig monta a estratégia
desta novela de reflexos, olhares e confissões. Estamos na casa de espelhos de
uma pequena pensão da Riviera burguesa. 1904. Todos os olhares se concentram à
mesa da refeição. O mundo torna-se pequeno. E uma comensal deixa a família e evade-se
com o seu jovem apaixonado.
Este é o caso que irá despoletar toda a história que é contada
ao narrador que é igualmente o leitor, o juiz, o padre, o psicanalista. É necessário
contar para ser julgado e compreendido, para libertar a pena, para ganhar a
confiança, para matar o preconceito.
«Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher» reflecte esse extraordinário
jogo de reflexos narrativos, de monólogos e ouvintes, de confissões e perdão,
de rostos estáticos e mãos ávidas. Reflexos que a noite faz concentrarem-se a sobre
o objecto observado.
Stefan Zweig tem, no fundo, horror ao preconceito, ao falso
juízo que tolda a liberdade individual e leva os de pouca imaginação a
exagerarem e, em última instância, a restringirem a liberdade colectiva.
(c)
«Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher» é um livro cheio
de recantos misteriosos e Stefan Zweig escreve muito bem. Contudo, como
refere Eduardo Lourenço, era lido por toda a gente. E, como muitos outros
judeus, o autor foi derrotado por quem saiu derrotado na Grande Guerra. Causa essencial
do estratégico esquecimento universal.
Dupla maldição!
(d)
Nota: a ilustração da capa desta edição é do artista modernista
Roberto Araújo Pereira (1908-1969).
jef, outubro 2016
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