O suplício de Kusturica. De Tântalo a Sísifo.
A linguagem do realizador ultrapassou-o. O dicionário
mantém-se, talvez avantajado por dispensáveis efeitos especiais e animais digitais
retirados de um tardio Senhor dos Anéis. Cobras, borboletas, passarinhos
dardejantes. A semântica confunde a narração que ostenta a pressa. Corremos
atrás da sintaxe de tantos animais e objectos que, em anteriores filmes respondiam, mas agora decoram. Há muito lança-chamas que carboniza personagens que não chegaram
a ter história. Noivas atletas, sogras dolentes, relógios assassinos, desaparecem
sem rasto. Demasiada música e orelhas dançantes. No centro, um leiteiro em fuga
da sua própria personagem. Estático mas saltitante, escondido por um guarda-sol, um falcão, um
burro fustigado. Kusturica não consegue apanhar o leiteiro. Esconde a cara.
Não a caracteriza. Explode, não emociona.
E o tempo? O tempo do teatro? Esse hiato que liga a imagem
realizada à consciência do espectador, à fala de um coro memória-futuro? Onde
pára o palco? Não basta evocar Sócrates e Homero. Não basta convocar as musas, as radiosas Monica
Bellucci e Sloboda Micalovic. Não basta colocar personagens encantadoras em
locais de cortar a respiração. Não basta sabermos a boa intenção, lúdica intenção,
do realizador. Era preciso mais!
Para quê tanto desperdício de objectos e cenários, se Tântalo
não lhes pode chegar?
Chegará a imagem final, bela e sintomática, de um campo de
minas coberto de pedras içadas montanha acima, ao som da valsa mais bela de
Stribor Kusturica, para redimir a tristeza de Sísifo?
Saudades de «Underground», 1995.
jef, janeiro 2017
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