terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Sobre o livro «Epístola aos Vindouros e Outros Poemas» de Carlos Queiroz, Ática 1989


















Carlos Queiroz parece ter vivido entre os dois números do «Orpheu», publicados em 1915, e os 54 números da «Presença», publicados entre 1927 e 1940.
Nasceu em 1907. Morreu em 1949. Em Paris.
Carlos Queiroz não escreveu muitos livros. Não encheu arcas. Foi poeta, ensaísta e crítico literário e de arte. Estudou Fernando Pessoa.
As edições Ática publicaram dois volumes reunindo a sua obra poética.
O volume I (1984) contém «Desaparecido», de 1935, e «Breve Tratado da Não-Versificação», de 1948.
Cinco anos depois, o volume II recolhe poemas dispersos e organiza-os por categorias. Categorias úteis apenas porque as páginas e os poemas devem aparecer por uma ordem qualquer.
«Epístola aos Vindouros» data do ano da sua morte e condensa toda a energia vital. Os poemas que a antecedem representam também um mundo por definir, um mundo que reúne mundos. Porém, todos os reverentes que transcendem mas não transgridem e conciliam ideias e modos, não ficam na fortuita memória dos que correm pela pueril digitalização do futuro.

David Mourão-Ferreira diz no preâmbulo:
Se tivesse sido publicado há quarenta anos, desde há muito decerto reconheceríamos que ele tinha então representado uma das mais fascinantes cúpulas da poesia portuguesa da primeira metade do século. Publicado agora, é como se tal cúpula magicamente se tivesse deslocado no eixo do tempo a fim de mais amplamente fazer sentir a perenidade da sua construção.
Eis o milagre: um livro novo, perturbantemente novo, enriquecedoramente novo, e de uma novidade ainda mais assombrosa pelo facto de já quarenta anos terem rodado sobre a morte do seu autor.

Neste livro, Carlos Queiroz é romântico mas modernista. É simbólico e construtivo. É desafiador na nostalgia. Nostalgicamente futurista. É liricamente pessoano. É mobilizador de uma dificílima ironia sarcástica, tão sub-reptícia quanto ostentativa.
Isso é mau? Quem o leia, o interprete, o integre, que o diga.
jef, janeiro 2017

Anti-Soneto
O nosso drama de portugueses,
O nosso maior drama entre os maiores
Dos dramas portugueses,
É este apego hereditário à Forma:
Ao modo de dizer, aos pontinhos nos ii,
Às virgulas certas, às quadras perfeitas,
À estilística, à estética, à bombástica,
À chave de ouro do soneto vazio
– Que põe molezas de escravatura
Por dentro do que pensamos
Do que sentimos
Do que escrevemos
Do que fazemos
Do que mentimos.


No Fundo do Tejo
Fecho os olhos e vejo
No fundo do Tejo
Uma coisa que oscila ao sabor da corrente;
Que vai e vem, que deambula, rente
Às pedras e conchas macias e frias,
Dias e noites, noites e dias.

Uma coisa que as águas desfazem sem nojo,
Levando-a de rojo
No fundo do Tejo;
Uma coisa que eu vejo,
Uma coisa que eu sinto e não sei o que é,
– Tão longe de mim, tão fora de pé.

Uma coisa que os peixes, passando em cardumes
(Coruscantes e belos como lumes),
Ao vê-la, com espanto, mudam de pista,
Como os burgueses fazem ao Artista.

Uma coisa que lembra outra coisa que eu vi,
Num sonho que sonhei – mas que há muito esqueci:
Uma coisa pequena e ao mesmo tempo imensa,
Na sua vagabunda e singular presença.

Uma coisa que anda de cá para lá,
De lá para cá,
No fundo do Tejo;
Sem rumo, sem dono, sem nome, sem graça,
– Inútil e triste, como a carcaça de um caranguejo.

Uma coisa disforme, insensível, alheia,
– Mas que escreve, sem querer, o meu nome na areia!


Da ‘Epístola aos Vindouros’

Ó felizes vindouros:
Quando a calma cristã dos vossos lares
Em «taedium vitae» se transforme
E vos inspire a nostalgia
Da novidade e do tumulto,
Pensai que nós, os filhos deste século,
Fomos as vítimas inglórias
Da infância das técnicas.

[…]

Pensai que à doce Mística opusemos
A acre e fria Dialéctica
E varremos a nobre Metafísica
Com a vassoura da Economia;
Que na ânsia pueril de termos TUDO,
De superarmos as limitações
Da condição humana,
Reduzimos as dúvidas pretéritas
– Angustiosas mas fecundas –
À certeza do NADA.

[…]

Pensai que fomos nós os inventores
Das lívidas colmeias sociais –
Higiénicas, tristes, celulares
E mais desertas d’almas que necrópoles;
Que fizemos do verbo «organizar»
Um instrumento para destruir
O ócio, a graça, a liberdade,
A solidão e o sonho.
E que empalhámos em estatísticas
Todas as formas vivas d’existência
Desde o coito à poesia.

[…]

Assim pensando em tudo isto
(E no mais que vereis à transparência
Das lágrimas contidas nestes versos),
Ó felizes vindouros:
Quando a calma cristã dos vossos lares
Em «taedium vitae» se transforme
E vos inspire a nostalgia
Desta época atroz da infância das técnicas,
Orai por nós, orai por nós, orai por nós!

Sem comentários:

Enviar um comentário