terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Sobre o filme «Os Maias» de João Botelho, 2014


















Filme musical.
O filme que mais recordo de João Botelho é «Tempos Difíceis» (1987), uma alegoria gráfica do romance de Charles Dickens, filmada a preto e branco, com nuvens recortadas, paredes claras, bairros operários e chaminés. Tudo definido como num cenário de papelão, como num palco onde as imagens são personagens e a ficção torna-se o objecto real observado. João Botelho gosta de tocar em objectos reais (os livros) e transformá-los noutros objectos reais (os filmes). Todos ficcionais, como num palco. Então, como aprisionar na esquadria definitiva da imagem filmada o enquadramento ilimitado e simbólico da leitura de um livro? Como pode João Botelho respeitar os símbolos de uma das obras maiores da literatura sem desvirtuar a capacidade dramática ilimitada do cinema? Apenas com o teatro. As imensas telas pintadas por João Queiroz, as cortinas, os brocados, o damasco e o cetim, os pendões decrépitos de uma monarquia em banca rota, o palco a ranger, o Sol eléctrico. O pó e as palavras lidas e ditas. A música essencial a fazer eco nos bastidores.

[1] A minha lista de filmes «musicais» inclui «O Navio» de F.Fellini (1983), «My Fair Lady» de G.Cukor (1964), «Senso» e «O Leopardo» de L.Visconti (1954, 1963), «A Flauta Mágica» de I.Bergman (1975), «Evangelho segundo São Mateus» de P.P.Pasolini (1964).

[2] Parafraseando Ricardo Araújo Pereira, espero que o filme de João Botelho não sirva apenas para resumir o livro de Eça de Queirós dentro das salas de aula portuguesas. Que sirva antes para multiplicar-se por novíssimas leituras.

jef, setembro 2014

Sobre o filme «Os Maias» de João Botelho, 2014. Com Graciano Dias, Maria Flor, João Perry, Pedro Inês, Adriano Luz, Rita Blanco, Filipe Vargas, Ana Moreira, Rui Morrison, Catarina Wallenstein. Portugal, 2014, Cores, 135 min

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Sobre o filme «Silêncio» de Martin Scorsese, 2016


















Sobre o filme «Silêncio» de Martin Scorsese, 2016

Martin Scorsese coloca o dedo na ferida.
A maior incoerência do ente humano é a sua espiritualidade. Tudo se condensa num diálogo refractário, silencioso mas amplificado.
Lembro-me dos monólogos de Robert Bresson «Diário de Um Pároco de Aldeia» (1950), de Ingmar Bergman «A Fonte da Virgem» (1960), de Andrei Tarkovsky «Stalker» (1979), de João Mário Grilo «Os Olhos da Ásia» (1996), de Hany Abu-Assad «O Paraíso, Agora!» (2005):
O que fazer com o nosso ‘querer’? Onde nos leva o nosso ‘crer’? Acreditaremos mesmo na nossa vontade? E se ao perigoso caldo sobrepusermos Deus e a sua Vontade? Qual o limite dessa crença, até onde nos poderá levar?
Contudo, «Silêncio» toca em muitas outras palavras inevitáveis:
Apostatar, renunciar, abjudicar. Pisar a imagem Cristo para salvar os cristãos japoneses que estão a ser, para isso, frontalmente torturados até à morte. Será este um acto igual a renunciar à substância de Cristo, aos fundamentos divinos, à própria Fé? Os recentes cristãos morrem pela imagem de Deus na Terra, os padres jesuítas hesitam. Onde paira a verdade? Quem detém a fé mais inabalável? Uma questão séria que a semiologia deve explicar para a História das Civilizações compreender.

O símbolo pode alienar a ideia, diria o Islão.

«Faça favor de a pisar, salvá-los-á da morte. Uma mera formalidade» diz o inquisidor japonês pelo meio de um monólogo incisivo, racional e lógico, onde devolve o tema do fundamentalismo e da intolerância para o lado dos jesuítas portugueses que não compreendem a estrutura social do Japão. Deste lado está a perseguição oficial e ilimitada aos cristãos mas também o Budismo, o contrato comercial exclusivo com os Holandeses, a disputa feroz dos mares do rico Oriente pelas potências ocidentais, a miséria de um povo perdido no meio de um arquipélago medieval, um povo a quem, secretamente, é prometido o Paraíso se jurar abnegação a um «formal» crucifixo.

Aqui, Martin Scorsese não abandona o dicionário violento, visual e sonoro, com que costuma abominar Hollywood e os Óscares da Academia, mas vai colocar essa violência explícita a favor da total abstracção que é a salvação pelo martírio, o abandono ao suplício, a resistência à dor física, ao limite da condição vital, à entrega voluntária para a morte. O realizador consegue, de modo claro, sublinhar a dúvida sistemática embora diversa que atinge os três missionários da Companhia de Jesus: Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Drive). Três modos de dialogar com o inquisidor. Três modos de encarar o conflito entre a verdade e a incerteza no desencontro das civilizações.

Martin Scorsese anuncia esteticamente a Dúvida que, quer se queira ou não, é um dos princípios filosóficos da incoerência espiritual do ente humano. Do próprio cristianismo. A mesma dúvida que o silêncio fez ecoar, as mesmas palavras gritadas por Cristo na última hora:
«Pai, por que me abandonaste?».

jef, janeiro 2017

«Silêncio» (Silence) de Martin Scorsese. Com Andrew Garfield, Liam Neeson, Adam Driver, Tadanobu Asano, Ciarán Hinds, Nana Komatsu, Ryo Kase , Yoshi Oida Yosuke Kubozuka, Shinya Tsukamoto, Issei Ogata. Baseado no livro «Silêncio» de Shusaku Endo (1966). México /EUA / Taiwan, 2016, Cores, 161 min.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

sobre o som do filme «Só os Amantes Sobrevivem» de Jim Jarmusch, 2013


















Não importa investigar se o filme é uma tragédia ou uma comédia de costumes vagos. Também não interessa se Eve, Adam, Ava ou Marlowe, vampiros há séculos encartados, surgem do vaudeville ou da commedia dell’arte. O que verdadeiramente salta à vista (e aos ouvidos) é a pulsão irreprimível de Jarmusch para fazer dos objectos sonoros e dos objectos visuais o corpo substancial de um filme. Cítaras, alaúdes, guitarras e baixos eléctricos, violinos e violoncelos, perguntam ao espectador se pertencem ao naipe das cordas ou integram já o da percussão (Sqrül, Steffen Irlinger, Robert Fernandez). Também os quadros-cenários fazem uma migração paralela. Todas as salas são atafulhadas de instrumentos musicais, discos, amplificadores, livros, carpetes, tecidos, cores, luzes, marcações de cena, locais onde cabe uma cidade inteira, enquanto a deriva dos noctívagos é feita por ruas, fábricas e teatros vazios, na silenciosa intimidade de um quarto. Suspeito que a história da busca sanguinária pouco interessou a Jarmusch (excepto os cálices, a espessura do sangue, o brilho das pequenas garrafas metálicas). O que é fundamental no filme é a estrutura da cena e a intensidade dos sinais. Talvez só em «Dead Man» (1995) tenha oferecido à banda sonora de Neil Young um estatuto esteticamente tão abstracto. Os filmes de Jim Jarmusch, e em especial «Só os Amantes Sobrevivem», pertencem ao cinema «musical» como os de Stanley Kubrick, Wim Wenders, David Lynch ou Abel Ferrara.

jef, junho 2014

«Só os Amantes Sobrevivem» (Only Lovers Left Alive) de Jim Jarmusch. Com Tilda Swinton, Tom Hiddleston, John Hurt, Mia Wasikowska, Jeffrey Wright, Slimani Dazi. Grã-Bretanha / Alemanha, 2013, Cores, 123 min.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Sobre o filme «Jovem e Bela» de François Ozon, 2013


















Modo de o usar
No último ano, o cinema francês tem dedicado alguma da sua melhor arte a explicar-nos como será o corpo humano o lugar mais estranho, e mais sugestivo, para habitar. Quem não o possua que o negue, que evite o início, o fim da infância, a adolescência, a aventura do futuro. O sexo. Assim o demonstrou Abdellatif Kechiche em «A Vida de Adèle: Capítulos 1 e 2» ou Alain Guiraudie em «O Desconhecido do Lago». Em defesa dos anteriores, François Ozon coloca a imagem de uma normalidade, diria realidade familiar, sobre o que nada tem de normal na viagem experimental de um corpo. É precisamente esse encontro do afecto, em cada uma das estâncias da viagem iniciática, que torna a beleza deste filme um estado maior. As lágrimas, os silêncios, o incómodo, o confronto com o amor da família, a verbalização, transformarão a descoberta em afinidade ou afastamento definitivo, dará ao crescimento a consciência do adulto, mas retirar-lhe-á, para sempre, a alegria da aventura. A necessária revisitação de um quarto ou de um corpo confirma apenas o que já é passado, e apresenta a ingrata e infinita seriedade do presente. “On n'est pas sérieux, quand on a dix-sept ans”, assim é citado «Roman» de Arthur Rimbaud. Assim o cantou Léo Ferré.

jef, abril 2014


«Jovem e Bela» (Jeune et Jolie) de François Ozon. Com Marine Vacth, Géraldine Pailhas, Frédéric Pierrot, Fantin Ravat, Johan Leysen, Charlotte Rampling, Nathalie Richard. França, 2013, Cores, 95 min.

Sobre o livro «Epístola aos Vindouros e Outros Poemas» de Carlos Queiroz, Ática 1989


















Carlos Queiroz parece ter vivido entre os dois números do «Orpheu», publicados em 1915, e os 54 números da «Presença», publicados entre 1927 e 1940.
Nasceu em 1907. Morreu em 1949. Em Paris.
Carlos Queiroz não escreveu muitos livros. Não encheu arcas. Foi poeta, ensaísta e crítico literário e de arte. Estudou Fernando Pessoa.
As edições Ática publicaram dois volumes reunindo a sua obra poética.
O volume I (1984) contém «Desaparecido», de 1935, e «Breve Tratado da Não-Versificação», de 1948.
Cinco anos depois, o volume II recolhe poemas dispersos e organiza-os por categorias. Categorias úteis apenas porque as páginas e os poemas devem aparecer por uma ordem qualquer.
«Epístola aos Vindouros» data do ano da sua morte e condensa toda a energia vital. Os poemas que a antecedem representam também um mundo por definir, um mundo que reúne mundos. Porém, todos os reverentes que transcendem mas não transgridem e conciliam ideias e modos, não ficam na fortuita memória dos que correm pela pueril digitalização do futuro.

David Mourão-Ferreira diz no preâmbulo:
Se tivesse sido publicado há quarenta anos, desde há muito decerto reconheceríamos que ele tinha então representado uma das mais fascinantes cúpulas da poesia portuguesa da primeira metade do século. Publicado agora, é como se tal cúpula magicamente se tivesse deslocado no eixo do tempo a fim de mais amplamente fazer sentir a perenidade da sua construção.
Eis o milagre: um livro novo, perturbantemente novo, enriquecedoramente novo, e de uma novidade ainda mais assombrosa pelo facto de já quarenta anos terem rodado sobre a morte do seu autor.

Neste livro, Carlos Queiroz é romântico mas modernista. É simbólico e construtivo. É desafiador na nostalgia. Nostalgicamente futurista. É liricamente pessoano. É mobilizador de uma dificílima ironia sarcástica, tão sub-reptícia quanto ostentativa.
Isso é mau? Quem o leia, o interprete, o integre, que o diga.
jef, janeiro 2017

Anti-Soneto
O nosso drama de portugueses,
O nosso maior drama entre os maiores
Dos dramas portugueses,
É este apego hereditário à Forma:
Ao modo de dizer, aos pontinhos nos ii,
Às virgulas certas, às quadras perfeitas,
À estilística, à estética, à bombástica,
À chave de ouro do soneto vazio
– Que põe molezas de escravatura
Por dentro do que pensamos
Do que sentimos
Do que escrevemos
Do que fazemos
Do que mentimos.


No Fundo do Tejo
Fecho os olhos e vejo
No fundo do Tejo
Uma coisa que oscila ao sabor da corrente;
Que vai e vem, que deambula, rente
Às pedras e conchas macias e frias,
Dias e noites, noites e dias.

Uma coisa que as águas desfazem sem nojo,
Levando-a de rojo
No fundo do Tejo;
Uma coisa que eu vejo,
Uma coisa que eu sinto e não sei o que é,
– Tão longe de mim, tão fora de pé.

Uma coisa que os peixes, passando em cardumes
(Coruscantes e belos como lumes),
Ao vê-la, com espanto, mudam de pista,
Como os burgueses fazem ao Artista.

Uma coisa que lembra outra coisa que eu vi,
Num sonho que sonhei – mas que há muito esqueci:
Uma coisa pequena e ao mesmo tempo imensa,
Na sua vagabunda e singular presença.

Uma coisa que anda de cá para lá,
De lá para cá,
No fundo do Tejo;
Sem rumo, sem dono, sem nome, sem graça,
– Inútil e triste, como a carcaça de um caranguejo.

Uma coisa disforme, insensível, alheia,
– Mas que escreve, sem querer, o meu nome na areia!


Da ‘Epístola aos Vindouros’

Ó felizes vindouros:
Quando a calma cristã dos vossos lares
Em «taedium vitae» se transforme
E vos inspire a nostalgia
Da novidade e do tumulto,
Pensai que nós, os filhos deste século,
Fomos as vítimas inglórias
Da infância das técnicas.

[…]

Pensai que à doce Mística opusemos
A acre e fria Dialéctica
E varremos a nobre Metafísica
Com a vassoura da Economia;
Que na ânsia pueril de termos TUDO,
De superarmos as limitações
Da condição humana,
Reduzimos as dúvidas pretéritas
– Angustiosas mas fecundas –
À certeza do NADA.

[…]

Pensai que fomos nós os inventores
Das lívidas colmeias sociais –
Higiénicas, tristes, celulares
E mais desertas d’almas que necrópoles;
Que fizemos do verbo «organizar»
Um instrumento para destruir
O ócio, a graça, a liberdade,
A solidão e o sonho.
E que empalhámos em estatísticas
Todas as formas vivas d’existência
Desde o coito à poesia.

[…]

Assim pensando em tudo isto
(E no mais que vereis à transparência
Das lágrimas contidas nestes versos),
Ó felizes vindouros:
Quando a calma cristã dos vossos lares
Em «taedium vitae» se transforme
E vos inspire a nostalgia
Desta época atroz da infância das técnicas,
Orai por nós, orai por nós, orai por nós!

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Insónia









Insónia

A janela aberta respira sobre os montes
O Sol ainda não
O galo canta muito ao longe
Não dá para o ouvir
Não chega para me acordar
A faca não lhe afia o pescoço
Suspeito que canta só para espantar o metal,
aliviar-lhe o fio
Mas o amanhecer próximo, estridente, permanece como o primeiro
que a Terra conheceu
A luz, muita, e a brisa do renascimento
o calor novo,
as penas da galinha
e o canto do galo por escutar
O peso do sono
o estribilho da lâmina


jef, janeiro 2017

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Sobre a peça de teatro «As Grandes Dionísias» de Firmino Bernardo & Suzana Branco, Apenas Livros, 2013


No princípio era o verbo. Se o evangelista João tem razão, essa razão vem da palavra dita, ouvida, dialogada. Pois antes, muito antes de Cristo e da palavra como dogma, está a palavra como ritual, como máscara, como reinterpretação. A palavra e o teatro nascem com a humanidade. Fazer teatro não é mentir, é compreender. Luigi Pirandello, Peter Handke, Manuel Halpern, escreveram teatro sobre teatro, a palavra sobre a palavra. Também Firmino Bernardo e Suzana Branco rescrevem a tragédia «As Bacantes» de Eurípedes, estreada em 406 a.C., para entender um grupo de teatro amador em conflito com um encenador de haute culture: «Nunca tentaste compreender-nos». «E vocês, já tentaram compreender o que significa fazer teatro?». «Esqueçam-se de vocês e lembrem-se do espectáculo», põe ordem, finalmente, o Taberneiro, investido como «deus ex machina», coro, actor e encenador. A voz que, com humor e razão, vem salvar a cabeça de Penteu, a cegueira de Agave, o futuro da palavra, a realidade do disfarce, a alegria do público. No princípio é, na verdade, o Teatro. E o teatro lido tem um sabor muito especial. Palavra!

jef, julho 2013

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Sobre o realizador Ira Sachs e os filmes «Homenzinhos» (2016) e «O Amor É uma Coisa Estranha» (2014)



















O mais interessante no realizador Ira Sachs é a gestão emocional dos personagens em confronto com a realidade económica e social em que a amizade, o amor e a família, têm de sobreviver.
Dá espaço a Ben (Alfred Molina) e a George (John Lithgow) quando decidem casar em Manhattan, após 39 anos de relacionamento, na sequência da aprovação do casamento entre homossexuais mas, logo depois, surge o desemprego súbito directamente relacionado com a decisão. 
Dá espaço à amizade crescente entre os dois míudos, Jake (Theo Taplitz) e Tony (Michael Barbieri), enquanto os pais de ambos entram em conflito por causa de um contrato de arrendamento e da «gentrificação» (vá lá, Google!) da zona residencial de Brooklyn.
Ira Sachs é mestre em fazer apaixonar os espectadores pelas suas personagens, transmitindo-lhes o carácter profundo da emoção, da transparência, da bondade.
Ira Sachs pretende mobilizar as consciências fazendo-nos crer que iremos assistir a uma sadia e suave comédia (ao ritmo e tempo de um Woody Allen) para, mais à frente, trocar as voltas à gentileza das personagens expondo-as ao embate das circunstâncias de uma cidade formatada pelas leis gélidas do mercado. Afinal, estamos perante melodramas, onde ninguém parece sair ileso.
O amor entre Ben e George é interrompido. A amizade entre Jake e Tony deve findar. O espectador, emocionalmente desamparado, fica sentado na cadeira sem saber o que pensar. A realidade é mesmo assim, os afectos tantas vezes amputados.
Contudo, o cinema não é realidade. Tem de ser mais. Ira Sachs não faz render o ouro que propõe e devia ceder mais tempo ao que narra, mais estética à tragédia.
É essa a estética de «Ladrões de Bicicletas» de Vittorio De Sica (1948), «No Quarto da Vanda» de Pedro Costa (2000) ou «Eu, Daniel Blake» (2016). Tem de haver solução na Arte para a cidade vazia, para a economia abstracta.

jef, janeiro 2017

«Homenzinhos» (Little Men) de Ira Sachs. Com Greg Kinnear, Jennifer Ehle, Paulina García, Alfred Molina, Theo Taplitz, Michael Barbieri e Alfred Molina. Grécia / EUA, 2016, Cores, 85 min.
«O Amor É uma Coisa Estranha» (Love is Strange) de Ira Sachs. John Lithgow, Alfred Molina, Marisa Tomei. EUA, 2014, Cores, 90 min.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Sobre o filme «O Estado das Coisas» de Wim Wenders, 1982


















«Stories only exists in stories (where as life goes by without the need to turn into stor...) Life without stories, it isn’t worth living.» Vamos lendo, vamos ouvindo, por dentro de um filme.
Vivemos em permanência entre o passado terminado e o desejo de um futuro permanentemente fora do nosso alcance. O que fazer com a fina epiderme do presente sem possibilidade de história ou redenção? «O Estado das Coisas» assume a tese, a antítese, a síntese do paradigma.

«Os Sobreviventes» está a ser rodado em Sintra. O Planeta não oferece condições e as famílias caminham à procura de um lugar seguro que as acolha… mas a película termina, o financiamento não aparece, Hollywood distancia-se, os actores e toda a equipa de rodagem ficam suspensos numa Lisboa que aguarda salvação. O realizador Friedrich Munro (Patrick Bauchau) parte em busca de dinheiro e de Gordon (Allen Goorwitz), produtor desaparecido, mas Los Angeles espera também pelo presente. Nada a fazer! Aguardemos também.

«A vida pode ser a cores mas o preto e branco é mais realista!» diz Samuel Fuller, o realizador, aqui Joe, o cameraman. A América quer seduzir a Europa mas já ninguém vê filmes a preto e branco. Já ninguém olha para o passado. Relíquia Macabra, Sublime Expiação. Charles Laughton, Jonh Ford, Douglas Sirk, John Huston…
Mas o sonho do futuro permanece por cumprir (tese) e apenas nos agarraremos às imagens que ficam captadas no passado (antítese). Em «O Estado das Coisas» cada plano é afinal a absoluta síntese estética desse desamparo, dessa multifacetada angústia e declínio.

América, Europa, para que as queremos? 
Haverá ainda algum planeta seguro onde o presente não se derreta inexoravelmente? Quais as palavras inventadas pelos alemães para dizer naufrágio, suspensão, tédio?

jef, janeiro 2017

«O Estado das Coisas» (Der Stand der Dinge / The State of Things) de Wim Wenders. Com Patrick Bauchau, Geoffrey Carey, Isabelle Weingarten, Jeffrey Kime, Rebecca Pauly, Jeffrey Kime, Camilla Mora, Alexandra Auder, Paul Getty III, Viva Auder, Samuel Fuller, Artur Semedo, Francisco Baião, Robert Kramer, Allen Goorwitz, Roger Corman, Martine Getty, Monty Babe, Janet Rasak, Judy Moradian. Música: Jürgen Knieper. Portugal / EUA / Alemanha, 1982, Cores, 121 min.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Sobre o filme «Uma História de Amor» de Spike Jonze, 2013


















Amor em valor absoluto. Solidão e transparência.
Há muito que não se via um filme de «ficção científica» tão claro nos propósitos teóricos, tão definido na estratégia da imagem, na escolha dos edifícios, das cores, na gestão dos espaços interiores e exteriores, na concepção do guarda-roupa, das canções. Uma espécie nova de «comédia romântica» a ser contemplada através de dois aspectos fundamentais: a solidão e a transparência. A solidão dos olhares de Theodore (Joaquin Phoenix) e Amy (Amy Adams) face à transparência da voz de Samantha (Scarlett Johansson). A solidão de um futuro onde as missivas de amor permanecem escritas por eruditos encartados, a transparência de uma arquitectura onde a vida e os corpos dos cidadãos não são expostos mas acarinhados na eterna busca de uma definição interior de amor. Mas é na definição, pública e única, que o cinema tem oferecido do amor que o título traduzido excede em significado o original. Esta história de amor não é virtual, é real, muito real, por isso também pode ser vista como «tragédia» sobre a solidão e a transparência do dia-a-dia futuro. A transparência do poder de um argumento sustentado por diálogos em solidão perfeita.

jef, fevereiro de 2014

«Uma História de Amor» (Her) de Spike Jonze. Com Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Chris Pratt, Rooney Mara, Kristen Wiig. EUA, 2013, cores, 126 min.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Jacarandá Jacaranda mimosifolia D. Don


 as fotografias são do querido colega José Carlos Figueiredo






















jacarandá, palissandra
Família Bignoniaceae (Bignoniáceas)

Originária da América do Sul (Argentina, Bolívia, Brasil) é uma árvore caducifólia de porte médio, de crescimento relativamente rápido, que atinge cerca de 15 m de altura. Possui uma copa ampla, arredondada a irregular, e o tronco, de 30 a 40 cm de diâmetro, é ligeiramente retorcido; com casca clara e lisa quando jovem, que se torna rugosa e mais escura com a idade. Gosta de humidade, prefere lugares abertos, ensolarados, solos férteis e bem drenados. A sua madeira é muito dura e tem excelentes propriedades mecânicas.

As folhas são amplas, opostas, recompostas e imparipinuladas, com 20 a 45 cm de comprimento, com pequenos e numerosos folíolos ovado-acuminados.

As flores, até 6 cm de comprimento, azul-violáceo, são hermafroditas e dispostas em panículas terminais, de corola bilabiada com o tubo curvo.

O fruto é uma cápsula oval, de 5 a 8 cm de diâmetro, bivalve, grande e lenhosa, achatada, de contorno irregular, deiscente, com numerosas pequenas sementes aladas.

As flores surgem de Maio a Julho, por vezes Agosto e Setembro, antes de se desenvolverem as novas folhas. Pode acontecer também de forma extemporânea e nem em todas as árvores ao mesmo tempo. Os frutos aparecem de Maio a Setembro.

Não serão muitos os que ficam indiferentes à tonalidade violeta que as flores tubulares dos jacarandás deixam sobre as ruas e os jardins, essas flores que precedem a folhagem frágil, semelhante aos fetos que se desenvolvem sobre o tronco das árvores (epífitos). A chegada de novas cores lembra novas estações e novas esperanças. Aligeirando a paisagem de Lisboa, as árvores cujos frutos, noutros lugares, são comparados a castanholas ou a ostras, agrupam-se ostensivamente discretas no Parque Eduardo VII, no Campo Pequeno, no Largo do Carmo, nas Avenidas Novas, na rua D. Carlos I… António Barreto, um declarado devoto a estas árvores, tal como o nome do seu blogue o confirma, escreve «No meio desta ansiedade, uma notícia ajuda a dormir em paz. Uma só certeza: a de que os jacarandás floriram!» (Público, 1995). O Centro Nacional de Cultura promove anualmente passeios para olhar a sua luz. Eugénio de Andrade refere que as suas flores prenunciam o Verão glorioso. O modo como os urbanistas têm difundido a plantação de jacarandás nos arruamentos das cidades portuguesas, principalmente em Lisboa, revela-se um caso muito feliz de comunhão estética com os respectivos cidadãos.

João Eduardo Ferreira
_______

AOS JACARANDÁS DE LISBOA
Eugénio de Andrade

São eles que anunciam o verão.
Não sei doutra glória, doutro
paraíso: à sua entrada os jacarandás
estão em flor, um de cada lado.
E um sorriso, tranquila morada,
à minha espera.
O espaço a toda a roda
multiplica os seus espelhos, abre
varandas para o mar.
É como nos sonhos mais pueris:
posso voar quase rente
às nuvens altas – irmão dos pássaros –,
perder-me no ar.


in «Os Sulcos da Sede» 2001

* botânica


Sobre o livro «Diários Portugueses» de Curt Meyer-Clason, Documenta, 2013


















Literatura. Acção e liberdade.
Dizem da literatura ser coisa difícil de definir, tantas as formas pelas quais se manifesta. «Diários Portugueses» escritos por Curt Meyer-Clason, documentando a sua passagem como director do Instituto Alemão, em Lisboa, no período de 1969 a 1976, são exemplo dessa liberdade literária. O livro lê-se como uma novela onde são descritas, de modo romanesco, personagens únicas em situações únicas (José Cardoso Pires, Natália Correia, Ruben A., Luandino Vieira, ou Beatriz, a mulher das limpezas). Coloca essas e muitas outras figuras dentro de uma Lisboa cujos cantos, recantos e arredores, identificamos com um prazer quase oitocentista. Transforma o estilo diarista, por princípio intimista, na proposta mundana das crónicas contemporâneas, ou dessas outras antiquíssimas que falavam em novas dinastias e revoluções. Tal como nos anos apaixonados de 1969 a 1976. Conhecer Portugal, a Europa e o Mundo, durante esse período, pela escrita modelada, inventiva, satírica do autor, é igualmente um modo de rever a História de forma muito moderna. Curt Meyer-Clason, através do lema: «não devemos viver do trabalho mas viver no trabalho», revela a paixão com que usou a cultura e a literatura para alterar o modo de encarar os obstáculos. Abriu assim as portas transparentes do agora Goethe-Institut aos autores e aos leitores, contornou a censura e a Pide para devolver à cidade a nova poesia, o novo teatro, a nova narrativa. Chamou a atenção para um Mundo que exigia a metamorfose urgente, deu outra definição para Portugal, «essa esponja onde se morde e se parte os dentes».
Os Diários de Curt Meyer-Clason ampliam a difícil definição de literatura, evidenciando que na sua estrutura crítica habitam indeléveis: a liberdade de pensamento e a acção para a cidadania. 
[Atenção ao posfácio de João Barrento que tão bem traduz este livro.]

jef, agosto 2014