sexta-feira, 30 de abril de 2021

Sobre o filme «Undine» de Christian Petzold, 2020


 
















Sempre me dei bem com a fantasia criativa mais delirante. Mesmo aquela que toca o lado onírico e surrealista. Gosto de Júlio Verne, Hergé, Cervantes, Gabriel Garcia Marquez, Lewis Carroll, Homero, Ray Bradbury, Horace Walpole, Mário Henrique Leiria, Mário de Carvalho, Tim Burton, John Carpenter… Só não consigo entrar muito bem em histórias que misturam tudo e me tentam dar gato por lebre, finais reais por apressados deus ex machina, supostos contactos extra-sensoriais e post mortem e futuros felizes apesar de fenecidos. Mortos-vivos sim mas fantasmas aquáticos e em apneia durante horas, não.

Sempre tive uma predilecção pelos filmes de Christian Petzold: «Yella» (2007), «Bárbara» (2012), «Phoenix» (2014), «Em Trânsito» (2018). Uma visão muito determinada e definida, poderíamos dizer “germânica”, de estética e fotografia irrepreensíveis, muito tocada pela História da Europa e pela consciência da Alemanha. Sempre com uma banda sonora especial e centrada em duas actrizes de uma fotogenia exemplar: Nina Hoss e, mais recentemente, Paula Beer.

Pois aqui, Paula Beer (Undine Wibeau) é muito particular na sua relação intrínseca com a câmara, no modo tão resoluto da personagem se entregar à história e à acção emocional.

Também nos é inevitável o adagio dilacerante em Ré menor de J.S. Bach vindo da transcrição para cravo de uma certa partitura veneziana (BWV 974).

Também, o espaço da arquitectura e a história do urbanismo de Berlim Leste, olhado pelas maquetes monumentais expostas no museu berlinense sobre a habitação, onde Undine Wibeau é historiadora e guia.

A suave circulação dos comboios, o plano de água da barragem, os sorrisos silêncios das personagens.

Tudo parece bater certo. No entanto…


jef, abril 2021

«Undine» de Christian Petzold. Com Paula Beer, Franz Rogowski, Maryam Zaree, Jacob Matschenz, Anne Ratte-Polle, Rafael Stachowiak, José Barros, Julia Franz Richter, Gloria Endres de Oliveira, Enno Trebs, Christoph Zrenner. Argumento: Christian Petzold. Fotografia: Hans Fromm. Alemanha, 2020, Cores, 91 min.

 

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Sobre o livro «O Imenso Adeus» de Raymond Chandler (1953), Livros do Brasil, Colecção Vampiro nova série #4, 2016. Tradução de Mário-Henrique Leiria.

 



«– O crime não é uma doença, é um sintoma. Os polícias são exactamente como os médicos que receitam aspirinas para um tumor cerebral. Excepto que muitos polícias prefeririam usar o cassetete. Nós somos uma nação grande, bruta, rica, um pouco louca, e o preço que pagamos por essas características é o crime. E se o crime se tornou organizado, isso é consequência da nossa mania de organização. Não vai desaparecer tão depressa. O crime organizado é o lado sujo do dólar.

– E qual é o lado limpo?

– Nunca o vi.»

Philip Marlowe é o detective privado de Raymond Chandler. Um homem de quarenta e tal anos, duro, firme, convicto, inteligente. Eternamente solitário, aguenta relativamente bem a bebida, o tabaco e as ressacas. Atrai os polícias maus os rufias bons, também as mais belas mulheres de Beverly Hills e Idle Valley. Tem uma intuição fulminante para identificar histórias mal contadas, facto que não o impede de tropeçar no seu próprio caminho. Um coração justo e nostálgico. Um sentimental.

Raymond Chandler faz o diagnóstico pormenorizado de uma nação através da descrição maravilhosa de Los Angeles e do vale da Califórnia, e muito pouco nos importará se todos se encontram ao virar de uma esquina, de um bar, de uma noite; se é fácil saltar um muro ou encontrar alguém através de uma lista infinda de moradas. Isso não interessa mesmo nada. Um bom livro policial é mesmo assim. Só que este é especial: a intriga é infinita, as reviravoltas prodigiosas, os diálogos ágeis e cheios de humor. Onde a lealdade é um princípio intocado.

Em Raymond Chandler a escrita corre por todos os interstícios da literatura de aventuras. Os percursos e as estradas são únicos. As descrições dos quartos e celas, das casas apalaçadas ou modernistas, do guarda-roupa e dos tiques dos personagens secundários, do olhar dos personagens principais são maravilhosas. As últimas frases são de antologia.

E mais nunca se pode revelar num romance policial.

Quero lá saber de cânones literários, críticos e recensões que ligam mais à conjuntura editorial que ao gosto mais genuíno da leitura. Prefiro, sem dúvida, a referência entusiástica que a grande mulher e magistrada Maria José Morgado faz a «O Imenso Adeus» num domingo, em certo programa televisivo.

jef, abril 2021

 

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Sobre a colecção «Autocolantes – 25 de Abril» de Vários Artistas. Xerefé & The Inspector Cheese Adventures, 2021


 





















Os autocolantes são os cromos que, em Abril de 1974 (ou algum tempo mais tarde), passaram da caderneta para a lapela, do futebol para a acção política, da prática privada do coleccionista para a influência pública do activista. Um modo simples e emblemático de reconhecimento mútuo por causas e ideias. Provocava imediatos sorrisos cúmplices ou esgares raivosos. A semiótica e a hermenêutica social que expliquem.

Ontem ao percorrer (cautelosamente) as laterais da Liberdade (diga-se Avenida da dita), encontrei os meus amigos André Ruivo, Ana Biscaia (e Ana Ruivo). Tinham reactivado essa prática tão simples dos autocolantes de propaganda, de publicidade, de acto político porque público e de influência. Bonitos, pequenos, populares. Mensagem directa, sem margem para duvidar ou pedir o dicionário emprestado.

«Viva a Liberdade e o 25 de Abril! Fascismo e ditadura nunca mais!»

São nove, assinados por nove grandes artistas: Ana Biscaia, André Lemos, André Ruivo, Gonçalo Duarte, Joana Monteiro, José Smith Vargas, Manuel San Payo, Mariana Malhão, Rachel Caiano.

Procurem-nos. Vale muito a pena coleccioná-los, politicamente!


jef, 25 abril 2021

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Sobre o filme «Nomadland – Sobreviver na América» de Chloé Zhao, 2020.


 






















Uma actriz incomum (Frances McDormand) veste a pele, a carne e os ossos de Fern, a condutora de uma carrinha transformada em casa com rodas que percorre as estradas da América. Vai estacionando aqui e ali, onde a deixam pernoitar. Logo no início, afirma que não é uma “homeless” mas uma “houseless”. Por convicção, por princípio, por nomadismo. Por solidão. Parte da cidade “pré-fabricada” de Empire, no Nevada, após esta ser desmantelada por encerramento do seu coração fabril: o pladur para a construção. Parte algum tempo depois de ter enviuvado.

A história é apenas esta. E é imensa.

Nevada, Nebraska, Arizona, South Dakota, Califórnia... São milhares de quilómetros percorridos, de trabalho temporário em trabalho temporário, de estacionamento em estacionamento, aguardando o tempo e o espaço que o território outorga. O espectador vai seguindo-lhe a rota e vai percebendo o seu propósito documentarista ao reconhecer que muitos daqueles actores nómadas refazem afinal, na ficção filmada, a própria realidade, contando-nos histórias de um território agreste que aparentemente não suporta fronteiras.

São histórias comoventes que vêm de uma América laboral e emocionalmente dilacerada. É impossível o espectador ficar alheado daqueles rostos, daquelas rugas. É impossível não reconhecer que a realizadora Chloé Zhao entrega tudo a essas personagens maiores.

É impossível não ver em Frances McDormand o génio de uma actriz “sem máscara”, sobre um palco sem ribaltas ou bastidores.

Porém, no final, e na fórmula obrigada de colocar um fim explicativo e romântico ou uma conclusão redundante, o filme perde força política fazendo-o rolar numa certa monotonia narrativa. Mas não será por isso que nos alhearemos, ética e esteticamente, de um mundo que se aproxima de nós através do coração mais real da ficção.


 jef, abril 2021

«Nomadland – Sobreviver na América» de Chloé Zhao. Com Frances McDormand, David Strathairn, Linda May, Gay DeForest, Patricia Grier, Angela Reyes, Carl R. Hughes, Douglas G. Soul, Ryan Aquino, Teresa Buchanan, Karie Lynn McDermott Wilder, Brandy Wilber, Makenzie Etcheverry, Bob Wells, Annette Webb, Rachel Bannon, Peter Spears. Argumento de Chloé Zhao baseado no livro de Jessica Bruder. Fotografia: Joshua James Richards. Música: Ludovico Einaudi. EUA, 2020, Cores, 107 min.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Sobre o livro «Portugal» de Miguel Torga (1950), Coimbra (6.ª edição) 1993








 











«Mas, passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa!»

Fala agora dos Algarves o escritor, numa das pouco frequentes páginas joviais desta espécie de ensaio sobre a geografia lírica de um País cristalizado. Entre o seu Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes), com o cerne em São Martinho de Anta, e a província irmã, de fôlego e extensão do alento, o Alentejo, de planuras onde nasce a fé e a esperança no destino nacional, Miguel Torga enfastia-se. Foge rápido do Porto e apouca a Cidade dos Doutores, torcendo o nariz à prosa de Eça. Da monotonia verde do Minho, da presunção dos beirões, da leviandade temporal de Lisboa vai um encolher de ombros. Fica-nos Sagres, cujo mar anseia por separá-lo, em ímpeto de fraga, do continente. Resta-nos as Berlengas que, essas sim, conseguiram afugentar-se-nos. Constrói-se, insatisfeita, a Estremadura:

«E porque foram os artistas os concretizadores e os teólogos da transcendência, é que o jardim nacional dos criadores deveria estender-se de Mondego até ao Sado. Os moinhos de vento, que polvilham luz nos outeiros, fingiriam ainda de gigantes desbaratados nos sonhos quiméricos dos acuais Quixotes do granito. E as Berlengas, imprecisas na sedução da bruma, seriam as ilhas da libertação desses eternos insatisfeitos».

Esqueçamos as Geografias de Portugal de Orlando Ribeiro e Suzanne Daveau; as Viagens de Saramago; os Guias de escudo na capa verde da Gulbenkian; até as Mensagens de Pessoa.

Este é um texto lento e pesado, diria brumoso, sobre um território inquietante e imutável, escrito de sobrolho franzido sobre papel áspero, repetindo o árduo substantivo “granito” e levando sobre os ombros a canga de “telúrico”, por adjectivo.


jef, abril 2021

 

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Sobre o livro «O Homem que Via Passar os Comboios» de Georges Simenon (1938). Colecção Mil Folhas 8, Público 2002. Tradução de Gemeniano Cascais Franco.











 











                   «A sua superioridade sobre os outros não seria, precisamente, porque ele ao menos se conhecia?»

Até que ponto é o feroz existencialismo, essa exigência desesperada de liberdade face aos limites e às circunstâncias impostas pelo meio que os cerca, também à opinião pré-estabelecida que os outros fazem de si, que une personagens tão singularmente libertárias (e literárias) como as de «Crime e Castigo» de Dostoiévski (1866), «Um, Ninguém e Cem Mil» de Pirandello (1926) ou «O Homem que Via Passar os Comboios» de Simenon (1938)?

Raskólnikov, Vitangelo Moscarda ou este Kees Popinga não desejarão, todos eles, fugir de uma teia social que os manieta e encarcera num estatuto social que repudiam, ou seja, escapulir de um dia-a-dia que lhes enterra o futuro em modorra e resignação?

Kees Popinga aproveita a deixa dada, certa noite, pelo seu patrão (disfarçado), Julius de Coster Júnior, e escapa-se num desses comboios nocturnos cujo destino aventuroso e incerto tanto o encantava. Algumas coisas não lhe correrão como esperava, porém, a sua confiança, o auto-conhecimento e ironia, o sangue frio de jogador de xadrez davam-lhe lastro para acreditar que iria vogar, liberto, por entre as ruelas e bulevares de Paris, sem dar tréguas ao comissário Lucas e a toda a narrativa que ia lendo sobre si próprio nos jornais, e até rebatia e corrigia em frequentes e educadíssimas missivas.

Popinga (como Moscarda ou Raskólnikov) era muito mais do que os outros pretendiam que fosse. Dentro dele existia um lado reprimido pela visão enevoada da sociedade. Um lado escondido e instigador (talvez apenas travesso) que exigia expressão pública, mesmo reconhecimento. Qualquer coisa entre a provocação infantil e a vaidade de artista que o levava a seguir a intuição e a construir, degrau a degrau, uma nova persona para os demais, afirmando para si, convictamente e com um sorriso interior: eu não sou louco, apenas conheço-me melhor do que vocês pensam.

Um romance mais irónico e filosófico do que policial que se lê de um fôlego emocionado. Uma tradução inesperada, feita de palavras idiomáticas certeiras mas também por frases que chegam de um português um tanto surpreendente, mesmo incompreensível.


jef, abril 2021

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Sobre o livro «A Um Deus Desconhecido» de John Steinbeck (1933), Livros do Brasil, Col. Miniatura, nova série #3, 2017. Tradução de Samuel Soares.








 







«Suportarei até um pouco de desconforto para preservar esta ordem que principiou a existir por acidente. Será uma pena destruí-la. Mas o mundo que encabeçava estava cansado de ficar sentado na mesma posição. Movia-se, subitamente, e as casas ruíam, as montanhas curvavam-se horrivelmente e todo o trabalho de um milhão de anos se perdia.

As dimensões alteravam-se, o tempo modificava-se.»

 

Esta é a história de Joseph e do clã Wayne, criadores de gado, que ele arrasta até Oeste, à densa orografia da prometida Califórnia, em busca de uma terra que os acolha. Um cenário de florestas, encostas, vales encaixados, nascentes e rios, à beira do Pacífico. Entre Salinas e Monterey, lugares de Steinbeck.

Mas não é um verdadeiro western de cowboys solitários, apesar de o serem. É uma história densa, frustrada, de quem caminha em busca da função da terra e do lugar onde esta retém a semente da espiritualidade. A espiritualidade pagã, ligada à água, ao Sol, ao voo do milhafre, ao presságio, à premonição. Uma história que descreve a capacidade que uma determinada região geográfica e edafo-climática, feita de extremos, tem de se afastar da ideia de Deus. Terra que gera animais, muitos animais, e também homens, para os fazer crescer e depois os sacrificar e enterrar, obrigando a circular o bem precioso dos nutrientes em torno da luz agreste e da água escassa. Da solidão profunda. Contudo, esta não é uma história “Papalagui”.

É uma história feita da atracção pela terra e da quase abulia de Joseph Wayne perante os seres vivos, cristalizada no deslumbramento amoroso ou no tédio nevrótico. Via dolorosa, quase penosa, que sugere o enorme sacrifício, mesmo tensão, sofridos por quem a escreveu, quase de modo programático. O escritor que vai deixando passar uma ansiedade pouco comum por ultrapassar, anulando, cada um dos momentos emocionalmente mais intensos para chegar, por fim, às diversas estações da espiritualidade pré-deífica. A via de renascimento, combate e morte no seio de uma natureza eternamente impune. Um texto agreste, nada ajudado por uma tradução que deixa o leitor, por vezes, à beira de um sorriso irónico.

Uma história de montanhas e pradarias, pessoas e bichos, tendo por centro um Deus sem matriz.

 

Nota. Em arrumos de estante e poeira de livros fui descobrir uma outra edição de bolso, velhinha, vinda da Editorial Gleba e integrada na famosa colecção “os livros das três abelhas”, dirigida por Victor Palla e Aurélio Cruz.

 

jef, março 2021