segunda-feira, 12 de abril de 2021

Sobre o livro «O Homem que Via Passar os Comboios» de Georges Simenon (1938). Colecção Mil Folhas 8, Público 2002. Tradução de Gemeniano Cascais Franco.











 











                   «A sua superioridade sobre os outros não seria, precisamente, porque ele ao menos se conhecia?»

Até que ponto é o feroz existencialismo, essa exigência desesperada de liberdade face aos limites e às circunstâncias impostas pelo meio que os cerca, também à opinião pré-estabelecida que os outros fazem de si, que une personagens tão singularmente libertárias (e literárias) como as de «Crime e Castigo» de Dostoiévski (1866), «Um, Ninguém e Cem Mil» de Pirandello (1926) ou «O Homem que Via Passar os Comboios» de Simenon (1938)?

Raskólnikov, Vitangelo Moscarda ou este Kees Popinga não desejarão, todos eles, fugir de uma teia social que os manieta e encarcera num estatuto social que repudiam, ou seja, escapulir de um dia-a-dia que lhes enterra o futuro em modorra e resignação?

Kees Popinga aproveita a deixa dada, certa noite, pelo seu patrão (disfarçado), Julius de Coster Júnior, e escapa-se num desses comboios nocturnos cujo destino aventuroso e incerto tanto o encantava. Algumas coisas não lhe correrão como esperava, porém, a sua confiança, o auto-conhecimento e ironia, o sangue frio de jogador de xadrez davam-lhe lastro para acreditar que iria vogar, liberto, por entre as ruelas e bulevares de Paris, sem dar tréguas ao comissário Lucas e a toda a narrativa que ia lendo sobre si próprio nos jornais, e até rebatia e corrigia em frequentes e educadíssimas missivas.

Popinga (como Moscarda ou Raskólnikov) era muito mais do que os outros pretendiam que fosse. Dentro dele existia um lado reprimido pela visão enevoada da sociedade. Um lado escondido e instigador (talvez apenas travesso) que exigia expressão pública, mesmo reconhecimento. Qualquer coisa entre a provocação infantil e a vaidade de artista que o levava a seguir a intuição e a construir, degrau a degrau, uma nova persona para os demais, afirmando para si, convictamente e com um sorriso interior: eu não sou louco, apenas conheço-me melhor do que vocês pensam.

Um romance mais irónico e filosófico do que policial que se lê de um fôlego emocionado. Uma tradução inesperada, feita de palavras idiomáticas certeiras mas também por frases que chegam de um português um tanto surpreendente, mesmo incompreensível.


jef, abril 2021

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