«A sua superioridade sobre os outros não seria, precisamente, porque ele ao menos se conhecia?»
Até
que ponto é o feroz existencialismo, essa exigência desesperada de liberdade
face aos limites e às circunstâncias impostas pelo meio que os cerca, também à
opinião pré-estabelecida que os outros fazem de si, que une personagens tão
singularmente libertárias (e literárias) como as de «Crime e Castigo» de
Dostoiévski (1866), «Um, Ninguém e Cem Mil» de Pirandello (1926) ou «O Homem
que Via Passar os Comboios» de Simenon (1938)?
Raskólnikov,
Vitangelo Moscarda ou este Kees Popinga não desejarão, todos eles, fugir de uma
teia social que os manieta e encarcera num estatuto social que repudiam, ou seja, escapulir de um dia-a-dia que lhes enterra o futuro em modorra e resignação?
Kees
Popinga aproveita a deixa dada, certa noite, pelo seu patrão (disfarçado), Julius
de Coster Júnior, e escapa-se num desses comboios nocturnos cujo destino
aventuroso e incerto tanto o encantava. Algumas coisas não lhe correrão como
esperava, porém, a sua confiança, o auto-conhecimento e ironia, o sangue frio
de jogador de xadrez davam-lhe lastro para acreditar que iria vogar, liberto,
por entre as ruelas e bulevares de Paris, sem dar tréguas ao comissário Lucas e
a toda a narrativa que ia lendo sobre si próprio nos jornais, e até rebatia e corrigia em frequentes e educadíssimas missivas.
Popinga
(como Moscarda ou Raskólnikov) era muito mais do que os
outros pretendiam que fosse. Dentro dele existia um lado reprimido pela visão
enevoada da sociedade. Um lado escondido e instigador (talvez apenas travesso) que exigia expressão pública, mesmo reconhecimento. Qualquer coisa entre a provocação
infantil e a vaidade de artista que o levava a seguir a intuição e a construir,
degrau a degrau, uma nova persona para
os demais, afirmando para si, convictamente e com um sorriso interior: eu não
sou louco, apenas conheço-me melhor do que vocês pensam.
Um
romance mais irónico e filosófico do que policial que se lê de um fôlego
emocionado. Uma tradução inesperada, feita de palavras idiomáticas certeiras mas
também por frases que chegam de um português um tanto surpreendente, mesmo incompreensível.
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