terça-feira, 31 de março de 2020

Sobre o filme «A Noiva Estava de Luto» de François Truffaut, 1967




















Se se fala muito de Hitchcock ao sabor deste filme é porque Truffaut também entrega o enredo ou a intriga nas mãos da teatralidade rigorosa, dos decores e cenários milimétricos, da encenação dramática, da marcação de cena, fazendo crer ao espectador que a irrealidade é verosímil. Hitchcock fazia-o com mão de mestre, Truffaut segue-o de perto. O que interessa ao realizador francês é uma espécie de brincadeira deixando a atenção de quem vê presa ao suspense narrativo e, depois, rechear tudo com puro acto estético. O guarda-roupa é extraordinário e a vingadora, crua e sistemática, traz sempre atrás um single em vinil para poder ouvir um concerto de bandolim num pick-up portátil.

E tal como Hitchcock, Truffaut sabe bem contar a história do meio para o início e, a seguir, voltar ao meio para concluir o caso.

Mas, acima de tudo, o realizador entrega a gestão do filme no rosto, nas mãos, no corpo de Jeanne Moreau, essa infalível femme fatale Julie Kohler, que tenta através dos seus actos conquistar a memória de um passado que teria tudo para ser idílico. Truffaut adorava as suas actrizes. Hitchcock também. Só que nem sempre este último as colocava moralmente no centro da intriga social. Truffaut, sim!

E talvez tenha sido essa característica ou imagem da forte e fria vingadora Julie Kohler que domina os homens, afinal, tão cobardes, que tenha apaixonado o amorável Quentin Tarantino e o tenha levado a ‘substituir’ Jeanne Moreau por Uma Thurman em «Kill Bill» (2003 / 2004).

Ah, é verdade! Sem esquecer a música de Bernard Herrmann!

jef, março 2020

«A Noiva Estava de Luto» (La Mariée Était en Noir) de François Truffaut. Com Jeanne Moreau, Michel Bouquet, Charles Denner, Claude Rich, Michael Lonsdale, Daniel Boulanger, Alexandra Stewart, Sylvine Delannoy, Luce Fabiole. Argumento: François Truffaut e Jean-Louis Richard a partir do romance de Cornell Woolrich. Fotografia: Raoul Coutard. Som: René Levert. Música: Bernard Herrmann. França, 1967, Cores, 107 min.

domingo, 29 de março de 2020

O Sérgio vai à pesca














O Sérgio vai à pesca

O Sérgio é um rapaz que gosta de navegar. Sai com o seu barco a remos e vai à pesca. Como não é pessoa para gostar de engodos, leva a cana mas esquece-se sempre do isco ou da amostra. Por isso, não pesca nada. Mas gosta de ficar ali, sobre a película superior do oceano, a ver as gaivinas a fazerem-no. E como elas o fazem bem. Fica satisfeito em notar a habilidade que elas têm para vencer a tensão superficial e os erros de paralaxe, trazendo um peixinho por outro no bico. Repara na tangente à superfície ou na secante no ponto preciso do mergulho. Função geneticamente empírica. Fica assim, no silêncio, no interior dos barulhos do mar, pensando na estratégia dessas aves de cabecinha preta e cauda bifurcada. Ao fim de algumas horas, volta feliz para casa, remando, não sem ter comido com apetite o pão-de-leite com fiambre e a maçã que levara na merenda. O Sérgio sabe que quem bem observa melhor pesca.

jef, março 2020

* Perífrases e quarentena

Sobre o livro «As Batalhas do Caia» de Mário Cláudio. D. Quixote, 1995 / 2019.















Existe sobre «As Batalhas do Caia» um ficcionista reverente mas insubordinado que, venerando a obra de José Maria Eça de Queirós, parece invejoso do prazer que teria caso houvesse a possibilidade de ler o tal romance que o escritor-cônsul jamais concretizou. Da intenção existem notas e cartas, uma delas a Ramalho Ortigão. Um conto inacabado, «A Catástrofe».

O País em ruína, com uma monarquia a finar-se, democrática mas saloia e endividada, é invadido pelo exército da eterna hostil Espanha. Daria brado o romance, abalariam mais tais páginas que a investida dos soldados castelhanos. O ficcionista toma o punho daquele escritor primeiro e continua-lhe a arte, avança na narrativa, no furor militar do inimigo, na ingénua impreparação da paupérrima soldadesca portuguesa.

Também ali uma missiva é ditada, na frente de combate, pelo cabo Luís de Sousa, ao punho do oficial Policarpo Alfredo Gomes dos Santos. É este que nos conta as peripécias da ruína portuguesa.

Existe ainda um narrador complacente ou uma voz sobrevoadora que ousa dizer-lhe ao ouvido, de vez em quando: «E é nessas alturas que entendo urgente intervir». E mais ousa o super-narrador depois esconder-se, sub-repticiamente fingido, tomado por um certo transeunte, ou paquete, ou factor, ou barbeiro, que com José Maria se cruza. Mas sempre o vai seguindo, de Inglaterra a França, nas deambulações diplomáticas, mala às costas, perpassando a saudade reprimida:
«Mas não é que nos aparece a uma outra luz, quando vista daqui, a ditosa Pátria?».

E nem se detém o nosso escritor, o segundo, o invejoso, em criar histórias dentro da história narrada pela mão do outro que vai aos poucos envelhecendo, e adormecendo, e adoecendo, ao lado de Emília, esposa vigilante, e dos quatro descendentes expectantes. O nosso Policarpo passa perto do Arsenal e não vê a sentinela espanhola mas um soldado, pobre e português, vindo ao mundo «numa aldeia de rocha escura». E em quatro páginas, a história do miserável é contada.

Se a poética semântica de uma certa solidão logo de início se torna urgente:
«Ainda não caíram os primeiros flocos de neve, mas o chumbo das nuvens baixas, se de imediato os não promete, concede à imaginação o legítimo direito de lhes adivinhar a chegada.»

No final deste livro de contos, poemas e entardeceres, vai o segundo autor admitir ter repetido a outorgada solidão do primeiro, redimindo-se compungido, declarando:
«E aqui permanece imóvel diante do romance que não se formou, ex-líbris fatal, pequeno corvo atento sobre a caveira do Mestre.»

jef, março 2020

sábado, 28 de março de 2020

Alfarrobeira Ceratonia siliqua L.














Alfarrobeira
Ceratonia siliqua L.
Família Fabaceae / Leguminoseae

É a árvore associada ao Sul algarvio mas também a encontramos na região de Lisboa e Arrábida. Aprecia os solos pedregosos e calcários e o clima suave ensolarado, não se dando bem com as geadas do interior. Cultivada pela sua vagem de 12 a 20 cm de comprimento, a comestível alfarroba, com elevados teores de açúcar, taninos e goma, é utilizada na doçaria e na gastronomia em geral, também nas indústrias farmacêutica, alimentar ou de destilação para álcool e bebidas licorosas, também como espessante ou para sucedâneos de café ou chocolate, além do tradicional uso como forragem.

Como planta dióica (por vezes, também poligâmica), os frutos aparecem nos indivíduos femininos, embora a relação entre os sexos possa ser alterada por enxertia das árvores masculinas.

As folhas desta fabácea (antigamente referida como leguminosa) são persistentes, compostas por folíolos emparelhados, grandes, coreáceos e de tonalidade verde escura. Apresenta uma copa densa e ampla, ovalada, e a sua madeira avermelhada, compacta, é apreciada para trabalhos de carpintaria com polimento.

Poderá não ser uma árvore tipicamente florestal, mais associada à policultura, talvez tenha chegado de regiões orientais com a sua floração tardia, outonal, mas cruza-se há muito com a vida do homem, podendo ser identificada no epopeico Gilgamesh, no hebraico Talmud ou no evangelho de Mateus. Se siliqua é o nome latino para «alfarroba» ou para «vagem», os árabes às suas duras sementes chamavam karats, antiga medida para pesar medicamentos e jóias, dando origem ao mais recente quilate de ouro puro.

jef, março 2020

* botânica

domingo, 22 de março de 2020

Pinheiro-manso Pinus pinea L.
















Pinheiro-manso
Pinus pinea L.
Família Pinaceae

Copa arredondada cujo crescimento terminal é ultrapassado pelo crescimento dos ramos laterais estendendo-se em sombra e pinhas esféricas que, ao amadurecer, oferecem pinhões de sabor económico com que muitos celebram o Natal. São árvores de tronco coberto de ritidoma gretado, ora cinzento ora acobreado, deixando sobre a manta-morta a caruma de folhas aciculares agrupadas aos pares. Resiste aos ventos oceânicos e não teme solos arenosos. Gosta do mar e concede ao ambiente mediterrânico, juntamente com a oliveira e o cipreste, uma certa paisagem historicamente cultural. Também considerável rendimento em pinhões e pranchas de boa madeira. Oferece-nos ainda esse laivo poético que dizem ter também inspirado as cantigas de El Rei D. Dinis. As belas matas da bacia do rio Sado assim o confirmam.

jef, março 2020


Ai flores, ai flores do verde pino

Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é?

Ai, flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pos comigo!
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi ha jurado!
Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu ben vos digo que é san'e vivo.
Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu ben vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san'e vivo
e seerá vosc'ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado.
Ai Deus, e u é?

Dom Dinis (1261-1325)
Cancioneiro da Biblioteca Nacional 568

* botânica

sábado, 21 de março de 2020

Azinheira Quercus rotundifolia Lam.














Azinheira
Quercus rotundifolia Lam.
Família Fagaceae (Fagáceas)

Poderá parecer estranho o facto de uma árvore que simboliza o Sul de Portugal, que transporta, com os seus montados, um regime integrado e de excelência para a pastorícia, a apicultura, a cinegética ou o turismo, tenha ao mesmo tempo a sua área de distribuição ameaçada.

Espécie perenifólia que pode atingir 20 metros de altura se as podas a que frequentemente a sujeitam, e lhe transformam a copa nessa espécie de taça aberta, não forem excessivas. O tronco é coberto por um espesso ritidoma acinzentado e bastante fendido. As folhas são elípticas, coriáceas, de margem dentada ou espinhosa, com a página inferior coberta de pêlos que lhes dão uma tonalidade esbranquiçada.

A bolota é a glande mais doce dos carvalhos e a preferida pelos animais selvagens e pelas varas de porco de montanheira. A regeneração e dispersão são promovidas pela acção natural de gralhas e pombos. Contudo, tal desenvolvimento é muitas vezes impedido pelo sobre-pastoreio ou pelas searas cerealíferas que lhes estão associadas, deixando as árvores dispersas na paisagem. A sua madeira é densa e pesada, difícil de trabalhar, mas é uma excelente fonte de lenha e carvão.

Adapta-se bem tanto a solos calcários como a solos siliciosos e estende-se pelas áreas do Alentejo e Algarve, pelo interior Norte de Portugal até à terra quente transmontana, embora a sua distribuição tenha sido reduzida pela expansão aquática da barragem do Alqueva e as posteriores culturas de regadio. Muito importante para o modo tradicional de uso-fruto do homem mas também para a conservação da biodiversidade de um ecossistema único.

Uma árvore que faz parte do imaginário das longas e belas planícies alentejanas, de canções que ajudaram a alterar o país e até da católica mitologia mariana, deve ser sujeita à atenção de todos e ao cuidado sistematizado da sociedade.

jef, março 2020


Grândola, vila morena

Grândola, vila morena
terra da fraternidade
o povo é quem mais ordena
dentro de ti ó cidade.

Dentro de ti ó cidade
o povo é quem mais ordena
terra da fraternidade
Grândola, vila morena.

Em cada esquina um amigo
em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
terra da fraternidade.

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
em cada rosto igualdade
o povo é quem mais ordena.

À sombra duma azinheira
que já não sabia a idade
jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade.

Grândola a tua vontade
jurei ter por companheira
à sombra duma azinheira
que já não sabia a idade.

José Afonso in «Cantigas de Maio» (1971)

* botânica

segunda-feira, 16 de março de 2020

Sobre o filme «Vencidos pela Lei» de Jim Jarmusch, 1986













Em Jim Jarmusch há sempre o princípio de diversão aliado ao do “fazer-se o que nunca se fez”, guiado ainda pelo princípio do clã 'Jarmusch'. Nova Orleães, Luisiana, a cidade rodeada de pântanos e crocodilos, a cidade das casas com varandas em ferro forjado e cadeira de baloiço à porta. A fotografia a preto e branco (Robby Müller) percorre as ruas até chegar à vida difícil de Zack (Tom Waits), DJ no desemprego e despejado por Laurette (Ellen Barkin), que lhe atira os vinis e as botas pela janela. Também o chulo Jack (John Lurie) não vê a vida facilitada quando tenta contratar uma prostituta adolescente. Encontram-se os dois na mesma cela da prisão de N.Orleans-Parish, andam à pancada mas ficam quase amigos. E quase amigos ficam também de Roberto (Roberto Benigni) que matou um homem. Os três fogem e, no fim, Roberto encontra o amor junto a Nicoletta (Nicoletta Braschi).

Neste filme, a estética comanda a narrativa, mais do que a lógica, guiando o espectador por um caminho que surge, plano por plano, libertador, como uma história popular que se conta a uma criança, pela noitinha… Tão divertida e musical quanto «O Brother, Where Art Thou?» (Ethan Coen & Joel Coen, 2000). Tão puro e abstracto como «A Sombra do Caçador» (Charles Laughton, 1955).

jef, março 2020

«Vencidos pela Lei» (Down By Law) de Jim Jarmusch. Com Tom Waits, John Lurie, Roberto Benigni, Nicoletta Braschi, Ellen Barkin, Billie Neal, Rockets Redglare, Vernel Bagneris, Timothea, L.C. Drane, Joy N. Houck, Carrie Lindsoe, Ralph Joseph, Richard Boes, Dave Petitjean. Música: John Lurie, Tom Waits. Fotografia: Robby Müller. Argumento: Jim Jarmusch. 1986, EUA, P/B, 103 min.


quarta-feira, 11 de março de 2020

Formigueiro












Na longitude do horizonte,
no seu fio,
à beira de um raio verde,
quando este se avistava,
a neblina em ausência,
romântico e fugaz
trazendo o desejo ao olhar,
existe aí tanta determinação estática,
a mais cristalina abstracção
ou alienação,
como a que encontramos na extensa linha feita pelas formigas
que caminham absortas,
cruzando audazes toques de antenas e feromonas,
violentamente maternais na protecção dos seus ovos
alheadas de que a criança vai chegar,
graveto e copo de água na mão
pronta a destruir com intolerante perspicácia,
e lúdico entusiasmo,
a última postura da comunidade.

jef, março 2020

terça-feira, 10 de março de 2020

Sobre o livro «Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos» de Alves Redol. Aventura Vivida / Portugália Editora, 1962
















Se existe livro ilustrado que me surpreende (e compreende), sempre, é este.

As fotografias expostas em grande ou médio tamanho, a preto e branco num livro de 23,5 x 16,5 cm, mostram um Constantino Cara-Linda, o “Cuco”, magro e andarilho, olhar duro, entre o determinado e o constrangido, talvez mais voluntarioso que desconfiado, entre os matos e os muros do Freixial, lá para Bucelas; entre os pintassilgos, contando os ninhos, a Ti Elvira, sua avó, e o bebedouro onde bebem a boa da Mimosa, a caprichosa da Carôcha, também a teimosia dos burros. Acima de tudo os canaviais, as margens, as águas do Trancão que desaguam no Tejo, em lembrança de barcos e viagens grandes…

Sobre as imagens que obrigam a percepção do leitor ao ‘realismo’ pictórico (as fotografias são de António Neto e do próprio autor), Alves Redol conta histórias banais, ‘pouco-histórias’, da vida do Constantino e da sua cadela Rasteira, dividindo-as em duas secções – «Um Cuco Rambóia» e «Um Cuco Laborioso» –, alterando a verosimilhança da realidade com a ternura emocional com que observa a diversão e o sofrimento ao correr do tempo na aldeia saloia. O autor deseja afastar-se do ‘neo-realismo’ que as fotografias demonstram e ilustra-as com o enlevo romântico com que parece recontar também as viagens da própria família quando emigrou para a lezíria, em Vila Franca de Xira.

Alves Redol comove-se, libertando-se de peias e catálogos académicos, e entrega-se ao veio livre das palavras. Em «Um bacalhau depois de uma raposa», dá livre curso na descrição da garraiada, coisa que o escritor tratava por tu, descrevendo toureiros borrachões e vacas cansadas de tédio. Em «Guardador de vacas», coloca os animais de Constantino a pastar no arco-íris, quando a avó enuncia: “os animais precisam de verde!”. No final, entrega-se à liberdade fantástica de um sonho onde Constantino navega com o seu compincha Manel até ao alto mar para lá do mar da palha do Tejo.

Alves Redol descreve as imagens de Constantino com a tranquilidade, talvez nostalgia, de quem tem tem a escrita em dia e a consciência de que a infância contém quase sempre a génese de um sonho talvez perdido.

Duas Notas do Interior Duas
(1)  Este livro foi-me oferecido num Natal pelo meu pai quando eu era miúdo e lembro-me de ter ficado muito orgulhoso por já ter direito a livros “a sério”.
(2)  Um livro sobre a aldeia do Freixial onde os meus pais nos levavam a almoçar, no domingo, com os meus avós, num restaurante com uma varanda que dava para o monte Picoto. Tinha um cruzeiro e, lá no céu, estoiravam ao retardador os morteiros com os seus penachos de fumo.

jef, março 2020

domingo, 8 de março de 2020

Sobre a exposição «Manual de Conversação» de Henrique Ruivo, Casa da Cultura, Setúbal, Março 2020
















Não lhe chamem surrealista…

São duas dezenas de caixas, moldura com requinte, profundidade e relevo suficientes para a pintura se chamar colagem e esta se transformar em escultura. A primeira imagem que me veio à cabeça é a de estar na frente de objectos regressados de um museu de caixas de música com bailarina em pontas lá no topo ou de um teatro mecânico onde se coloca a moeda para o macaquinho bater os pratos. Ou daqueles livros ilustrados para miúdos onde se puxa uma patilha lateral e o lobo mau vai de comer os três porquinhos de uma vez só. Caixa de furos dos chocolates regina a sair sempre a bola prateada, a grande tablete.

Porém, aqui não podemos tocar o objecto. É ele que nos toca. No início, um homem nostálgico, a pensar, sentadinho no cimo de uma ravina obscura, feita de folhas e outras nuvens coladas, diz: «foda-se!». É esse o movimento inicial. O movimento mais profundo e sintomático, o da palavra dita ou redigida. Coloquial ou introspectiva, colada sobre o recorte em cartolina da «casa da beira alta de raúl lino» e com a política a subnadar… Temos de sorrir. A conversa de leitaria ou de salão de cabeleireiro ou de clube chique da marinha, posta como pensamento escrito em balão de banda desenhada, pode ser incompreensivelmente irónica, talvez romântica, mas nunca é modernista ou surrealista! Porque, aqui, o absurdo absorve clinicamente o desespero do mundo real e reinventa-o, em termos estéticos, para nós o suportarmos.

Há poucos dias, Henrique Ruivo partiu com Madalena Ruivo. Deixou-nos esta exposição para podermos sorrir (sempre sem escárnio e com a ternura pela mão) sobre um futuro ‘impossível’ e entendermos que a conversa e a memória, como as palavras e as imagens ali sobrepostas, são imprescindíveis para nos trazer luz sobre o nosso mundo ‘hiper-realista’. Henrique Ruivo fá-lo muito mais facilmente do que uma biblioteca cheia de dicionários de academia, tratados de história da arte ou manuais de conversação.

jef, março 2020

quarta-feira, 4 de março de 2020

Sobre o filme «O Lago dos Gansos Selvagens» de Diao Yinan, 2019















Digamos que, na China, em torno do Lago dos Gansos Selvagens, existem uma ou várias povoações organizadas em gangues mafiosos de ladrões de motocicletas, que se digladiam, enquanto sobre o lago, dentro de barcos, acontece um estranho comércio sexual. Condomínios com pátios centrais e uma comunidade que se espia entre escadas apodrecidas e corredores sujos. Pelo meio de uma rixa e na respectiva fuga desenfreada, Zhou Zenong (Hu Ge) mata um polícia e fica com a cabeça a prémio. Um prémio avultado desejado por muitos. A jovem prostituta Liu Aiai (Kwei Lun-Mei) ajuda-o a dar o melhor caminho ao dinheiro. A polícia acaba a tirar uma espécie de selfie com o pé sobre o troféu de caça.

É, assim, mais um filme rigorosamente fotografado (Song Dong-jin) que parece encantar-se a si próprio com os cenários e os episódios de sucessivas perseguições que encadeia, encantando também os espectadores (eu, por exemplo!) que gostam de admirar o pormenor das danças com ténis luminosos e de circos desactivados em jeito «Dama de Xangai». Diverte quanto baste nessa reciclada fórmula “gore” de exibir litros de sangue, cabeças decepadas, tiroteio sem tino, e humor a la carte. Também bastante ternura depositada sobre as personagens principais.

Um rebelde sem justa causa, entre Tarantino e uma certa “nouvelle vague” chinesa.

jef, março 2020

«O Lago dos Gansos Selvagens» (Nan Fang Che Zhan De Ju Hui) de Diao Yinan. Com Hu Ge, Kwei Lun-Mei, Liao Fan, Regina Wan. Fotografia: Song Dong-jin. China, 2019, Cores, 113 min.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Sobre o livro «A Origem das Espécies de Charles Darwin recontada e ilustrada por Sabina Radeva». Nuvem de Letras, 2019.















Tenho um particular fascínio por livros ilustrados e intriga-me a razão por que, hoje em dia, quase desapareceram os livros ilustrados para adultos, como acontecia lá pelos séculos XIX e anteriores. Hoje, detenho-me avidamente sobre os maravilhosos livros que se editam para crianças e fico a pensar se os adultos começam a achar de somenos ler um livro com bonecos que não seja em banda desenhada ou guias de natureza.

Até que a minha querida amiga e colega Paula Bártolo me mostrou um livro (este!) que acabara de comprar para oferecer às filhas. Imediatamente tornei-me invejoso, folheando rapidamente as magníficas páginas cobertas de imagens que a artista e bióloga Sabina Radeva para ele desenhou, e que parecem ser a guache ou pastel de óleo. Ofereci-o ao meu sobrinho Francisco e vi-me obrigado a comprar um para mim. Tinha de o olhar, lendo-o, com calma.

E qual não é o meu espanto quando me surge um livro com tanta devoção pela teoria da evolução como pela vida de Charles Darwin, observador irreprimível, homem sensível, sensato, cândido e de família, oito filhos e cadela Polly. Um cientista que levou vinte anos a publicar em livro as suas avisadas ideias e reflectidas observações feitas durante as viagens a bordo do veleiro HMS Beagle.

O livro segue, a par e passo e desenho, os temas das variações naturais em indivíduos de uma espécie, as adaptações, a selecção feita pelo homem nas espécies domésticas, a selecção natural e a aptidão de determinados indivíduos para sobreviver no mundo selvagem, as descontinuidades geográficas e a oportunidade para as variações, a consequência de tudo isto transmitida às gerações seguintes, derivando na ramificação de seres cada vez mais complexos e diferenciados.

Mas Sabina Radeva faz mais. No final, em anexos sucintos e demonstrativos, descreve o que hoje se conhece sobre o ADN e a hereditariedade e Darwin, então, desconhecia. Explica como as mutações derivam em variações. E, ainda, sublinha os erros mais comuns ditos sobre a teoria da evolução.

Este livro ensina a observar, a gostar de observar, a reflectir sobre o imprescindível tempo de observação na ciência e na vida. É um livro que relembra, a adultos e miúdos, como Darwin fez evoluir o curso científico neste planeta e a visão moral do respectivo bicho-homem.

jef, março 2020