sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Sobre o filme «Dovlatov» de Aleksey German Jr., 2018





















Este filme tem características inusitadas.

É a história do escritor e jornalista russo Sergei Dovlatov (Milan Maric) durante a primeira semana de Novembro de 1971, quando ele vive uma espécie de crise existencial, sonhando com ditadores a beber pina coladas e campos de prisioneiros enlameados. Está agora com a mãe (Tamara Oganesyan) num apartamento colectivo, afastado da mulher Elena (Helena Sujecka) e da filha Katya (Eva Herr) para quem quer comprar uma boneca grande. Não tem motivação para escrever pois não será publicado até ser admitido na Associação de Escritores Soviéticos. Precisa de se insinuar no meio, pedir favores e escrever uma ode triunfal sobre o trabalho num estaleiro naval. Mas não cede. Sente-se perdido entre a família, os amigos, o livro que deseja escrever e o poema que tem de escrever.

Até aqui o filme parece correr (infelizmente) como o esperado, sabendo que o escritor se exilou nos Estados Unidos, onde faleceu em 1990, tendo-se tornado depois um dos mais famosos autores da sua geração.

Porém, o que se torna muito cativante, mesmo extraordinário, no filme é esse modo “close-up” de olharmos os exteriores nevados como se fossem os interiores onde o escritor se move, sempre com um olhar intuitivo e um sorriso entristecido mas complacente. A câmara gira quase sem espaço para respirar, ora num ambiente frio e cinzento dos estaleiros onde filmam duplos dos grandes escritores russos falecidos, ora num ambiente morno e ocre, entre o fumo do tabaco, a bebida e o jazz de clube. Assim vamos assistindo à angústia e à desistência quando o acto da escrita se aproxima, mas também à tenaz resistência de um grupo de intelectuais que se vê apartado da liberdade e da sua plena vocação artística.

E existe um humor e amor latentes que intensificam os laivos trágicos de um percurso fatídico. Os decores são perfeitos, a fotografia é de Lukasz Zal (o tal de «Guerra Fria» 2018, e «Ida» 2013, de Paweł Pawlikowski). A música e o som, imperdíveis.

Ler Sergei Dovlatov será necessário. «O Ofício» foi editado este ano pela Antígona.

E esse tom de esperança inusitado que sai do filme é talvez dado pela convicção de que a Liberdade e a Democracia são assuntos por princípio em perigo mas que podem ser sempre resgatadas pela resistência, pelo amor ao próximo e pela criação artística.

jef, novembro 2018
                                                                      
«Dovlatov» de Aleksey German Jr.. Com Milan Maric, Danila Kozlovsky, Helena Sujecka, Artur Beschastny, Elena Lyadova, Tamara Oganesyan. Argumento: Aleksey German Jr., Yulia Tupikina. Fotografia: Lukasz Zal, Som: Ivan Gusakov, Decoração: Elena Okopnaya. Rússia / Polónia / Sérvia, 2018, Cores, 126 min.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Sobre o filme «Segredos e Mentiras» de Mike Leigh, 1996












É preciso ser um enorme realizador para conseguir aproximar a câmara do rosto de cada uma destas figuras e tocar-lhe esse silêncio que mais parece um abismo.
É preciso ser um mestre na direcção de actores para colocar-lhes em falas uma tal intenção emocional, uma tão grande capacidade de dizer tudo em tão poucas palavras, palavras tão “banais”, e contar-nos o seu passado, a génese do futuro, avizinhando-se como um tornado do centro dramático deste filme-teatro. A festa dos 21 anos de Roxanne Purley (Claire Rushbrook), filha segunda de Cynthia Rose Purley (Brenda Blethyn), em casa do seu amado e apaziguador tio, Maurice Purley (Timothy Spall), casado com a nevrótica e amante de estampagens, Monica Purley (Phyllis Logan). Festa onde os segredos ou as mentiras se irão revelar fundamentos de uma sociedade dura, ancestralmente miserável, mas sustentada por um amor sedimentado no profundo desejo familiar.
Genial é o humor a roçar o non-sense de certas cenas de descompressão dramática. Genial, o guarda-roupa e os decores.
Genial, tanto a figura-pilar de Maurice Purley, como o caminho de encontro com a mãe biológica de Hortense Cumberbatch (Marianne JeanBaptiste). Personagens tão fortes quanto o são o namorado de Roxanne, Paul (Lee Ross), a empregada de Maurice, Jane (Elizabeth Berrington) ou a técnica do centro de registo de adopções (Lesley Manville).

Sem dúvida genial, o final feliz entre as ruínas tristes de uma sociedade que necessita a explicação urgente e amorável do grande Mike Leigh.

jef, novembro 2018
                                                                      
«Segredos e Mentiras» de Mike Leigh. Com Timothy Spall, Brenda Blethyn, Phyllis Logan, Marianne Jean-Baptiste, Claire Rushbrook, Ron Cook, Lesley Manville, Elizabeth Berrington, Michele Austin, Lee Ross, Emma Amos, Hannah Davis. Música: Andrew Dickson; Fotografia: Richard Pope. GB / França, 1996, Cores, 136 min.

Desencarcerar












Desencarcerar
Diz-se dos automóveis, das suas vítimas
Das praças sitiadas, das práticas famintas
Dos corações de aço, dos papagaios de papel
Dos pés de barro, dos braços de ferro
Dos ossos banidos pelo tédio praticante
Desses que, de tão convictos na sua religião, buscam em permanência
Os crentes absolutos
Nos pára-choques rutilantes.

jef, novembro 2018

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Sobre o filme «Road to Nowhere – Sem Destino» de Monte Hellman, 2010














Um facto é que este filme apresenta no genérico inicial o nome de Mitchell Haven como realizador, apesar deste, no próprio filme, ser representado pelo actor Tygh Runyan.

Outro facto é o do filme contar a história de um amor suicida entre a jovem Velma Duran e o homem de negócios políticos Rafe Tachen. No filme, Velma Duran é representada pela actriz Laurel Graham e Rafe Tachen, pelo actor Cary Stewart. Na realidade (a realidade na qual nós iremos apostar), Laurel Graham é muito semelhante a Vera, mas é representada pela belíssima Shannyn Sossamon e Cary Stewart pelo actor Cliff DeYoung.

A partir daqui, a história é a que nós quisermos ouvir, pois a jornalista Nathalie Post (Dominique Swain) tem vindo investigar e a reproduzir no blogue a sua própria versão da tragédia amorosa e policial, e o investigador a soldo das seguradoras, Bruno Brotherton (Waylon Payne), persegue a fraude, talvez de um modo demasiado emocional, demasiado toldado pelo álcool.

Outro facto, o terceiro, é que no final, mesmo no final, um estranho realizador, talvez um falso Monte Hellman, afirma no último slide, escrito a branco sobre o preto: «This is a true strory».

Sem dúvida que o tema do filme está inscrito nas diversas canções compostas por Tom Russell, principalmente nessa que dá título ao filme e nos conta a perseguição eterna que leva uma vida a tentar chegar a um facto para sempre incompreensível.

Neste filme, Monte Hellman demostra que toda a narrativa é possível e que a melhor explicação está na razão (e no coração) de cada espectador.

E se o filme (quase) começa com uma belíssima e longuíssima cena onde Velma Duran (Laurel Graham ou Shannyn Sossamon) pinta e seca as unhas displicentemente com um secador de cabelo, o filme termina com o silêncio de uma imagem paralisada sobre o rosto da mesma actriz. Monte Hellman, assim, dá todo o tempo para contemplarmos a beleza e reflectirmos nos vários fins de um filme improvável. Todas as conclusões para uma história que só nós podemos desvendar.

Talvez «Road to Nowhere – Sem Destino», seja um filme mais realista do que parece!

jef, novembro 2018
                                                                      
«Road To Nowhere – Sem Destino» de Monte Hellman, 2010. Com Shannyn Sossamon, Tygh Runyan, Dominique Swain, Cliff  De Young, Rob Colar, John Diehl, Waylon Payne, Nic Paul, Fabio Testi . Música: Tom Russell; Canções: “Road to Nowhere” (Tom Russell); “Help Me Make It Through The Night” (Kris Kristofferson); Fotografia: Josep M. Civit. EUA, 2010, Cores, 121 min.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Sobre o filme «Tudo ou Nada» de Mike Leigh, 2002
















Os críticos poderão chamar a este filme piegas, melodramático. Muitos dirão que Londres (ou Kent) não merece imagem tão depressiva ou lamechas. Que isto é mais para a lágrima do que para o cinema.

Mentira!

A realidade não é o teatro mas o teatro é indispensável à realidade. O cinema de Mike Leigh também! Podemos deste modo apaziguar a nossa fúria através da consciência que a emotividade despoleta. Os antigos chamavam a essa ignição «pathos». E Mike Leigh é um combatente!

Penny (Lesley Manville) é caixa num hipermercado e é casada com Phil (Timothy Spall) que é um taxista deprimido que se levanta mais tarde do que deve. Vivem com muito pouco dinheiro. Têm dois filhos obesos. Rory (James Corden) e Rachel (Alison Garland). Rory apenas come e vê televisão, Rachel faz limpezas num lar de idosos. São vizinhos de Maureen (Ruth Sheen) que nas horas vagas passa a ferro e tem uma filha solteira e grávida de um energúmeno. A outra vizinha é alcoólica. As três são amigas.

Mike Leigh é um enorme cineasta que desata os nós da sociedade através dos nós do afecto e desafecto. Londres e Kent, Lisboa, Paris e todas as cidades, vivem destes nós górdios, destas circunstâncias, que limitam e condicionam a vida que devia ser bela, apesar da Desculpa, apesar do Perdão. Apesar da decadência familiar.

Se os críticos não entendem o modo catártico com que o realizador conclui o filme, não entenderão também o génio contido, por exemplo, nas histórias de Anton Tchekov.

Anton Tchekov e Mike Leigh. Todo o melhor teatro (e o melhor cinema) é social e será resolvido na profundidade familiar do Amor.

jef, novembro 2018
                                                                      
«Tudo ou Nada» (All Or Nothing) de Mike Leigh. Com Alison Garland, Lesley Manville, Timothy Spall, James Corden, Jean Ainslie, Ruth Sheen, Paul Jesson, Sally Hawkins. Música: Andrew Dickson; Fotografia: Dick Pope. Grã-Bretanha / França, 2002, Cores, 128 min.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Sobre o filme «Guerra Fria» de Pawel Pawlikowski, 2018




















Já no filme «Ida» (2013), o realizador Pawel Pawlikowski encontrara esse misterioso potencial definidor, talvez purificador, da película a preto e branco, enquadramento restrito, em jeito de 35 mm. Uma vocação estilizadora que obriga os planos a serem concretos e a estética dos decores, a luz da noite, os personagens, a integrarem a geografia do espaço, amplo mas em simultâneo limitado, do grande ecrã. [Eu aprendi a olhar essa dimensão, quase gelada no ecrã, quase devoção, em «Andrei Rublev» de Andrei Tarkovsky (1966).]

Também a música em «Ida» ampliava a angústia do crescimento a que a personagem principal se sacrifica.

Em «Ida», o realizador polaco já nos deixara essa aproximação ao fundamento da beleza com a actriz Joanna Kulig. Uma espécie assombro que nos faz desejar mais imagens. Uma espécie de deslumbramento que, na realidade, nos vem tocar. [Assim é Rita Hayworth em «Gilda» (Charles Vidor, 1948); Marilyn Monroe em «O Pecado Mora ao Lado» (Billy Wilder, 1955); Monica Vitti em «O Eclipse» (Michelangelo Antonioni, 1962); Jean Seberg em «O Acossado» (Jean-Luc Godard, 1960); Scarlett Johansson em «Match Point» (Woody Allen, 2005) e, claro, Harriet Andersson em «Mónica e o Desejo» (Ingmar Bergman, 1953).]

Porém, «Guerra Fria» é um filme musical realizado para Joanna Kulig, para essa cantora, de nome Zula que, adolescente, deslumbra, desvenda e esconde, provoca, seduz mas teme e resigna-se, preparando-se para crescer e desvanecer-se numa Europa dividida a meio por uma cortina de ferro tão densa como as fronteiras que obrigam e transfiguram o amor.

«Guerra Fria» tem uma imagem prodigiosa repleta de intenção. Uma intenção estética tão condensada que pode ficar contida numa única cena, a última. Zula diz a Wiktor (Tomasz Kot), enquanto aguardam sentados na paragem de camioneta: «Mudemos de lugar, dali a vista é mais bonita.»

jef, novembro 2018
                                                               
«Guerra Fria» (Cold War) de Pawel Pawlikowski. Com Joanna Kulig, Tomasz Kot, Borys Szyc, Agata Kulesza, Jeanne Balibar, Cédric Kahn, Adam Woronowicz, Adam Ferency, Aloïse Sauvage. Fotografia:  Łukasz Żal. Polónia / Grã-Bretanha / França, 2018, P/B, 88 min.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Sobre o livro «Flora Nipónica no Jardim Botânico de Lisboa – um passeio com Wenceslau de Moraes». Coordenação: Pedro Barreiros e Margarida Jardim. Associação Wenceslau de Moraes, 2017



Wenceslau de Moraes foi oficial da marinha, diplomata, escritor, jornalista, amante de Portugal e cultor do Japão. Ou vice-versa. E em simultâneo. Nasceu em Lisboa, em 1854, e viveu os últimos 16 anos numa pequena cidade japonesa, Tokushima, onde morreu, em 1929, perto do jardim que cultivou com a alma de japonês mas também como português que, entusiasta, coloca sempre o coração como garantia da frescura do seu quintal.

Wenceslau de Moraes gostava do Jardim Botânico de Lisboa, como refere Pedro Barreiros na introdução. Aí se refrescava, aí, porventura, admirava as plantas que foi encontrar nos bosques e jardins do seu Japão.

Plantas que ainda hoje estão presentes num dos mais belos e históricos jardins de Lisboa. Mais de 60 espécies botânicas preservadas e ilustradas agora neste belíssimo guia. Fichas bilingues, compostas por texto descritivo da morfologia da espécie; pelas gravuras, estampas ou desenhos do arquivo do Museu Botânico e ainda pela sensibilidade dos textos de Wenceslau:

«Na impressão que recebemos da floresta, quando nos avizinhamos do seu mistério, dá-se uma mistura de humildade e orgulho, difícil de traduzir pela palavra.»

No final do livro um mapa traz-nos a localização das plantas pelas áleas do jardim. Mais fácil assim se torna o encanto de as procurar naquele espaço.

Quem não se terá cruzado, perdida por alguma rua de Lisboa, com a Melia azedarach L., de flores delicadas em cachos e folhas compostas, a que lá pelo Sol Nascente recebe o nome de Sendan?

As plantas assim acarinhadas tranquilizam e seduzem… E esta é a melhor forma de trazer de volta ao nosso dia-a-dia o alegre entusiasmo, a vocação científica e o vigor da divulgação e lazer botânicos, de quem ali tanto trabalhou e também amou aquele jardim – Alexandra Escudeiro.

[Associação Wenceslau de Moraes, telefone: 964946112]

jef, novembro 2018

domingo, 18 de novembro de 2018

Sobre o filme «Cega Paixão» de Nicholas Ray, 1952











Não existe título português mais (delirantemente) tolo para um filme como este. «Cega Paixão»!
Não existe banda sonora mais perfeita e melhor aplicada. Bernard Herrmann!
Não existe obscuridade tão bem filmada, nem reflexo branco tão cenográfico como os que George E. Diskant aqui nos entrega!

Um drama policial onde a violência eficaz do solitário detective Jim Wilson (Robert Ryan) o ultrapassa, levando-nos a crer que aquele homem que se move na cidade nocturna, entre viaturas suspeitas, becos escuros e casas devassadas, devendo suspender o crime, é ele próprio o centro da ansiedade e da desconfiança urbanas. Jim Wilson tem o seu próprio método e lava as mãos com igual rancor.

Um melodrama casto onde, no meio da neve pura, a casa de Mary Malden (Ida Lupino) – e de Danny Malden (Summer Williams) – é a reposição quase sagrada, quase bucólica, da reconciliação e da confiança humanas.

Não existem melhores cenários para Nicholas Ray, hipersensível, híper-reactivo, híper-teórico e expressionista, colocar os seus super-anti-heróis na demanda do fundamento da própria solidão. Jim Wilson e Mary Malden estão (são?) estruturalmente sós. Encontram-se. No calor daquela casa, Jim agradece a confiança sem barreiras de Mary. Desencontram-se. Mary teme mas agradece que ele não a tenha ajudado. Contudo, a noite na cidade e a neve do Colorado ainda muito devem ao acto final daquele que podia ser uma ode clássica sobre o eterno poder que o coração tem de perdoar(-se).

Nicholas Ray sabe mesmo como transformar cada uma das cenas num discurso conciso sobre a ética e a estética no cinema. E apanha-nos sempre de surpresa.

jef, novembro 2018
                                                                      
«Cega Paixão» (On Dangerous Ground) de Nicholas Ray. Com Robert Ryan, Ida Lupino, Ward Bond, Charles Kemper, Anthony Ross, Ed Beglay, Summer Willians, Ian Wolfe, Frank Ferguson, Gus Schilling, Cleo Moore, Olive Carey. Argumento a partir do livro «Mad With Much Heart» de Gerald Butler. Fotografia: George E. Diskant. Música: Bernard Herrmann. EUA, 1950/1952, P/B, 80 min.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Poeira











A poeira assombrou por um instante o fio do horizonte.
Um crocitar esfaimado.
Um planar robusto.
A luz perde-se no grito alado da cigarra
e no secreto desejo de que o sonho dirigido ultrapasse o assomo de nos tornarmos para sempre monótonos.

jef, novembro de 2018

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Sobre o livro «Madame Bovary – Hábitos da Província» de Gustave Flaubert (1857). Relógio D’Água, 1991. Tradução: João Pedro de Andrade.















O livro começa muito antes de Emma Bovary. Termina para lá de Emma Bovary. Deixa-nos a ideia de que é tudo além dela. É sobre tudo o que a rodeia, o que a move, o que a circunstancia. Ela está «ausente». Um certo espelho de Gustave Flaubert, que este desejaria quebrado.

O livro é muito mais sobre a crente ingenuidade de um médico de formação pouco convicta, Charles Bovary, do que essa vocação, quase volúpia, que o tédio transporta até ao centro das vilas de província. Tostes, Yonville ou Rouen. Paris talvez seja também, mas é inatingível.

Uma comédia brutal, um trágico mundo de brincar, onde o sarcasmo desabrido de Gustave Flaubert espicaça tudo o que o irritaria na «sua» sociedade francesa. Humor no fio da navalha a cobrir de pó tudo e todos os que vão saindo pelo crivo da displicência aguda ou do descrédito crónico da pena do enorme escritor.

«Como se a plenitude da alma não extravasasse às vezes as metáforas mais vazias, pois ninguém pode, jamais, dar a medida exacta das suas necessidades, das suas concepções e das suas dores, e a palavra humana é como um caldeirão rachado onde tocamos melodias de fazer dançar os ursos, quando desejaríamos enternecer as estrelas.»

Ou seja, nem na palavra podemos confiar.

Mas entre a mentira assumida e tida por passatempo divertido e a confiança inquebrantável, apaixonada e néscia, de quem nada deve suspeitar, tudo pode acontecer. O amor e a sedução parecem interessar muito menos do que os discursos grandiloquentes e vácuos durante a festa dos comícios agrícolas, que os entrecortam. O adultério e o agiotagem… A morte pouco representam quando velada pela discussão acerbada entre o padre Bournisien e o filósofo farmacêutico Homais... E o fiacre segue desenfreado pelas ruas de Rouen, pelos seus arredores, as cortinas corridas, os cavalos exaustos, puxando a escrita que não teme a pressa e uma narrativa acre, cheia de pormenores simples, fulgurantes. Simbólicos. Assim, são as palavras neste livro: corridas e sintomáticas!

Esse episódio (e outros) foram censurados quando da primeira publicação na ‘Revue de Paris’, em 1856. Mesmo assim, um ano depois, o autor foi a tribunal. Os bons costumes morais e a burguesia religiosa ofendiam-se. [A Guerra da Crimeia, o Tratado de Paris, a Guerra Franco-Alemão eram vistos muito ao longe.]

Pena o tradutor não ter dado o destaque devido a um certo pormenor da última frase do livro. A condecoração finalmente conseguida pelo aguerrido farmacêutico Homais é a da Légion d'Honneur. A mesma recebida por Gustave Flaubert, em 1866. Uma espécie de agradecimento conclusivo e  sarcástico por parte de uma sociedade que ele tanto dissecava com o bisturi do seu humor cáustico.

p.s. Entretanto, regressou há memória mais recente o filme «Madame De…» de Max Ophuls, 1953.

jef, novembro 2018

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Sobre o filme «A Regra do Jogo» de Jean Renoir, 1939.




















Quando procuro no livro «100 dias / 100 filmes» sobre os melhores filmes europeus, editado pela Cinemateca Portuguesa por ocasião de “Lisboa Capital da Cultura" 1994, reparo que «A Regra do Jogo» surge em segundo lugar apenas superado por «Nosferatu» de Murnau (1922), recebendo 56 dos 75 votos dos críticos convocados.

Mas se o filme é comparado nessa cinéfila veneração, por vezes tão absoluta quanto absurda, a «Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés» (Orson Welles, 1941) ou «Vertigo –  A Mulher que Viveu Duas Vezes» (Hitchcock, 1958), também é verdade que não terá havido no mundo filme tão pateado pelo público, tão odiado pelos jornais e, ao mesmo tempo, tão amado pela arte cinematográfica.

Estreado por altura da invasão da Polónia pelas tropas de Hitler e do início da Segunda Guerra Mundial, o filme foi retirado de exibição pública poucos dias depois, considerado «desmoralizador». O realizador, estupefacto, tentou obviar a turba, cortando cenas, retirando-lhe minutos únicos. Em 1940, quando da ocupação de Paris pelas tropas alemãs, os nazis destruíram a película original. Em Portugal, o filme esteve proibido, tendo sido visto publicamente apenas em 1972.

Contudo, os críticos e cinéfilos franceses André Bazin e Georges Sadoul, desde a sua realização, sempre os defenderam com unhas e dente, realizador e filme, lutando pela conservação e exibição deste. E venceram, décadas depois! «A Regra do Jogo» é uma Obra-Prima (absoluta e talvez também um pouco absurda!).

E qual a razão de tanto ódio face a um divertimento que Jean Renoir quis que parecesse uma opera buffa, uma comédia de costumes com loucuras de amor, trocas entre criados e patrões, em jeito de Beaumarchais e Marivaux, ao som de Mozart de «As Bodas de Fígaro» (e Monsigny e Saint-Saëns e Johann Strauss) e com um enredo baseado em «Les Caprices de Marianne» de Musset?

O que se passará então nesta comédia que, se perguntarem aos espectadores, cada um certamente a contará de modo muito diferente? Numa particularidade todos concordarão, esta história tem no centro a amizade amorosa entre Octave (Jean Renoir) –  que com todos convive – e Christine, a Marquesa de La Chesnaye (Nora Grégor) – que todos junta durante um fim-de-semana no seu castelo La Colinière, na região de pântanos e coelhos de La Sologne. Sim, exactamente, no centro está a bonomia de Octave que se mascara de Urso no baile de máscaras e uma certa resignação atormentada, sempre exibida na face e no sotaque austríaco de Christine. No restante, cada um que descubra as sucessivas camadas de histórias, influências, estéticas e intenções.

Porém, sublinhe-se, a genial intuição de Jean Renoir apenas terá desejado ocupar o castelo com um faustoso baile de máscaras e um teatro musical mecânico, ou os bosques de La Sologne com uma caçada aos coelhos e faisões verdadeiramente atroz. Jean Renoir jamais quis realizar um libelo de luta de classes ou um tratado sobre o amor livre, ou uma declaração de guerra, de paz e de morte. Apenas tentou explicar aos espectadores como um filme é tão diferente de uma peça de teatro. Tal como a dança, a música, a circulação das personagens entre o exterior e o interior do castelo, entre as várias salas, entre a cozinha e os salões, conduzindo a tão fabuloso conto de muitas fadas e faunos que se amam e se deixam amar! (Lembro-me do cómico delírio em Ernst Lubitsch, Howard Hawks, Billy Wilder e,claro, Chaplin ou os Irmãos Marx!)

Aqui Jean Renoir veste a própria pele. Liberta-se e faz a sua comédia como se corresse pelos bastidores do seu génio enquanto implora que o ajudem a tirar a máscara com que se confunde e nos diverte. Infelizmente todos se mostram ocupados.

Afinal, quem o ajudará a despir a pele do urso?

jef, outubro 2018
                                                            
«A Regra do Jogo» (La Régle du Jeu) de Jean Renoir. Com Marcel Dalio, Nora Grégor, Jean Renoir, Paulette Dubost, Gaston Modot, Julien Carette, Roland Toutain, Mila Parély, Anne Mayen, Pierre Nay, Pierre Magnier, Odette Talazac, Claire Gérard, Roger Forster, Richard Francoeur, Henri Cartier-Bresson. França, 1939, P/B, 112 min.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Sobre o filme «Raiva» de Sérgio Tréfaut, 2017








Sérgio Tréfaut é um cineasta justo, académico. Intuitivo e experimentalista.
«Raiva» é um filme que não teme deixar-se levar pelas suas influências, pela sua justa experiência. Também pelas nossas influências.
«Seara de Vento» é um belíssimo livro de Manuel da Fonseca, publicado em 1958. De onde a história sai.
A paisagem alentejana tem uma beleza atroz, filmada a preto e branco, fotografada por Acácio de Almeida.
Isabel Ruth (a mãe, a sogra, a avó Amanda Carruca) é o (meu) cinema português. Magistral!
Hugo Bentes não é actor, é cantador para as bandas de Serpa. Mas transforma a raiva de António Palma em sustento plástico e dramático, interior e casto. Avesso à sociedade e à mobilização política. Diria anti-neo-realista. Extraordinário!
A academia e a experimentação de Tréfaut impede-o de fornecer ao espectador a comiseração pela fome de 1950 em Portugal, mas consegue impor a estética do teatro (quase da dança) de uma ira pura, silenciada, (in)contida.
Lembro-me de Pina Bausch, entre movimentos, cadeiras e destroços.
Lembro-me dos heróis destruídos pela solidão e das paisagens lineares e apoteóticas de John Ford.
Lembro-me de «O Cavalo de Turim» de Béla Tarr (2011).
Lembro-me de «A Terra Treme» de Luchino Visconti (1948).
Lembro-me de «O Lírio Quebrado» de D. W. Griffith (1919).
Lembro-me do «Evangelho Segundo São Mateus» de Pier Paolo Pasolini (1964).
Lembro-me de «Andrei Rublev» de Andrei Tarkovsky (1966).
Lembro-me de «Mal Nascida» de João Canijo (2007).
Lembro-me de «Sicília» de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (1999).

Talvez sejam referências em demasia, presunçosas, mas a memória é coisa assim…
Sérgio Tréfaut tem razão: o bom cinema é para ser contemplado, contidoestilizado. Os bons livros devem ser relidos. Manuel da Fonseca relembrado. A fome e a injustiça não poderão ser esquecidas. No Alentejo. No mundo. Uma questão de dignidade!

jef, novembro 2018

 «Raiva» de Sérgio Tréfaut. Com Isabel Ruth, Leonor Silveira, Hugo Bentes, Kaio César, Rita Cabaço, Adriano Luz, Lia Gama, Diogo Dória, Dinis Gomes, Catarina Wallenstein, Luis Miguel Cintra, Herman José, Rogério Samora, Sergi López. Portugal, Brasil, França, 2017, P/B, 85 min.

domingo, 4 de novembro de 2018

Sobre a exposição «Postais» de André Ruivo, Casa da Cultura, Setúbal, Novembro 2018














Queridos Padrinhos
Como vão de ânimo e saúde? O Toneca está bem?
A viagem tem sido óptima. Setúbal é linda, as ruas bonitas, o choco ‘frrrito’ maravilhoso.
Esperando que tudo convosco esteja a correr do melhor modo, despeço-me com um beijinho.
O vosso Joaquim.
P.S. Quando chegarmos, eu e a Ana visitá-los-emos. Levaremos doces daqui.

Para que nos serve um postal? Coisa antiga, uso decadente. Ainda enviado? Ainda recebido? Mil vezes guardado, outras quantas rasgado. Porquê um espaço tão acanhado para escrever, do lado inverso a uma imagem repetida? O postal está ali, à mão de semear, no expositor de um quiosque para turistas de passagem.
Escreve-se a quem se ama. Marca-se presença por fastio. Recorda-se o lapso. A solidão da viagem. A alegria do passeio. O deleite do almoço em lugar desconhecido. Afinal, escreve-se para si próprio mesmo que todos possam ler debaixo de um carimbo esborratado. A começar pelo carteiro. Ou talvez o postal fique abandonado, nunca reclamado. Posta-restante.

André Ruivo desenvolve através da mancha de cor absoluta, para não dizer primária, que é erro ou talvez ofensa, as duas dimensões a que o postal ilustrado obriga. Diria uma dimensão egípcia, bilateral, onde a profundidade se olha na superfície plástica das figuras. Quase todas de olhos fechados, introspectivos ou sedentos de silêncio, excepto as que vêem o escuro nocturno, ou a cadência de um bar ou a quietude de um tinteiro, de uma garrafa. Debaixo do chapéu, só a chuva saberá se estão de olhos bem abertos.

Esta colecção de 22 postais futuristas vem do éter ‘past internet post’, onde têm sido vistos de há dois anos até hoje. São aqui exibidos na enorme e paradoxal dimensão da 420 x 297 mm, com o mérito de sublinhar (e há aqui o dever de olhar bem de frente para o étimo da palavra ‘linha’), limitando o ilimitado plano-pano de fundo da obstinada cor cenográfica de André Ruivo.

E a cor tem uma importância crucial. A sua ausência (se exceptuarmos o preto gráfico e o branco do papiro) molda a evolução do artista. Compare-se, em jeito de exemplo, o negro e o claro de «Mystery Park» (chili com carne, 2012) com a sub-reptícia linha colorida de «Gangsters» (Inspector Cheese Adventures, 2012), em óbvia introspecção analítica. Depois, perceba-se a exorbitância cromática de «Retratos» (MMMNNNRRRG, 2017) ou «As Aventuras de Qualquer Coisa» (Stolen Books 2018).

Reparou na diferença?

Agora, vá! Não tema! Mergulhe no infinito horizonte colorido dos Postais de André Ruivo e não hesite em escrever um deles aos seus paizinhos.

jef, novembro 2018