terça-feira, 6 de novembro de 2018

Sobre o filme «Raiva» de Sérgio Tréfaut, 2017








Sérgio Tréfaut é um cineasta justo, académico. Intuitivo e experimentalista.
«Raiva» é um filme que não teme deixar-se levar pelas suas influências, pela sua justa experiência. Também pelas nossas influências.
«Seara de Vento» é um belíssimo livro de Manuel da Fonseca, publicado em 1958. De onde a história sai.
A paisagem alentejana tem uma beleza atroz, filmada a preto e branco, fotografada por Acácio de Almeida.
Isabel Ruth (a mãe, a sogra, a avó Amanda Carruca) é o (meu) cinema português. Magistral!
Hugo Bentes não é actor, é cantador para as bandas de Serpa. Mas transforma a raiva de António Palma em sustento plástico e dramático, interior e casto. Avesso à sociedade e à mobilização política. Diria anti-neo-realista. Extraordinário!
A academia e a experimentação de Tréfaut impede-o de fornecer ao espectador a comiseração pela fome de 1950 em Portugal, mas consegue impor a estética do teatro (quase da dança) de uma ira pura, silenciada, (in)contida.
Lembro-me de Pina Bausch, entre movimentos, cadeiras e destroços.
Lembro-me dos heróis destruídos pela solidão e das paisagens lineares e apoteóticas de John Ford.
Lembro-me de «O Cavalo de Turim» de Béla Tarr (2011).
Lembro-me de «A Terra Treme» de Luchino Visconti (1948).
Lembro-me de «O Lírio Quebrado» de D. W. Griffith (1919).
Lembro-me do «Evangelho Segundo São Mateus» de Pier Paolo Pasolini (1964).
Lembro-me de «Andrei Rublev» de Andrei Tarkovsky (1966).
Lembro-me de «Mal Nascida» de João Canijo (2007).
Lembro-me de «Sicília» de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (1999).

Talvez sejam referências em demasia, presunçosas, mas a memória é coisa assim…
Sérgio Tréfaut tem razão: o bom cinema é para ser contemplado, contidoestilizado. Os bons livros devem ser relidos. Manuel da Fonseca relembrado. A fome e a injustiça não poderão ser esquecidas. No Alentejo. No mundo. Uma questão de dignidade!

jef, novembro 2018

 «Raiva» de Sérgio Tréfaut. Com Isabel Ruth, Leonor Silveira, Hugo Bentes, Kaio César, Rita Cabaço, Adriano Luz, Lia Gama, Diogo Dória, Dinis Gomes, Catarina Wallenstein, Luis Miguel Cintra, Herman José, Rogério Samora, Sergi López. Portugal, Brasil, França, 2017, P/B, 85 min.

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