quarta-feira, 27 de abril de 2022

Sobre o livro «Vieram como Andorinhas» de William Maxwell, Sextante, 2011. Tradução de Rita Almeida Simões.










Se existe livro que, sem rodriguinhos, elucide, sublinhe e consagre o poder maternal da mulher, é este!

Um livro que se dedica à mulher como símbolo central da família e da sociedade, sem necessitar de chamar à liça o Rei Édipo e o seu comandante em chefe, Sigmund Freud. Porém, eles lá estão, pois Elizabeth Blaney não é olhada por si própria mas como reflexo substancial e através do percurso doméstico das três personagens da sua vida.

Bunny (Peter), Robert e James Morison, olham-na através do cheiro, das cores, das conversas cruzadas, dos subentendidos, da luz que entra sub-reptícia pelas janelas das casas onde estão a morar. Bunny brinca com uma boneca; Robert com os soldadinhos de chumbo; para James os filhos são praticamente carinhosos desconhecidos que implicam frequentemente um com o outro.

Novembro de 1918. Armistício e a guerra acaba. Mas a gripe espanhola avança. Elizabeth não pode entrar no quarto de Bunny. Está grávida. As escolas fecham em Logan, Illinois, apesar do vírus ainda não ter chegado lá. Os comboios circulam cheios de gente. É preciso ter cuidado.

A história é contada em três capítulos sequenciais dedicados aos três personagens masculinos que têm por centro essa mater et magister. Tudo circula e circulará em seu redor.

Um pouco como acontece em «O Som e a Fúria» de William Faulkner, as falas não são as da personagem central mas sim a da luz, dos objectos, dos actos que a estão a definir e caracterizar. Apesar de Elizabeth se manter permanentemente na sombra diegética, é o símbolo familiar e o antídoto para a constante ameaça de desequilíbrio.

Um romance muito bem arquitectado, sensível, requintado e sintéctico, mesmo muito teatral, sobre a beleza superior do Amor.


jef, abril 2022


sexta-feira, 22 de abril de 2022

Sobre o filme «Atlântida» de Yuri Ancarani, 2021












Tal como em «O que vemos quando olhamos para o céu?» de Alexandre Koberidze, o que Yuri Ancarani nos propõe em «Atlântida» é apenas “olhar” e entendermos como o tempo alongado da observação é um fundamental princípio cognitivo de introspecção interpretação da realidade.

A história do silencioso Daniele (Daniele Barison), que vive no e para o seu “barchino”, e rouba a hélice a outro barco para potenciar a velocidade ilegal com que concorre entre pares na Laguna de Veneza, é uma história trágica mas muito simples e próxima da realidade. Quase nada é dito no dialecto veneziano dos adolescentes pobres da cidade dos turistas e de Visconti.

Uma das cenas iniciais e que nos oferece esse lado de observação interpretativa é a do muro de uma das ilhas longínquas da Laguna, onde se lê o aviso de que aquele é um lugar de silêncio e oração. Lá dentro, sob o calor do hábito, um monge enclausurado trata da horta. Cá fora, os jovens aceitam o sol no corpo, estendidos sobre o convés dos barcos que emitem música trance a partir de potentes sound systems. Aguardam a noite veneziana para se digladiarem em competição e orgulho.

Outra das cenas que muda o sentido da narrativa é a das mãos da namorada de Daniele, Maila (Maila Dabalà), a serem arranjadas pela manicura com unhas de gel, enquanto esta lhe pergunta desde quando é que rói as unhas ou por que razão deixou de estudar. Minutos depois, Daniele ao volante do seu barco velocíssimo arranca do tablier o nome decalcado de Maila. Outro amor virá.

No final, em estilo requiem ou ópera rock por Daniele e pela noite veneziana, vamos contemplando o reflexo aquático de dezenas de pontes de Veneza provocando, pela rotação da câmara, uma cadeia infinita de objectos que, por simetria e abstracção, nos sugerem a beleza da anatomia feminina.

Pouco nos é dito por palavras. Tudo nos é dito pelas mais belas imagens de uma Veneza que, deste modo, se transforma numa conhecida desconhecida cidade. Tudo nos é dito pelo silêncio de Daniele ou pelo som e pela música cuja batida infinita nos demonstra a vital espiritualidade da contemplação.


jef, abril 2022

«Atlântida» (Atlantide) de Yuri Ancarani. Com Daniele Barison, Bianka Berényi, Maila Dabalà. Argumento: Yuri Ancarani. Produção: Marco Alessi, Rafael Minasbekyan e Dmitry Saltykovsky. Fotografia: Yuri Ancarani e Mauro Chiarello. Música: Francesco Fantini e Lorenzo Senni. Som: Piergiorgio De Luca. Itália / França, 2021, Cores, 100 min.

 

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Sobre o filme «Duelo de Ambições» de Raoul Walsh, 1955









Como medir um sonho em acres ou o melhor método de descalçar uma bota.

Entre beijos e arrufos, Nella (Jane Russell) e Ben Allison (Clark Gable) entendem-se desentendendo-se na área absoluta que cobre cada um dos próprios sonhos. Estão sozinhos, prisioneiros de uma tempestade de neve numa cabana em Montana. Ela deseja não voltar à miséria de criança, ele apenas pretende uma humilde parcela no seu Texas, a Prairie Dog Creek. No início, Ben ajuda-a a descalçar as botas, aquece-lhe os pés, grelha-lhe um coelho selvagem. Ela canta “The Tall Men”, desejando um homem alto que suba ao pessegueiro para lhe dar os frutos que não consegue alcançar sozinha. No final da cena, e em amplo ecrã Cinemascope, acabam em simultâneo mas cada um no seu canto, amuados, a tirar e a atirar as próprias botas.

Todo o filme é passado entre truques e diálogos deliciosos para iludir a censura de costumes de Hollywood, revelando a mestria do realizador numa comédia delirante e maravilhosa (tal como o fez Howard Hawks em «As Duas Feras», 1938).

Claro, depois Nella reencontra Nathan Stark (Robert Ryan), um apessoado homem de negócios que pretende comprar o inteiro estado de Montana, levando até lá uma grande quantidade de gado do Texas. Para isso, terão de atravessar o Kansas e o território dos guerreiros Sioux e Stark só o conseguirá com a ajuda do expedito Ben Allison e do irmão deste, Clint (Cameron Mitchell). Ciumento, Ben passa a tratar Nella por “a responsabilidade” do galã Stark.

E claro, também, haverá a imensa travessia do gado pelas mais belas paisagens. Todos os Sioux irão sofrer muito, não morrerá nenhum cowboy mexicano e apenas sucumbirão 150 rezes. No final, Jane Russell esconde a sua manta dentro do cobertor de Ben e, voluptuosa, canta-lhe novamente “The Tall Men”. Tudo no maior e mais colorido Cinemascope.

 

jef, fevereiro 2022

«Duelo de Ambições» (The Tall Men) de Raoul Walsh. Com Clark Gable, Jane Russell, Robert Ryan, Juan García, Harry Shannon, Emile Meyer, Steve Darrell, Robert Adler, J. Lewis Smith, Russell Simpson, Mae Marsh, Gertrude Graner, Tom Wilson, Tom Fadden. Argumento: Sydney Boehm e Frank S. Nugent com base no romance de Clay Fisher. Produção: William A. Bacher e William B. Hawks. Fotografia: Leo Tover. Música: Victor Young. Canções: Ken Darby e Jose Lopez Alaves. Efeitos Especiais: Ray Kellogg. Guarda-roupa: Travilla. EUA, 1955, Cores, 122 min.

 

sábado, 16 de abril de 2022

Sobre o livro «Em Tempos de Guerra» de Philippe Besson. Caleidoscópio, 2008. Tradução de Sandrina Pinto e Sophie Pinto.











O que mais estranho neste livro é a opção do título português relativamente ao circunstancial título original francês: «En l’Absence des Hommes». Se o assunto charneira do livro resulta, efectivamente, dessa terrível guerra de trincheiras que foi a Primeira Guerra Mundial, todo o seu corpo vital e emotivo, toda a estrutura do enredo tem a ver com a partida, o momento efémero, a ausência física dos homens entre os homens. Só para não afirmar ainda, talvez fosse presunçoso dizê-lo, que é um romance sobre a clivagem entre classes sociais.

Claro que a sociedade burguesa parisiense, no Verão de 1916, andaria já esquecida de guerras franco-alemãs e de comunas e olharia com alheamento social e geográfico para as batalhas renhidas que se travavam em Verdun que, aquela sua casta actualidade, seria ainda coisa longínqua e de particular desinteressante. Aprendi eu essa perspectiva ao ler «O Mundo de Ontem» de Stefan Zweig.

Pois é essa carismática diferença social que fica em evidência na vida social diletante do inteligente jovem de dezasseis anos Vincent de L’Etoile quando se vê confrontado com a paixão desmedida mas ferida de guerra de Arthur Valés, filho da governanta da casa, Blanche, quando regressa a casa por uma semana de licença. Coincidentemente, no mesmo tempo, um literato de reconhecido nome na sociedade parisiense, e que vive acastelado no Hotel Ritz, nota com extremo interesse a beleza quase de criança de Vincent: olhos verdes, cabelo preto. O reconhecido homem das letras francesas assina Marcel P.

Se a primeira parte (A Entrega dos Corpos) se move entre a clausura apaixonada, a proximidade física do quarto de Vincent e a distância formal e cerimoniosa do quarto de Marcel, na segunda (Separação dos Corpos), o romance torna-se epistolar. Na terceira (De Corpo e Alma) a conclusão da ausência na guerra e na morte é a sua própria inelutável confirmação.

Um romance terno e comovente, toldado pelo luto mas também pela perspicácia galante dos diálogos em discurso indirecto (Digo: a sensualidade é uma inteligência) que faz de Vincent um quase patrono moral para Arthur ou Marcel.

Sem querer fazer comparações irrealistas, por vezes a certeza de Vincent, a ansiedade de Arthur ou a distância de Marcel fizeram recordar-me a atmosfera de romances franceses como «Alexis» de Marguerite Yourcenar ou «Olhos Azuis, Cabelo Preto» de Marguerite Duras.               

jef, março 2022


 


quinta-feira, 14 de abril de 2022

«A Paz do Senhor Américo» in jornal «o palhinhas & ca.» n.º78 (especial), de 5 de março de 2022. Para ilustrar um desenho de André Ruivo.

 











A Paz do Senhor Américo

O Senhor Américo tinha desligado a televisão, muito irritado. Sentia-se nervoso. Foi beber um copo de leite com uma bolacha Maria. Por que teria a Rússia invadido a Ucrânia se todos diziam serem irmãos, povos que trabalhavam e divertiam-se lado a lado? Por que é que o Putin se mascarava de Hitler sem o bigodinho ridículo mas com bochechas gordas e reluzentes? Não estava no Carnaval de Torres! Na era da televisão e dos satélites por que é que os homens ainda faziam figura de bichos esfomeados e não pegavam no telefone?

O Senhor Américo enviuvara há pouco, vivia sozinho e tinha o apoio dos Tavares do rés-do-chão esquerdo, que eram como família.

Via muita televisão mas não conseguia olhar para as séries de guerra. Os estrondos assustavam-no e depois não pregava olho. Quando finalmente adormecia sonhava com novos estrondos, tinha pesadelos, vinham coisas vivas do passado. Sonhava sempre o mesmo estrondo seco, fulminante. Via-se de novo no século passado a caminhar na picada, em fila indiana, alagado em calor, em suor, em medo. Norte de Moçambique, para lá de Nampula. A olhar em frente, atento ao batedor e ao detector a cirandar para a esquerda, para a direita. O Freitas a desviar o passo e o pé em falso. O Freiras a voar em pedaços e sangue pelo arvoredo. Acordava e não dormia mais. A morte marcara o coração. Não entendia por que seria a memória tão má companheira.

A porta voltou a tocar, mais nervosa que o Senhor Américo. Era o Jeremias, o filho dos Tavares, que, apesar dos seus dezassete anos, ainda comia cerelac e brincava aos cowboys.

– Mas que brincadeira vem a ser esta, Jeremias?– Calma, Senhor Américo, não se assuste. É terça-feira de Carnaval e este ano não me mascarei de polícia. Este ano sou soldado!

– Desaparece-me já da frente, maldito Jeremias!! Tem mais respeito pela Paz! Vai mas é combater o maldito Vírus!!

 

jef, fevereiro 2022

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Sobre o filme «Conto de Outono» de Éric Rohmer, 1998
























É impossível não olhar para esta comédia outonal como um elogio profundíssimo à cumplicidade que se estabelece entre os amigos de longa data. Neste caso, entre Isabelle (Marie Rivière) e Magali (Béatrice Romand), uma livreira que em breve casará o seu filho, a outra viticultora, viúva, um pouco solitária após a debandada dos filhos de casa. Tanto Isabelle como a namorada do filho de Magali, Rosine (Alexia Portal), tentam encontrar um namorado para esta. Às escondidas e com a maior das benevolências. No entanto, Magali está habituada à sua vida de agricultora, talvez um pouco solitária, sendo extraordinariamente exigente quanto às companhias masculinas.

Do mesmo modo, parece que estas comédias teatrais só resultam pelo extraordinário conhecimento de palco, do diálogo e de intriga de Éric Rohmer. Igualmente pela cumplicidade com a ancestral produtora Margaret Ménégoz. Porém, nada seria construído sem o particularíssimo savoir-faire familiar, quase doméstico, que unifica o realizador àquelas actrizes: Marie Rivière e Béatrice Romand. Sem a união dérmica entre as duas. A que também se junta, aqui, a bela Alexia Portal.

Se no Outono, a vindima se aproxima pois as uvas já amadurecem, também esta será a estação para que os mal-entendidos sejam expurgados das mais belas amizades e da fraternal compreensão, vencendo ainda a chama inicial do tão desejado amor.


jef, abril 2022

«Conto de Outono» (Conte d’Automne) de Éric Rohmer. Com Marie Rivière, Béatrice Romand, Didier Sandre, Alexia Portal, Alain Libolt, Stéphane Darmon, Aurélia Alcaïs, Matthieu Davette, Yves Alcaïs. Argumento: Éric Rohmer. Produção: Françoise Etchegaray, Margaret Ménégoz. Fotografia: Diane Baratier. Música: Claude Marti, Gérard Pansanel, Pierre Peyras, Antonello Salis. França, 1998, Cores, 112 min.


segunda-feira, 11 de abril de 2022

Sobre o filme «Flee - A Fuga» de Jonas Poher Rasmussen, 2021























Há verdades tão reais e cruéis que se tornam difíceis de explicar, uma vez que o bom senso, à partida, as parece rejeitar. Por outro lado, a arte sempre teve essa dimensão maior, interpretativa, cognitiva, emotiva, por isso catártica, que a torna, por vezes, a única arma a ser utilizada para que possamos compreender a tragédia, e para que dela fiquemos emocionalmente credores. Talvez pathos, talvez simbolismo, talvez estilização.

É o caso do documentário «Flee - A Fuga» onde o realizador Jonas Poher Rasmussen, através do cinema de animação, nos conta a história do seu amigo afegão Amin que fugiu ainda adolescente de Cabul e, por duas vezes, de Moscovo, para se estabelecer na Dinamarca, onde se tornou, anos depois, um conhecido académico. O desenho animado colocará Amin numa espécie de cadeira de psicanalista ou de plateau onde Jonas Poher Rasmussen o acompanha, dialogando, incentivando-o a falar, a narrar, recordando as memórias mais felizes de criança, os traumas mais esquecidos, enterrados no brutal desenraizamento geográfico, na cicatriz aberta pelo afastamento familiar, na memória sofrida da dificílima fuga clandestina. Uma memória sempre toldada, igualmente, pela noção frontal de que a sua homossexualidade é proscrita no seu próprio país, que nem vocábulo possui para a nomear.

Entrecortado com imagens documentais que circunscrevem a acção do filme, o tom reflexivo e dorido com que a história nos é contada, pontuado por algumas suaves gargalhadas, assiste ao correr narrativo, sóbrio, sincero, depuradamente estético (talvez muito nórdico), sem nunca cair na fácil e lacrimejante lamechice.

O drama planetário dos refugiados (com esta incompreensível aceleração no século XXI) faz aproximar a fuga de Amin mais da dos refugiados sírios e dos do Norte de África do que da actual migração em massa do povo ucraniano.

«Flee - A Fuga» é um importante filme-de-animação-documenário para os tempos presentes, como o terão sido aqueles, sobejamente mencionados: «A Valsa com Bashir» de Ari Folman (2008) ou «Persépolis» de Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi (2007).

Acima de todos, para mim, este filme recordou-me um dos meus filmes de sempre: «A Imagem que Falta» de Rithy Panh (2013).

A urgência da arte cinematográfica como denúncia da barbárie mas também na centralização política dos fenómenos sociais mais trágicos.

  

jef, abril 2022

«Flee - A Fuga» (Flee) de Jonas Poher Rasmussen. Filme de animação com as vozes de Daniel Karimyar, Fardin Mijdzadeh, Milad Eskandari, Belal Faiz, Elaha Faiz, Zahra Mehrwarz, Sadia Faiz, Rashid Aitouganov, Georg Jagunov, Navid Nazir, Hafiz Højmark. Argumento: Jonas Poher Rasmussen e Amin Nawabi. Produção: Riz Ahmed, Nikolaj Coster-Waldau, Charlotte de La Gournerie. Direcção artística: Jess Nicholls, Martin Hultman. Música: Uno Helmersson. Dinamarca, Suécia, Noruega, França 2021, Cores, 83 min.

 

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Sobre o filme «O que vemos quando olhamos para o céu?» de Alexandre Koberidze, 2021




























Um filme único. Uma espécie de redenção visual e espiritual do quotidiano e da humanidade. Imprescindível. Uma obra que, surpreendentemente e infelizmente, se torna urgente ver (ou observar) no dia de hoje.

Uma bola de futebol eleva-se de um recinto ao ar livre onde duas equipas de crianças jogam afincadamente. Certamente, mais tarde, irão ver jogar Lionel Messi pela Argentina, no Mundial. Essa bola cai depois nas águas turbulentas no rio Rioni que banha a cidade georgiana de Kutaisi e o espectador fica a olhá-la com demora enquanto a voz-off do realizador Alexandre Koberidze nos inquere sobre a necessidade para as gerações vindouras de, hoje, se estarem a realizar filmes enquanto o planeta se encaminha para a catástrofe ecológica. Talvez seja o único momento em que somos chamados a concentrarmo-nos no lado de fora do cinema.

Porque todo o filme é uma espécie de parábola-lenda-documentário sobre uma cidade velha e harmoniosa, sem tempo, onde se circula pacificamente pelas ruas, pelos cafés, também pelas margens de um rio que parece nunca as invadir apesar dos rápidos que o sustentam. Onde os cães também escolhem o melhor ecrã para assistir aos jogos do Mundial. Uma ponte branca, outra vermelha.

É a história de uma maldição que recai sobre dois jovens que acabam de se apaixonar à primeira vista quando os seus passos se cruzam e se desorientam no percurso que deviam tomar. Um livro cai-lhes entre os pés, por duas vezes. No dia seguinte, acordam com fisionomias diferentes e, por isso, ficam impossibilitados de se reconhecer. É a história de Lisa (Ani Karseladze / Oliko Barbakadze) e Giorgi (Giorgi Bochorishvili / Giorgi Ambroladze) que, apesar de tudo, não se afastam do local marcado para o encontro.

Esta lenda, em jeito de Xerazade, é apenas o pretexto para Alexandre Koberidze fazer com que fechemos os olhos durante três segundos. Voltamos a abri-los, depois, e entrarmos livres de tormentos numa dimensão redentora onde a benevolência nos faz espectadores de uma cidade lenta com os seus episódios fortuitos. Como se fossemos crianças cuja tarefa única é a da contemplação. Tudo com um comovente apuro estético fotográfico (Faraz Fesharaki), arquitectónico, também botânico. Uma visita guiada pela serenidade de um tempo cristalizado.

Olhar, ver, observar, comtemplar são verbos exigíveis quando entrarmos neste filme, tal  como naquela plateia de olhares únicos com que inicia a abertura de «A Flauta Mágica» de Ingmar Berman (1974). O mesmo encanto límpido e entusiasmado, quase infantil, com que assistimos às peripécias oníricas de «Amarcord» de Federico Fellini (1973).

Filmes absolutos, sem tempo nem lugar.


jef, abril 2022

«O que vemos quando olhamos para o céu?» (Ras vkhedavt, rodesac cas vukurebt?) de Alexandre Koberidze. Com Giorgi Bochorishvili, Ani Karseladze, Oliko Barbakadze, Giorgi Ambroladze, Irina Chelidze, Vakhtang Panchulidze. Argumento: Alexandre Koberidze. Produção: Mariam Shatberashvil, Anna Dziapshipa, Ketevan Kipiani, Luise Hauschild. Fotografia: Faraz Fesharaki. Música: Giorgi Koberidze. Guarda-Roupa: Nino Zautashvili. Alemanha, Georgia, 2021, Cores, 150 min.

 

terça-feira, 5 de abril de 2022

Sobre o filme «Conto de Primavera» de Éric Rohmer, 1990




A suprema ironia de Rohmer neste «Conto de Primavera» é, precisamente, apresentar a estação do ano moralmente aceite como aquela mais iniciática e amorosa, a estação das flores e do recomeço, com os tons de uma comédia melancólica onde tudo contraria qualquer laivo mudança. E se o espectador, a cada episódio, pensa que todo o amor rotineiro vai ser quebrado pela magia desse novo começo, pode bem se desenganar. Nem a professora de filosofia Jeanne (Anne Teyssèdre), mesmo citando a fenomenologia de Husserl, deixa o seu desarrumado namorado (ausente do ecrã); nem Igor (Hugues Quester), o sensível e retraído pai de Natacha (Florence Darel), irá deixar a chata e presunçosa Ève (Florence Darel). Afinal, o desaparecimento do colar não esconde nenhum truque mal-intencionado de alguém e as túlipas secas em casa do namorado de Jeanne serão substituídas pelo ramo de flores em celofane oferecidas pela prima Gaëlle (Sophie Robin).

Afinal, tudo acaba bem quando nem chega a começar, desde que seja acompanhado pelos estudos de Brahms ou as sonatas de Beethoven. Nada mais simples.

O saber colocar o diálogo mais erudito sobre a acção mais simples de descascar uma batata, enquanto se fuma um cigarro, é revelador da mestria de Éric Rohmer.


jef, abril 2022

«Conto de Primavera» (Conte de Printemps) de Éric Rohmer. Com Anne Teyssèdre, Hugues Quester, Florence Darel, Eloïse Bennett, Sophie Robin, Marc Lelou, François Lamore. Argumento: Éric Rohmer. Produção: Margaret Ménégoz. Fotografia: Luc Pagès. Música: Florence Darel     ("Les Chants de l'auge"); Tedi Papavrami e Alexandre Tharaud ("Spring Sonata"); Cécile Vigna ("Étude symphoniques"). França, 1990, Cores, 108 min.

 

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Sobre o filme «Ouistreham - Entre Dois Mundos» de Emmanuel Carrère, 2021

















Muito interessante neste filme é a gestão emocional e os códigos morais que envolvem um grupo de mulheres da limpeza que permanecem unidas dentro das malhas da escravatura dos horários de trabalho e dos contratos precários. No centro está Marianne Winckler, uma escritora "infiltrada" que deseja conhecer a fundo o meio para que a sua escrita descreva e denuncie as condições em que as trabalhadoras sobrevivem.

No interior da pele da escritora está a maravilhosa Juliette Binoche como há muito não a víamos, lembrando as figuras femininas representadas para Abbas Kiarostami. Lembro-me em particular “Shirin” (2008) em que ela surge silenciosa, rodeada de mulheres espectadoras, na plateia de um cinema. Também aqui, Juliette Binoche está rodeada de mulheres. Porém, aqui não são actrizes iranianas mas sim as próprias trabalhadoras de limpeza francesas, representando surpreendentemente a sua própria vida.

O realizador utiliza de modo livre o ensaio “Le Quai de Ouistreham” que a jornalista Florence Aubenas escreveu baseado numa experiência semelhante, transformando a jornalista em escritora para poder atribuir o cunho emocional à intriga. O suspense ansioso criado pela história lembrou-me o de «4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias» de Christian Mungiu (2007), «O Segredo de um Cuscuz» de Abdellatif Kechiche (2007), «Rosetta» Jean-Pierre e Luc Dardenne (1999) ou, mais recentemente, o de «Um Herói» de Asghar Farhadi (2021).

A condição humana e o cinema social têm muito que contar!

Viva Juliette Binoche!


jef, abril 2022

«Ouistreham - Entre Dois Mundos» (Ouistreham) de Emmanuel Carrère. Com Juliette Binoche, Hélène Lambert, Louise Pociecka, Steve Papagiannis, Aude Ruyter, Jérémy Lechevallier, Kévin Maspimby, Faïçal Zoua, Arnaud Duval, Didier Pupin, Léa Carne, Nathalie Lecornu, Joël Graindorge, Clémentine Tehua, Wendy Quéguiner. Argumento: Emmanuel Carrère, Hélène Devynck, segundo o ensaio “Le Quai de Ouistreham” de Florence Aubenas. Produção: Emmanuel Carrère, Olivier Delbosc, Julien Deris. Fotografia: Patrick Blossier. Música: Mathieu Lamboley. França, 2021, Cores, 107 min.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Sobre o livro «John Steinbeck – Antologia do Conto Moderno». Selecção e tradução de João José Cochofel e Rui Feijó. Atlântida, 1945.










Os textos que integram esta colectânea são extraídos de «Short Stories» e «The Long Valley» (1938) e bem representam a capacidade do autor em ultrapassar o dogma interior do escritor para ir encontrar a humanidade que envolve o mundo inteiro. Aqui, na sua maior parte, reflectida no espelho de Monterey, Salinas, Califórnia, Estados Unidos da América.

E se toda a literatura não trata mais do que a solidão, John Steinbeck, nestes oito contos, é o seu padrinho, o tal reflexo humano que tende a caminhar só para só chegar.

Ou talvez nem tanto. «De como Edith McGillcuddy conheceu R.L. Stevenson» é um conto único, de um humor extraordinário, quase extravagante, para quem lê esse escritor que sempre tendeu para a etimologia do trabalho ou o princípio do sacrifício encrostada na alma do mais pobre. Ou mesmo o breve apontamento, maravilhoso, que surgirá mais tarde em «As Vinhas da Ira» (1939), a comunhão de um pequeno-almoço ao crepúsculo, entre desconhecidos, enquanto a criança mama no seio da cozinheira.

Nada mais fulcral que o encontro clandestino e nocturno dos dois sindicalistas que temem a polícia mas muito mais a chegada dos ferozes lacaios amarelos pagos para agredir e desmobilizar, «A Rusga», lembrando «A Condição Humana» de André Malraux. Ou a tremenda história do linchamento em «O Vigilante», que poderia vir acompanhada pela canção de Billie Holiday «Strange Fruit».

Ou ainda o perfeito entendimento da condição feminina e da sua interior volição em «O Assassinato» ou no comoventíssimo conto final «Os Crisântemos». Como a suprema identidade da mulher na sua intimidade pode ter descrição.

John Steinbeck foi prémio Nobel em 1962, da literatura. Mas poderia bem sê-lo da humanidade. Um palavra que talvez valha mais como partícula adjectivante do como substantivo próprio.


jef, abril 2022