A Paz do Senhor Américo
O Senhor Américo tinha
desligado a televisão, muito irritado. Sentia-se nervoso. Foi beber um copo de
leite com uma bolacha Maria. Por que teria a Rússia invadido a Ucrânia se todos
diziam serem irmãos, povos que trabalhavam e divertiam-se lado a lado? Por que
é que o Putin se mascarava de Hitler sem o bigodinho ridículo mas com bochechas
gordas e reluzentes? Não estava no Carnaval de Torres! Na era da televisão e
dos satélites por que é que os homens ainda faziam figura de bichos esfomeados
e não pegavam no telefone?
O Senhor Américo enviuvara
há pouco, vivia sozinho e tinha o apoio dos Tavares do rés-do-chão esquerdo,
que eram como família.
Via muita televisão mas
não conseguia olhar para as séries de guerra. Os estrondos assustavam-no e
depois não pregava olho. Quando finalmente adormecia sonhava com novos
estrondos, tinha pesadelos, vinham coisas vivas do passado. Sonhava sempre o
mesmo estrondo seco, fulminante. Via-se de novo no século passado a caminhar na
picada, em fila indiana, alagado em calor, em suor, em medo. Norte de Moçambique,
para lá de Nampula. A olhar em frente, atento ao batedor e ao detector a
cirandar para a esquerda, para a direita. O Freitas a desviar o passo e o pé em
falso. O Freiras a voar em pedaços e sangue pelo arvoredo. Acordava e não
dormia mais. A morte marcara o coração. Não entendia por que seria a memória
tão má companheira.
A porta voltou a tocar,
mais nervosa que o Senhor Américo. Era o Jeremias, o filho dos Tavares, que,
apesar dos seus dezassete anos, ainda comia cerelac e brincava aos cowboys.
– Mas que brincadeira vem
a ser esta, Jeremias?– Calma, Senhor Américo, não se assuste. É terça-feira de
Carnaval e este ano não me mascarei de polícia. Este ano sou soldado!
– Desaparece-me já da
frente, maldito Jeremias!! Tem mais respeito pela Paz! Vai mas é combater o
maldito Vírus!!
jef, fevereiro 2022
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