quarta-feira, 27 de julho de 2022

Sobre o livro «O Correio da Gestapo» (Courier to Marrakesh) de Valentine Williams, Empresa Nacional de Publicidade, Colecção “Aventuras” 1, 1951 (1944). Tradução Morais Cabral.


 









Andrea Hallan tem um sonho recorrente. O avião sobrevoa o Mediterrâneo e começa a perder altura. Joga-se às cartas, fazem-se palavras cruzadas. Mas agora alguém grita e Andrea acorda. Afinal, sofrera na realidade um acidente e está naquele momento a recuperar num hotel de Marraquexe. Andrea é uma cantora americana levada até à frente para o apoio moral das tropas. Espera encontrar na cidade o seu amigo Hank Lundgren dos serviços secretos americanos mas, por um acaso, naquela noite, deve acudir aos apelos dolorosos da condessa Bianca Mazolli, hospedada no mesmo hotel. Esta está num estado gravíssimo de saúde pede-lhe para ir até à medina que envolve a praça Djemma El Fna para receber por ela uma encomenda em troca de um identificador medalhão de ouro.

Todos requerem aquela encomenda, aquela pequena caixa: os serviços secretos aliados e a Gestapo. Ela contém documentos essenciais que comprometem a liderança de Adolf Hitler postos a circular por uma tal Confraria do Trevo ligada a oficiais alemães fiéis ao antigo Kaiser.

De Marraquexe a Nápoles e a Roma, a tal encomenda persegue Andrea e esta é perseguida pelo chefe da Gestapo, Dr. Grundt e protegida por Maurice Riley e por Nicholas Leigh, afinal, o seu Nick.

Um romance policial, de guerra ou de espionagem, tanto faz, mas um romande de aventuras do caraças!

O que seria das colecções de livros de aventuras se, infelizmente, não tivesse ocorrido a descomunal barbárie que envolveu a Segunda Grande Guerra?


jef, julho 2022

 

Sobre o livro «Soldados de Salamina» de Javier Cercas, Livros do Brasil, Colecção Miniatura – Nova Série 2, 2017 (2001). Tradução Helena Pitta.


 









O que o autor faz é impressionante. Troca-nos as voltas e levanta o véu, perante a nossa compreensão emocional, da guerra mais incompreensível (incompreendida) de sempre – Espanha 1936-1939.

E usa um truque que em literatura se dá o nome de génio narrativo: conta-nos a história por três vezes (não esquecer Lawrence Durrell), em três perspectivas díspares, em três estados de alma quase opostos. Declara que, embora seja jornalista, embora esteja num momento depressivo, numa altura em que a autoestima de escritor não anda pelo melhor e o momento afectivo ainda é pior, declara pois que deseja consumar não um romance mas um “relato real” sobre uma personagem única no interior de uma circunstância única passada na Catalunha, nesse inverno de 1939. O primeiro falangista encartado de Espanha, Rafael Sánchez Mazas, mentor pouco convicto, ideólogo sem coragem mas extremamente influente do social fascismo em Espanha, escritor menor mas com estilo, um dos carrascos da eleita República de Espanha e organizador de um dos mais sangrentos fratricídios na Europa.

É igualmente a história lateral, multifacetada e comoventíssima, de tudo o que rodeia a vida após o fuzilamento de um jornalista com chama, de um escritor sem nome mas com este colocado em rua espanhola, de um milionário sem dinheiro, de um ministro insurrecto e diletante de Francisco Franco.

De um humor tão delicioso como subreptício e melancólico, dispõe o escritor de nome Javier Cercas, órfão tristonho, que busca a chave literária para o seu “relato real”, em paralelo com o de Rafael Sánchez Mazas, alegre sobrevivente de uma chacina, escritor sortudo e com ganas de aristocrata ganhador mas um assumido perdedor.

Um romance comoventíssimo centrado nos segundos em que os dois lados da guerra se olham, olhos nos olhos, se compreendem e se redimem.

Um texto essencial para reflectirmos sobre todas as guerras do mundo, passadas e contemporâneas. 

jef, julho 2022

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Sobre o filme «Alto e Bom Som - A Batida de Casablanca» de Nabil Ayouch, 2021
















Este filme é simples, muito linear, talvez demasiado ingénuo. No entanto, encerra a comoção quantas vezes repetida do milagre regenerador e revolucionário transportado pela juventude. Qualquer coisa mágica que encontramos em «O Clube dos Poetas Mortos» (Peter Weir, 1989) e «O Professor Bachmann e a Sua Turma» (Maria Speth, 2021), com laivos desse cinema-teatro-musical-dançado-rebelde que é «West Side Story - Amor Sem Barreiras» (Jerome Robbins, Robert Wise, 1961).

Sim, estou a exagerar, o filme fica aquém daqueles.

No entanto, a classe de hip-hop reunindo rapazes e raparigas à volta de um professor carismático que vive dentro de um automóvel, um jovem do qual desconhecemos o passado, que é circunspecto, duro, mas igualmente terno, e que obriga os alunos a exprimirem-se com sinceridade através das rimas, da música, da break-dance de um hip-hop vindo do Bronx-Nova Iorque para aterrar nas intricadas ruas-corredores de Casablanca-Marrocos, ou no ainda mais intricado complexo moral-religioso muçulmano, justifica a nossa adesão emocional. Justifica todo o empenho daqueles jovens músicos e artistas cujos nomes fictícios coincidem com os nomes reais.

Justifica que a nossa memória cinematográfica retenha a criação daquele jovem e sofrido professor Anas, representado pelo rapper marroquino Anas Basbousi.

 

jef, julho 2022

«Alto e Bom Som - A Batida de Casablanca» (Haut et fort / Casablanca Beats) de Nabil Ayouch. Com Anas Basbousi, Ismail Adouab, Zineb Boujemaa, Meryem Nekkach, Nouhaila Arif, Abdelilah Basbousi, Mehdi Razzouk, Amina Kannan, Mehdi Razzouk, Soufiane Bellali, Maha Menan, Samah Barigou, Marwa Kniniche, Abderrahim Errahmani, Sophia Akhmisse. Argumento: Nabil Ayouch, Maryam Touzani. Produção: Nabil Ayouch, Amine Benjelloun, Alain Cohen, Martine Cohen. Fotografia: Amine Messadi, Virginie Surdej. Música: Fabien Kourtzer, Mike Kourtzer. Guarda-Roupa: Nino Zautashvili. Marrocos / França, 2021, Cores, 101 min.

 

 


quinta-feira, 14 de julho de 2022

Sobre o filme «Um Corpo que Dança - Ballet Gulbenkian 1965-2005» de Marco Martins, 2022







































Um filme único. Por diversas razões:

Nunca pensei comover-me (até às lágrimas) com um documentário sobre dança!

Também um filme raro sobre a História de Portugal contemporâneo.

Tem uma produção e pesquisa únicas, uma velocidade na montagem incrível. Notar com atenção como as diversas cenas são intercaladas de modo rapidíssimo, alternando os diversos registos: bailado, político, sociológico. Atentar particularmente aos comentários em rodapé e às fichas técnicas dos bailados que se sucedem.

No fundo, é a História (até 2005) da incrível Fundação Calouste Gulbenkian (e das suas bibliotecas itinerantes). Uma instituição que obrigou Portugal a mudar.

No fundo, no fundo, está lá a história toda do bailado profissional em Portugal, e também a outra, a do baile popular, a da diversão: as tendências, as modas, os ritmos.

Também está lá o país miserável de Salazar e Caetano, a guerra colonial, os movimentos estudantis, o protesto de Charlie Haden no Festival de Jazz de Cascais e a expulsão de Maurice Bèjart do país, o 25 de Abril e o 25 de Novembro, a imigração dos retornados, a Grândola Vila Morena, os UHF, o Variações. Está lá tudo, de modo rápido, tão integrado como contemplativo.

Também lá revejo a minha própria história como espectador: A irritação da minha mãe contra o Verde Gaio, criação do popular higienizado feito pelo António Ferro para o Estado Novo. A altura em que começámos a ir ver com espanto o Ballet Gulbenkian, sem cisnes nem tutus. Quando fomos ao Coliseu de Lisboa ver o regresso em apoteose da Sagração da Primavera de Maurice Bèjart. Quando, finalmente, acorremos para assistir à Pina Bausch e ao William Forsythe.

Acima de tudo, este é um filme que só não comove as pedras da calçada (e mesmo assim…) declarando o esforço e a abnegação de que o bailado é feito. Também a força e o equilíbrio imprescindíveis ao corpo e à manutenção da exigível alma dançante da sociedade.

A rever. Sempre.


jef, julho 2022

«Um Corpo que Dança - Ballet Gulbenkian 1965-2005» de Marco Martins. Documentário. Iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian. Argumento: Marco Martins. Montagem: Rita Quelhas e Catarina Lino. Pesquisa Fotográfica: Lígia Resende e Sara Coelho. Desenho e misturas de Som Miguel Martins. Música original: Filipe Raposo. Produção: Filipa Reis, Vende-se Filmes, RTP. Portugal, 2022, P/B / Cores, 127 min.


terça-feira, 12 de julho de 2022

Sobre o filme «A Mãe e a Puta» de Jean Eustache, 1973










Tomemos o filme como a comédia que, na realidade, é. Uma comédia sobre o fim de um  ciclo, o fim de festa. Alexandre (Jean-Pierre Léaud) não trabalha, não tem casa. Ele afirma que assim jamais ficará sem ela. Entre cafés e whiskeys tomados no Les Deux Magots e no Café de Flore (sob a vigilância de André Téchiné), ele declara que já não existem lutas e guerras românticas, nem sequer rock a sério ou cabelos compridos. Já nada há para ler nos jornais da actualidade.

Todos se sentam e caminham sobre a cama, em casa de Marie (Bernadette Lafont) – a Mãe. Não se descalçam. Bebem muito, discursam e ouvem o Concerto sinfónico dos Deep Purple. Outros acabam de comprar o disco “La Belle Hélène” de Jacques Offenbach e surpreendem-se por alguém se vestir todo de verde. Outro rouba uma cadeira de rodas a um paralítico.

Alexandre pensa em Gilberte (Isabelle Weingarten) (– a Esposa) mas acaba por seduzir Véronika (Françoise Lebrun) – a Puta.

Paris já nada tem para mostrar, o Maio de 68 terminou, a esperança empalidecera. A Europa começava a afundar-se no terrorismo. Todo o entusiasmo parecia definhar. A Nouvelle Vague ficara velha. Jean-Luc Godard fugira. Tão perto e já tão longe iam “O Acossado” (Jean-Luc Godard, 1959), “Hiroshima, meu Amor” e “O Último Ano em Mariembad” (Alain Resnais, 1959, 1961) ou “Os 400 Golpes” e “Jules e Jim” (François Truffaut, 1959,1962).

Entretanto, a dúvida persiste para Alexandre. O quarto já não devolve o exterior da sociedade através da janela. E o reflexo do vidro que restitui, afinal, o centro de uma certa clausura que se pretende ainda libertária mas apenas revela a própria imagem. Marie, Alexandre e Véronika sustentam a imagem da leveza durante toda a longuíssima metragem, e a vida corre suspensa por eles. Até que…

… até que ouvimos toda a canção de Léo Ferré “Les Amants de Paris” cantada por Édith Piaf, e Marie, sozinha, esconde a cara nas mãos. Talvez chore.

… até que Véronika faz um longo discurso dramaticamente desesperado e repetitivo enquanto as lágrimas lhe escorrem pelas faces.

… até que Alexandre se senta no chão do quarto de Véronika enquanto ela lhe pede uma bacia para vomitar.

E a comédia termina e o mundo desaba.

Um filme infalível, todo ele assente literariamente na palavra discursada. Um filme que  falará eternamente à sociedade em crise permanente, emocional e suicidária.

Também ele, Jean Eustache, se suicidaria em Paris, oito anos depois.


jef, julho 2022

«A Mãe e a Puta» (La maman et la putain) de Jean Eustache. Com Jean-Pierre Léaud, Bernadette Lafont, Françoise Lebrun, Isabelle Weingarten, Jacques Renard, Jean-Noël Picq, Jessa Darrieux, Berthe Granval, Geneviève Mnich, Marinka Matuszewski, Jean-Claude Biette, Pierre Cottrell, Jean Douchet, Douchka, Bernard Eisenschitz, Jean Eustache, Caroline Loeb, Noël Simsolo, André Téchiné. Argumento: Jean Eustache. Produção: Elite Films, Ciné Qua Non, Les Films du Losange, Simar Films, V.M. Productions - Vincent Malle Productions. Fotografia: Pierre L'homme. França, 1973, P/B, 220 min.

domingo, 10 de julho de 2022

Sobre o livro «Vota» de André Ruivo. Xerefé Edições / Museu Bordalo Pinheiro, 2022













































Este pequeno livro com os desenhos de André Ruivo, – 10,5 x 15 cm, 32 páginas incluindo a capa –, contém, na penúltima, o aviso de que o jornal «A Paródia» (editado entre 1900 e 1907) encontra-se encadernado e por ali bem perto. «A Paródia» publicou as famosas ilustrações satíricas de Rafael Bordalo Pinheiro. «Vota» publica parte da obra de sátira, docemente social, ternamente política, que André Ruivo criou durante a recente residência artística no exacto Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa. A homenagem a um dos maiores vultos da imprensa humorística contemporânea, exposta nesse museu, em colectivo, agora e até ao início de Agosto.

Entre o apelo ao voto e o desejo de paz, alguém questiona por que estará o ar condicionado desligado; alguém adora meter conversa; alguém se irrita com os modos simpáticos da nova empregada. Portugal não será dos Pequenitos, antes, um “Little Portugal” onde se deseja que o Fascismo nunca mais volte e que o 25 de Abril permaneça alegremente para sempre.

Bordalo Pinheiro é mordaz, acutilante, por vezes implacável!

André Ruivo encontra no carinho pelas suas personagens bairristas o motivo social para a mudança, a vocação afectiva do futuro.

Bordalo Pinheiro e André Ruivo, a Mesma Luta Gráfica! Sempre!


jef, julho 2022

terça-feira, 5 de julho de 2022

Sobre o filme «A Lei de Teerão» de Saeed Roustayi, 2019


















Não há tempo a perder.

As cenas iniciais de fuga desesperada do traficante perseguido pelo polícia Hamid (Houman Kiai) terminam de modo brutal. Será uma das histórias que fará correr ainda mais o incorruptível Samad (Payman Maadi) buscando provas e colocando questões ao juiz (Farhad Aslani), tentando desenrolar o novelo da lei iraniana que condena à morte tanto o maior traficante como o mais insignificante. Pelo meio, vai ficando a queda do procurado dealer Naser Khakzad (Navid Mohammadzadeh) que se deita calçado, não consegue dormir sem comprimidos, protege a família com unhas e dentes e é traído pela ex-namorada lavada em lágrimas, Elham (Parinaz Izadyar).

Tudo o resto é a excepcional encenação cinematográfica sustentando esse número incompreensível que dá o título internacional ao filme: «Just 6,5»! São 6,5 milhões de iranianos envolvidos na síntese, no tráfico e no consumo de droga.

Este diabólico thriller de acção surge como uma verdadeira ópera onde o coro imenso e miserável de centenas de drogados famintos fazem de regra e contra-regra, num palco sumptuoso apesar de exíguo, ao ininterrupto diálogo dos actores que se iludem perseguindo uma verdade que dificilmente sairá vencedora. Esses famélicos não são actores, são mesmo os desesperados iranianos que a droga e a sua lei remete para o esgoto da cidade.

Não há mesmo tempo a perder. Não podemos deixar de seguir o diálogo imparável e os cenários de cores, tons e padrões magníficos. Mas profundamente tristes. Também o sentido operático vem daí, desse subterrâneo ímpar, sujo, esventrado.

E como consegue o realizador, sobre tudo isto, ainda colocar o ridículo irónico, que faz sorrir ante o climax final, tão soturno quanto medonho?

Não há tempo a perder porque devemos tudo olhar (já que não somos falantes de iraniano).

Aqui, não temos mesmo tempo a perder porque não podemos desviar a consciência do olhar.

Um filme imprescindível.

Um filme belo que me ficará na memória, junto do coração, como aqueles outros vindos do grande cinema do Irão: «Close Up» e «Shirin» de Abbas Kiarostami (1990, 2008), «O Círculo» e «Taxi» de Jafar Panahi (2003, 2015) ou «Uma Separação» de Asghar Farhadi (2011).


jef, junho 2022

«A Lei de Teerão» (Metri Shesh Va Nim / Just 6.5) de Saeed Roustayi. Com Payman Maadi, Navid Mohammadzadeh, Parinaz Izadyar, Farhad Aslani, Houman Kiai, Maziar Seyedi, Ali Bagheri, Marjan Ghamari, Yusef Khosravi, Amir Hossein Mirchi, Mehdi Hoseini-nia, Giti Ghasemi, Asghar Piran, Mohammad Ali Mohammadi, Peyman Ghasemzadeh, Javad Pourheidari. Argumento: Saeed Roustayi. Produção: Seyed Jamal Sadatian, Arastoo Sohrabinya, Mohammad Sadegh Ranjkeshan. Fotografia: Hooman Behmanesh. Música: Peyman Yazdanian. Irão, 2019, Cores, 135 min.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Sobre o livro «A Vida Aventurosa de Sparrow Drinkwater» de Trevor Ferguson, Cavalo de Ferro, 2007. Tradução de Luís Coimbra.


 









Este longo romance segue os passos do herói (ou anti-herói) Sparrow Drinkwater desde a sua infância passada num hospício para doentes psiquiátricos até ao seu final anti-sucesso financeiro que decorre num paraíso fiscal nas Caraíbas. Contudo, a história fulcral é a da sua mãe, mulher libertária, inteligente e esquizofrénica, Sheilagh Drinkwater que teima em afirmar que o seu filho nasceu de um corvo, tem pena que aquele afinal não saiba voar e teima em urinar ao ar livre, nos jardins.

Sparrow é manietado pelas tropelias de Sheilagh Drinkwater que começam durante a guerra, entre 1940-1957, com as armas e os soldados por perto e continuam, mais tarde, em Nova Orleães como pano de fundo, até chegar a Montreal, no Canadá. Até ao quintal da Bruxa de Bloomfield Street e ao interior da rede de túneis subterrâneos que acabam por ir pelos ares.

Depois entre 1958-1961, a idade adulta vai-se enraizando entre o dever e o rancor, a investigação e a perseguição.

Mais tarde, no final, entre 1968-1991, Sparrow Drinkwater, pelo interior de um outro labirinto, agora financeiro, juntará todas as personagens com e contra as quais lutou toda a vida. Mas nessa ilha perdida, irá conquistar um futuro que jamais será o dele.

Um romance longuíssimo com personagens bem delineadas psicologicamente, apesar de surpreender ter sido escrito por capítulos com estilo, extensão e motivação diferentes. Vendido como uma espécie de comédia entre a realidade e a fantasia mas que deixa no leitor um sistemático lastro de melancolia e revolta que nunca chega a ser emocionalmente resolvido.

Na tradição da escrita realista-fantástica nas Américas do Norte existe um mestre: John Irving. Que vivam «O Estranho Mundo de Garp» (1978) e o «O Hotel New Hampshire» (1981)!

 jef, junho 2022


domingo, 3 de julho de 2022

Sobre o livro «O Osso do Meio» de Gonçalo M. Tavares, Relógio D’Água, 2020


















Não podemos confundir pressentimentos com os instintos que são coisa muito mais imediata. Diz-se de Albert Mulder, médico, que gosta de observar os rapazes. Tem uma irmã.

«A tíbia de um animal tem exactamente a mesma inteligência que a nossa, não há diferença. Um osso estúpido – O importante é o osso do meio!» – diz Vassliss Rânia, com as mãos em sangue das peças de carne que vende no talho. Tem um irmão, Gada, que dizem estar louco. Não trabalha e fica em casa a aprender a tocar violino.

Maria Llurbai percorre as ruas à chuva. Foi posta na rua pelo marido, Walter Llurbai, depois de ter ido com Kahnnak. Este, com vinte anos, era a erva daninha da casa e recorda que leu a história de, num país pobre, um pedinte andrajoso mas de grande audácia estende a mão e exige: «Estou vivo, dá-me!». Kahnnak um dia será preso.

«Nos cemitérios, usam-se fórmulas fixas de linguagem porque os cidadãos, por pudor, fingem-se menos vivos. A cidade não é excelente na circulação de substantivos fortes, mas em redor dos mortos a mediocridade agrava-se.» Por fim, todos se reúnem em torno do silêncio de uma canção triste, próxima da morte.

«– O osso do meio!! Percebe? O que é necessário é encontrar o osso do meio de cada coisa, e depois parti-lo!, assim, de uma só vez!»


O 43º Caderno de Gonçalo M. Tavares está colocado na secção de “O Reino”. Aqui, permanecemos nesse mundo estranho que insiste ser a felicidade um corpo estranho ao dia-a-dia, assunto mais pressentido que vivido, toldado pela guerra sistemática que é uma das células-génese da humanidade.

Gonçalo M. Tavares escreve prosa forte como se escrevesse poesia adúltera.


jef, junho 2022

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Sobre o filme «Os Encontros de Paris» de Éric Rohmer, 1995



























Digamos que são três curtas histórias passadas em Paris, sobre rendez-vous que acabam mais em desencontros do que encontros, manobrados tanto pelo acaso como pela libido do namoro. Éric Rohmer encurta-se no lado filosófico ou literário que tanto gosta de colocar no comportamento das suas personagens e entrega-lhes o lado mais casual da perseguição que o instinto amoroso contém.

Talvez o primeiro, «O encontro das 7 da tarde», junto à Praça Beaubourg e à fonte Stravinsky se aproxime mais do lado lúdico rohmeriano onde o fortuito vai costurando a intriga e esta segue a jovialidade de Esther (Clara Bellar) até à evidência suspeitada.

Já em «Os Bancos de Paris», ela (Aurore Rauscher) e ele (Serge Renko) percorrem os bancos de jardim parisienses, desde os jardins do Luxemburgo ao Buttes Chaumont, namoriscando e filosofando até chegar a um beco sem saída, o empedernido passado.

Em «Mãe e Filho, 1907», tudo circula em redor da atracção que este quadro do Museu Picasso produz nos respectivos espectadores. Principalmente a atracção que se apodera de um jovem pintor (Michael Kraft) por uma atenta observadora (Bénédicte Loyen) que ali toma notas para uma posterior impressão da pintura.

Tudo é talvez fugaz, talvez inconsequente, porém a realidade do desejo é tão real como definitiva. Éric Rohmer manobra os seus filmes sempre sobre o duplo fio dessa suave navalha.


jef, junho 2022

«Os Encontros de Paris» (Les Rendez-vous de Paris) de Éric Rohmer. Com Clara Bellar, Antoine Basler, Mathias Mégard, Judith Chancel, Malcolm Conrath, Cécile Parès, Olivier Poujol, Aurore Rauscher, Serge Renko, Michael Kraft, Bénédicte Loyen, Veronika Johansson, Florence Levu, Christian Bassoul. Argumento: Éric Rohmer. Produção: Françoise Etchegaray. Fotografia: Néstor Almendros. Música: Sébastien Erms. França, 1995, Cores, 98 min.