sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Sobre o filme «Yojimbo, o Invencível» de Akira Kurosawa, 1961

 














Prodigioso.

Parece ser um filme de John Ford, Clint Eastwood, Quentin Tarantino ou Sergio Leone, mas não é! A música não é de Ennio Morricone, é uma alucinação ajazzada e modernista de Masaru Sato, ampliada pelo som universal de Hisashi Shimonaga e Chohichiro Mikami. Porém, o silêncio irado dos cowboys que se olham, estáticos, aguardando o exacto instante do disparo, está todo lá. Não trazem chapéu, antes uma espada, mas andam de palito ao canto da boca. Ali, são todos maus, inclusive o xerife, perdão, o polícia da aldeia, que é também cobarde e vai anunciando as horas dos confrontos. De um lado, a melícia dos bandidos da seda, do outro, a dos bandidos do saké. Todos têm medo do confronto, um medo que o samurai forasteiro e desempregado Sanjuro (Toshiro Mifune) observa sorrindo do alto da torre, como se fosse um juiz de ténis. Aliás, será ele, por astúcia, coragem e moral, que irá desencadear a guerra de clãs, oferecendo os seus altos préstimos a ambos os lados. Apenas é secundado pelo fabricante de caixões que com as suas marteladas põe os nervos em franja ao velho taberneiro que acolhe Sanjuro e lhe mostra toda a intriga observada pelas janelas da taberna.

E é nesse aspecto que o filme se torna absolutamente genial, nem é apenas teatro com as histórias a serem vislumbradas de longe pelo filtro da magnífica fotografia de Kazuo Miyagwa ou apenas contadas por quem as conhece e escutadas por Sanjuro; nem é apenas cinema, com uma espécie de bailado sincronizado dos personagens dentro dos exíguos espaços cenográficos, onde a câmara se aproxima sorrateira, debaixo para cima, oferecendo ao espectador os truques simulados que a intriga exige.

Tudo neste filme é delirante, divertido e superior. Soberbo e belo!

 

jef, setembro 2020

 

 «Yojimbo, o Invencível» (Yôjinbô) de Akira Kurosawa. Com Toshiro Mifune, Eijiro Tono, Kamatari Fujiwaea, Takashi Shimura, Seizaburo Kawazu, Isuzu Yamada, Hiroshi Tachikawa, Kyu Sazanka, Tatsuya Nakadai, Daisuke Kato, Ikio Sawamura, Akira Nishimura, Yoshio Tsuchyia, Yoko Tsukasa, Susumu Fujita. Argumento: Akira Kurosawa e Ryuzo Kikushima. Fotografia (35mm, Tohoscope): Kazuo Miyagwa. Cenários: Yoshiro Murakai. Música: Masaru Sato. Montagem: Akira Kurosawa. Som: Hisashi Shimonaga e Chohichiro Mikami. Produção: Filmes Kurosawa e Toho. Japão, 1961, P/B, 110 min.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Sobre o filme «Vénus de Vison» de Roman Polanski, 2013

 

 





Ser ambíguo e ser ambivalente.

«Vénus de Vison / La Vénus à la Fourrure / Venus in Furs» é uma peça de teatro de David Ives, encenada por Roman Polanski, que, agora, decide trazer para o cinema. Sobre o palco está a encenação-realização-adaptação de uma famosa novela, publicada em 1870, do austríaco Leopold von Sacher-Masoch, o patrono do masoquismo. No local, está ainda presente um encenador, Thomas, desesperado por não encontrar actriz à altura do papel de Wanda von Dunayev. Ali também se encontrará Vanda Jourdain, encharcada até aos ossos, que, em dia de tempestade parisiense, chega atrasada à audição para o papel de Wanda. Thomas é o actor Mathieu Amalric, cansado e a um passo da desistência, e Vanda é a actriz Emmanuelle Seigner que, contra todas as expectativas, traz o papel integralmente decorado, empunhando até uma cópia maltratada, mas completa, da peça. Precisa de alguém para lhe entregar as deixas. Thomas, o encenador, terá a contragosto de fazer esse papel. Será o aristocrático Severin von Kusiemski.

O momento chave encontra-se na cena onde, de costas para Emmanuelle Seigner, ausente do plano, Mathieu Amalric escuta a voz transformar-se da vulgar Vanda Jourdain na misteriosa Wanda von Dunayev.

Agora, os dados estão lançados sobre o teatro e a eterna troca de papéis. O resto é sabido desde o aparecimento do homem, desde a Grécia passada, desde as Bodas de Fígaro. O ser ambíguo ou ser ambivalente que dará sempre o dito pelo não dito por uma côdea de pão ou pelos lábios de alguém. O teatro, o cinema, a literatura e as belas artes são apenas máscaras ou espelhos dessa necessária troca. A música também.

A seguir.

1)    Este filme não é teatro. Porque a gestão da banda sonora de Alexander Desplat, provoca, intensifica, despoleta a acção narrativa, unifica as cenas e condensa a expectativa emocional do espectador. A abstracção sonora move-se sobre a chávena e a colher de um hipotético café oferecido, ou sobre a assinatura do contrato de submissão. A banda sonora contém o som silencioso da observação.

2)    Esta peça não é bem cinema. Porque o aparecimento de uma Afrodite seminua envolta em (provavelmente) raposa do Árctico, num tom expressionista de cinema mudo, quase circense, a relembrar Vénus, as Bacantes, Eurípides, retira a carga lírica e melodramática que o cinema actual, por vezes, transporta de modo gratuito. Assim cai o pano sobre a peça (o filme) com um sorriso, um alívio, um toque de deusa ex-machina que nos liberta do medo do «poder» feminino ou masculino.

3)    Este filme não é apenas dramático, é plástico. Porque as imagens sobre as quais corre a ficha técnica, vindas da época das Belas Artes mais clássica, mais barroca ou renascentista, colocadas em diaporama sucessivo, vem recordar deusas, afrodites, venus, danaes, mulheres.., despidas, expostas, belas, voluptuosas, despudoradas, entregando-se maravilhosamente e maravilhadamente a quem as olha, a quem as colhe. Vem comparar e testemunhar que a vergonha nas artes do século XXI ainda pode mover rios de tinta e teses de doutoramento apressadas.

A verdadeira beleza da arte dramática (e talvez da poderosa Afrodite) concentra-se nesse momento fugaz, tão ambíguo quanto ambivalente, quando verificamos que fomos levados pela pantomima (estratégia) de Polanski / Ives / Seigner / Amalric / Desplat. Fizeram-nos acreditar na tragédia, mas reparamos, agora à saída do cinema, que tudo afinal não passava de um sonho profundo, de uma diversão malévola, de uma magnífica tarde passada nas margens do teatro.


jef, dezembro 2013

«Vénus de Vison» (La Vénus à la Fourrure) de Roman Polanski. Emmanuelle Seigner, Mathieu Amalric. Argumento: Roman Polanski e David Ives segundo a peça deste último e baseado no romance de Leopold von Sacher-Masoch. Produção: Robert Benmussa. Fotografia: Pawel Edelman. Música: Alexander Desplat. Guarda-roupa: Dinah Collin. França/Alemanha, 2013, Cores, 96 min.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

«Low-Fi Home Remix» dos Teta Solitária Neubauten. Edições Bandalheira, 2000

 








 

Quem diz não ser possível tirar umas boas férias na companhia de discos de electrónica portuguesa, por estes serem um deserto onde a diversidade botânica caminha inexoravelmente para o zero absoluto, então engula o que acabou de regurgitar. Aqui se apresenta a contradição! O oásis! Desta feita, pode estiraçar-se à sombra das frondosas remisturas de Teta Solitária Neubauten e beber um copo, fumar um charro, agitar os neurónios ou esguichar a adrenalina e a serotonina do prazer! Pedindo emprestados discos a Talvin Singh, Miles Davis, Borroughs, Laurie Anderson, Nyman, Byrne, Arvo Pärt ou aos cantores da República Centro Africana, este grupo sem qualquer discrição, faz o que lhe apetece. E se pensam que o resultado é uma enfadonha e egocêntrica monocultura de eucaliptos, talvez se enganem. Esta produção doméstica resulta numa criativa floresta ajardinada, feita de múltiplos ruídos mas, simultaneamente, de harmonia e silêncio! Neubauten! Afinal, debaixo desta palmeira electrónica já se podem fazer férias no deserto.

 jef, Verão 2000


Sobre o livro «Poemas» de Hölderlin. Selecção, tradução e prefácio de Paulo Quintela, Asa 2004 (3ª edição).










Como uma pedra na engrenagem.

Sofro de uma certa convicção. À medida que o mundo parece resvalar encosta abaixo em direcção à iniquidade global da violência, torna-se necessário, por instantes, parar o nosso próprio movimento induzido e tentar contrariar a aceleração do planeta. Talvez esta seja uma convicção simples, repetida, banalizada por milhares de canais de comunicação, mas o que pretendo referir não diz respeito apenas ao globo terrestre mas, essencialmente, ao pequeno universo que nos rodeia, ao mundo que nos preenche e que por vezes, também ele, vai desandando direito às mais baixas cotas do inconsciente belicista. (Por isso, talvez devesse falar de intuição em vez de convicção.) Seguindo essa perspectiva, há que reavaliar estratégias de travagem, apontar as baterias da consciência, fazer as melhores escolhas. Fortalecer o nosso sistema imunitário, preparar os novos embates, ouvir a melhor música. Segurar os livros importantes, dar à leitura um carácter mais eficaz, sem nunca descurar o significado de prazer que desejamos para ela, entregando-nos depois a tal prazer sem os subterfúgios do desconhecimento.

Penso, desta forma, justificar a inclusão nas páginas da revista Op. não de uma novíssima edição, acabada de sair e a cheirar ainda à tinta da novidade, mas da enésima reedição da colectânea poética, cuja selecção, tradução e prefaciação se deve a Paulo Quintela. Comemora-se agora os sessenta anos da primeira edição do trabalho desse que foi o primeiro grande e devoto divulgador em Portugal de Friedrich Hölderlin. O Poeta que deveria ficar para a História como um dos garantes de que o mundo afinal não se vai estilhaçar, lá em baixo, no vale da mediocridade. (Desculpem-me a imodéstia desta nova intuição... Ou deveria chamar-lhe desejo?)

Contudo e apesar da introdução, pouco poderá dizer-se sobre a poesia de Hölderlin, pois o seu universo resplandecente prende-se mais ao delicado mundo emocional que o pensamento, pessoal e intransmissível, desenvolve em cada um de nós, a cada nova leitura de cada um dos seus poemas. Da forma mais íntima, subterrânea. Uma claridade espiritual que o levou a acatar, com toda a humildade, a vontade dos Deuses que dele fizeram aedo privilegiado na transmissão da raiz do sentimento ao grande Povo sabedor. Uma responsabilidade, uma clarividência tão brutal e definida, que o levaria a passar metade da vida num estado a que a ingratidão humana vulgarmente chamava loucura. Na realidade, uma expressão racional e linguística que, de um só lance, uniu a democracia endeusada da heróica Grécia à democracia contemporânea edificada no povo pela Revolução Francesa. Uma concessão que entrega ao Homem o fundamento e a prova da deusa Natureza, talhada em longos hinos e elegias do clássico Grego ou em pequenos e sussurrados trechos da contemplação romântica ou da máxima Liberdade que o existencialismo proclamaria séculos mais tarde. Tudo ele desafia, porque questiona, num lânguido bocejo ou na fúria da razão: a árvore, o amor, a infância, o poder e a morte. A poesia. Para, no final, rematar, em suprema dissertação, tão humilde quanto inevitável:

“Mas o que fica, os poetas o fundam.”

Eis um livro a ser tido como Bíblia. Para ser lido de forma ébria ou razoável, complacente, de peito aberto, coração quente, espírito livre. Adormecido ou exaltado. Franco ou temeroso. Em dias de chuva e de sol. Uma obra diante da qual os velhos se curvam reverentes face à beleza que se desprende dos ramos de um bosque, da alegria de um vinhedo, da turbulência de um rio, escutando o Poeta como se fosse Deus finito falando aos homens sem falsa sabedoria ou modesta ingenuidade. Ele é grande porque sabe. Maior, porque sabe pronunciar o que os Deuses sussurram.

(E se tais convicções, intuições ou desejos, escritos em nome próprio, vos parecerem presunção, então aceitem este texto como puro acto de publicidade. Comprem o livro e coloquem-no junto à cabeceira. Para sempre. Talvez, assim, uma pedra se desprenda do caminho e ajude a arrepiar as rotações desta Terra obscurecida pelas nuvens do indesejável...)

 

jef, junho  2004

 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Sobre o filme «Os Sete Samurais» de Akira Kurosawa, 1954


 







Um clássico entre os clássicos.

Percebe-se porquê.

Quando terminam as três horas e meia de exibição o espectador sente-se órfão de uma imensa obra estética, de um colossal filme de acção, de um emocionante arquivo literário de tragédia, comédia, coboiada, romance pungente, duelos de espadeirada, emboscadas e tácticas bélicas, lágrimas dilaceradas e profundo sentimento moral.

Tudo ali está encerrado, numa linha narrativa perfeita e imparável. No século XVI, uma aldeia perdida entre montanhas e florestas é constantemente assaltada por um bando de bandidos que lhes rouba o produto das colheitas e as mulheres. A única solução é contratarem samurais. Em número de sete. O problema é que não têm dinheiro para tal. Miseráveis camponeses! Miseráveis mercenários! Valha-nos a moral que dita a defesa dos mais desprotegidos, que de mentira e sovinice também sobrevivem!

É impossível não vermos duplicados em «Os Sete Magníficos» (John Sturges, 1960), «Doze Indomáveis Patifes» (Robert Aldrich, 1967), «Assalto à 13ª Esquadra» (John Carpenter, 1976), «Kill Bill» (Quentin Tarantino, 2003 / 2004), «Cavalo de Guerra» (Steven Spielberg, 2011), «Bacurau» (Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelle, 2019)… Uma imparável lista que serve de homenagem ao requinte estilizado de um dos maiores filmes de aventuras de sempre!


jef, setembro 2020

«Os Sete Samurais» (Shichinin no samurai) de Akira Kutosawa. Com Takashi Shimura, Toshiro Mifune, Yoshio Inaba, Seiji Miyagushi, Minoru Chiaki, Daisuke Kato, Ko Kimura, Kuninori Kodo, Kamatari Fujiwara, Yoshio Tsuchiya, Ken Shimizu, Jun Tasaki, Isao Yamagata, Jun Tatari, Tatsuya Nakadai, Atsushi Watanabe, Tatsuya Nakadai, Kamatari Fujiwari, Bokuzen Hidari, Kuninori Kodo, Yoshio Kosugi, Yoshio Tsuchiya, Yuriko Shimazaki, Keiji Sakakida. Argumento: Shinobu Hashimoto, Hideo Oguni, Akira Kurosawa. Fotografia (35mm, 1,33): Asakuzu Nakai. Direcção Artística: Takashi Matsuyama. Música: Fumio Hayasaka. Montagem: Akira Kurosawa. Japão, 1954, P/B, 207 min.

 


terça-feira, 15 de setembro de 2020

Sobre o livro «Ilíada» de Homero. Tradução de Frederico Lourenço. Cotovia, 2005.

 

 








A doce genealogia do sangue

Quando comparado com os grandes livros do monoteísmo, talvez a «Ilíada» não coleccione um número de leitores tão colossal como o que aqueles angariaram ao longo de séculos através das respectivas corporações religiosas. Contudo, ao serem confrontadas as legiões de estudiosos apaixonados, a influência moral não dogmática e, talvez mais importante, a intrínseca estrutura literária ou essa característica cultural que assenta na simples fruição da leitura, então não restam dúvidas: o livro grego ganha destacado sobre a «Bíblia» ou o «Alcorão».

Mas se é totalmente inútil esgrimir moles de seguidores ou volúpias de leitura entre tais monumentos da bibliofilia, já se torna bastante mais interessante questionar o facto de esta obra prevalecer como marco espiritual, no sentido estritamente cultural, quando não é suportada por qualquer pesada instituiçãp universal e, inclusive, veicula uma concepção do divino plural, tão pouco apadrinhada pelo comportamento ocidental contemporâneo.

A resposta ao fenómeno poderá estar no facto de ser uma obra que, contendo o catálogo de pistas e sinais respeitante a todos os valores comportamentais e psicológicos do ser humano, não os submete ao julgamento de um deus descrito como solução final para os seus desaires e desonras. Ou seja, em vez de arregimentar o pensamento num modo único e colectivo, multiplica-o pelo diverso individualizado, entregando-o ao leitor sobre a forma de uma magnífica narrativa una e intransigente.

Essa característica deriva, de forma muito pragmática, da base da cultura greco-latina que, em todo o caso, se rege pelo primeiro fundamento do teatro: o diálogo. Ao admitir a existência de vários deuses, poderes e ideias, será lógico pressupor igualmente que aqueles, no início, entrem em comunicação, depois em conflito, mais tarde se conluiam e, finalmente, se reequilibrem. Até nova desordem. Este é o princípio da narração, da dialéctica, do universo e, por conseguinte, de uma sociedade humana que, há bastante mais de trinta séculos, o teatro pretende estratificar.

Assim, e assumindo como verdade que a «Ilíada» é um livro que contém maior depuramento estilístico que o seu consecutivo, «Odisseia», torna-se curioso que este último angarie maior entusiasmo público e tenha sido o primeiro a ser desbravado pela pena de Frederico Lourenço. Ao serem colocados frente a frente, agora que vertidos para português moderno pela mestria do mesmo tradutor, também eles parecem entrar em diálogo, revelando-se quase antagónicos, espelhos de naturezas distintas, deduzindo-se mutuamente como invejassem o conceito alheio. O pomo que faz entrar as divindades na discórdia talvez seja, uma vez mais, o teatro. Se na «Odisseia» o retorno à casa-mãe e o reencontro é feito penosamente, ao fim de intermináveis anos, através de um espaço imenso, quase ilimitado, de mar, penas e encruzilhadas heróicas, deixando Ulisses cada vez mais só, mais exaurido mas também mais determinado; na «Ilíada», o espaço e o tempo concentram-se numa partícula única: as praias e muralhas de Ílion que se preparam para assistir ao derradeiro confronto entre troianos e aqueus. Tal como sucede entre um palco e uma plateia, entre a arena e a bancada. Apenas isso.

Só que o pouco ou o quase nada de um instante na batalha, pode ser o tudo para a última dimensão humana. A sobrevivência ou a desonra. O esquecimento ou a glória. No fundo, a morte como princípio de uma história e não como o seu término. Mas se a «Bíblia» ou o «Alcorão» elegem também a morte como o elemento supremo do culto e do oculto, negando-a para a explicar, propulsionando a vida para dimensões extra-sensoriais, na «Ilíada» a morte física é um elemento explícito da narrativa que desvenda a espiritualidade, a razão e o desejo de uma sociedade em crise. E Aquiles é o seu símbolo assumido.

 

Enquanto centro absoluto da intriga, Aquiles desdobra-se como catalizador colectivo do drama da guerra e do litígio social mas também como ampliador solitário de cóleras vingativas e amores intangíveis. Em termos existencialistas, representa a convergência de conflitos interiores: geneticamente, não pertence nem aos deuses nem aos homens, vendo-se constrangido e revoltado pela ausência de Briseida, sonegada por Agamémnon, mas também pelo trágico anúncio da sua morte breve feito pela própria mãe, a deusa Tétis. Em termos sociais, ele é motivo de todos os fracassos e antagonismos: recusa-se a guerrear apesar de saber o garante da vitória para um dos lado da peleja; ele que, pela sua atitude inicial, estabelece sucessivas clivagens e alianças entre deuses, aqueus e até no próprio adversário. Tudo se verga segundo os seus ditames e todos lhe dirigem atenções e súplicas. Aquiles determina o curso da guerra e esta impõe-se ao curso da história.

Assim, a narrativa inicia-se ampla e livre, estabelecendo um cenário circunscrito, quase orográfico, sobre muralhas e valas edificadas, famílias e povos em formação castrense. Mostram-se os amores e os ódios na casa dos deuses sancionando a eficácia dos duelos entre guerreiros. Descrevem-se detalhadamente os esquadrões aliados com os comandantes, as suas conquistas, a sua expansão. Conta-se a história familiar de cada herói caído por terra, a sua galhardia e ímpeto bélico. Estabelece-se uma hierarquia de poder e valentia entre os combatentes que parecem deixar as divindades muito aquém no respectivo cumprimento deontológico. Aquiles e Heitor perfilam-se como os eleitos para protagonizar o duelo final.

No entanto, Aquiles continua ausente... A guerra avança sem solução, a morte adensa-se e os planos tornam-se progressivamente mais próximos da vítima. A carnificina prossegue. A familiaridade permanece mas agora é descrita através de cada corpo que cai na poeira, cada jorro de sangue que a faz assentar, cada lança que trilha a carne. A genealogia, a anatomia ou a silhueta das armas pormenorizam-se, fundem-se e tornam-se protagonistas de uma acção que insinua o dolo e a tragédia. Ostenta-se a reluzente armadura de Aquiles que será envergada por Pátroclo, mais tarde por Heitor. Também se exibe, e com que minúcia, a divina armadura criada por Hefesto para o herói desarmado pela sua própria cólera. A pura coragem belicista vai sendo substituída por uma vocação viril para a morte que se deseja por redimir e apaziguar paixões avassaladoras. A alma encarna a convicção de cada cadáver. A história íntima dos corpos que tombam, mesmo os do adversário, sobrepõe-se à motivação do colectivo militar. Ama-se a morte por não se poder mais amar a vida. O majestático luto por Pátroclo anula o poder estratégico que o resgate de Helena tem na narrativa. Assim, o herói prevalece, chorando, no centro da sociedade e vence perante uma plateia que, em seu redor, presta tributo à sua dor maior.

Um extraordinário desenlace para uma história que parece colar-se ao espírito cada vez mais militarizado das cidades modernas. Por que a terá aperfeiçoado Homero ao longo de tantos anos? Por que a terá estruturado desta forma: tradição? imposição das audiências? dever político aos mecenas? ou apenas vocação poética? Sem precisarmos de grandes respostas, será razoável centrarmo-nos nesta última convicção, já que o valor intrínseco da obra está, fundamentalmente, no carácter explícito como a beleza se incorpora na sua estrutura. Através dela, o poema concede a eternidade do sublime ao ser humano, ao seu corpo, à sua esperança e ao seu desaparecimento. Por ela, afasta-se da de outros grandes livros. Aí reside a sua modernidade e o maravilhoso desafio da presente tradução.

 

jef, setembro 2005

Nota. Duas pequenas sugestões. 1. Ler a introdução inclusa como posfácio. Lido no fim, o texto essencial fornece pistas importantes para a necessária releitura da obra, não condicionando o ambiente único de descoberta da primeira leitura. 2. Antes de se atirar a primeira de muitas pedras ao filme, veja-se “Tróia” (Wolfgang Petersen, 2004), como uma pós-moderna mas lícita alta comédia sobre a Grécia antiga mas que deveria ter sido engendrada pelo mestre Giovanni Pastrone, lá pela península itálica nos finais da primeira década do ido século XX.

 

 

Sobre o filme «Paixão Proibida» de Tony Richardson, 1959

 




































Jimmy Porter (Richard Burton) é um homem vindo do operariado, dotado, inteligente, sensível, trompetista de sucesso nas horas vagas, nas outras vendedor de rebuçados num mercado de rua a meias com o amigo Cliff (Gary Raymond), com o qual partilha uma velha mansarda. Jimmy é casado com Alison (Mary Ure), uma rapariga de origem abastada que o ama, apesar de tudo. Mas, acima de tudo, Jimmy é um jovem irado que se revolta contra uma sociedade apodrecida que se lhe entranha nos ossos e nas células e o faz odiar tudo e todos, tornando a vida, a sua e a de quem lhe pertence, num inferno. Alison diz para o seu pai que, a custo, regressara de uma Índia descolonizada:

«Está magoado porque tudo mudou, Jimmy está magoado porque tudo continua igual, e nem um nem o outro consegue entender isto. Algures, qualquer coisa está errada, não está?»

A mansarda, onde também chegará Helena (Claire Bloom), amiga de Alison, é um palco fechado, intenso, sem pontos de fuga, onde a ira e a agressividade se concentram e não dão tréguas ao amor. Um lugar em que as expressões são filmadas de tão perto que chega a parecer intruso o próprio espectador. Espaço claustrofóbico que não é tranquilizado pelas magníficas cenas de mercado; das crianças que correm entusiasmadas; dos velhos nos bancos de jardim; das canções do Exército de Salvação; do bar onde o bebop é freneticamente tocado e dançado. Nem sequer as cenas finais na estação de comboios dão algum tom de reconciliação entre Jimmy e Alison que, entre sombras e vapor, olham-se, amam-se, mas não se chegam a beijar.

Este é um filme realizado numa época em que a guerra, o colonialismo, as injustiças sociais, o desespero emocional e o desequilíbrio psicológico, mas também o rigor do esteta, faziam parte integrante de um novo teatro que se situava no centro de um novo cinema. Cinema que desejava intervir na mudança cultural (e política) de uma sociedade que se desengonçava sobre os próprios fundamentos, os seus velhos alicerces.


jef, setembro 2020

«Paixão Proibida» (Look Back in Anger) de Tony Richardson. Com Richard Burton, Claire Bloom, Mary Ure, Edith Evans, Gary Raymond, Glen Byam Shaw, Phyllis Neilson-Terry, Donald Pleasence, George Devine, Walter Hudd, Nigel Davenport, Alfred Lynch, Toke Townley, S. P. Kapoor. Argumento: Nigel Kneale segundo a peça de teatro de John Osborne que lhe acrescentou diálogos. Produção: Harry Saltzman e Gordon Scott. Fotografia: Oswald Morris. Música: Chris Barber. Grã-Bretanha, 1959, P/B, 98 min.

 

 

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Sobre o filme «A Voz da Lua» de Federico Fellini, 1990

 





É extremamente difícil escrever sobre «A Voz da Lua». Ficou como epitáfio da obra e da vida de Federico Fellini, personagem que nunca separou o seu dia-a-dia dos filmes que ia criando, também das personagens, dos cenários reais-falsos que construía, da música de filarmónica, da fantasiosa trupe circense que sempre manteve junto a si. Porém, este não é um testamento, apenas o último filme que realizou. Mas é tão denso, resume tão bem tudo que para trás ficou dito e baralhado; é tão desencantado no modo abrupto como a derradeira cena termina («Se todos fizéssemos um pouco de silêncio, certamente havíamos de ouvir alguma coisa.», vindo do alto da Lua ou do fundo de um poço, acrescento eu); que é pouco provável que alguém o consiga associar à maravilhosa nostalgia que o universo felliniano deixou para todos nós.

A desamparada e ingénua figura de Roberto Benigni, no papel de Ivo Salvini, apaixonado platonicamente por Aldina Ferruzzi (Nadia Ottaviani), que o expulsa atirando-lhe um sapato de cinderela (e que ele lhe deseja, a todo o custo, devolver), faz o contraponto com a figura desesperada, revoltada e nervosa do advogado Gonnella (Paolo Villaggio) que pretende reverter o presente para o conforto de um passado desaparecido. As televisões de Berlusconi e as festas barulhentas a toldar a verdade dos factos e os singelos passos de uma valsa. Salvini e Gonnella são as duas faces de uma Lua para sempre encarcerada do desalento.

É, para mim, impossível sair de «A Voz da Lua» sem a absoluta sensação de abandono e de fim. Talvez mesmo, de morte.


jef, setembro 2020

«A Voz da Lua» (La Vocce della Luna) de Federico Fellini. Com Roberto Benigni, Paolo Villaggio, Marisa Tomasi, Nadia Ottaviani, Angelo Orlando, Dario Ghirardi, Dominique Chevalier, Nigel Harros, Vito, Uta Schmidt, George Taylor, Susy Blady, Giordano Falzoni, Ferruccio Brembilla. Argumento: Federico Fellini, Tulio Pinelli e Ermanno Cavazzoni, baseado no romance deste último «Il Poema dei Lunatici». Fotografia: Ronino Delli Colli. Música: Nicola Piovani. Produção: Mario e Vittorio Cecchi Gori. Itália / Paris, 1990, Cores, 118 min.

 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Sobre o filme «Uma Gota de Mel» de Tony Richardson, 1961









 





















Manchester on fire and childhood.

Saído da peça de teatro escrita por Shelagh Delaney quando esta tinha 19 anos, conta a história de Josephine (Rita Tushingham) e do seu relacionamento com a sua mãe, Helen (Dora Bryan), com o namorado desta, Peter (Robert Stephens), com o jovem marinheiro negro Jimmy (Paul Danquah), com o jovem estilista e homossexual Geoffrey Ingham (Murray Melvin)...

Na realidade, um filme que utiliza a imagem triste, pobre e suja de Manchester (na melhor fotografia a preto de branco de Walter Lassally), para distanciar do neo-realismo o trágico realismo do sofrimento humano, aproximando-o do expressionismo dramático do cinema mudo.

Este filme deixa-nos a inesquecível substância teatral e emocional, diria mesmo afectiva, das grandes sagas do cinema. Os olhos de Josephine reflectem a inevitável inocência para a pulsão fatídica de Keechie (Cathy O’Donnell) em «Os Filhos da Noite» (Nicholas Ray, 1949), a mesma dádiva apaixonada mas sem retorno de Gelsomina (Giulietta Massina) em «A Estrada» (Federico Fellini, 1954). Também aqui as crianças rodeiam as personagens, coro protector ou enxame ameaçador. Afinal, a cantilena infantil reconcilia-nos com a vida ou acusa uma sociedade de pós-guerra, sem memória, ignóbil e desumana?

Um filme que não pode ser ignorado!


jef, setembro 2020

«Uma Gota de Mel» (A Taste of Honey) de Tony Richardson, 1961. Com Dora Bryan, Robert Stephens, Rita Tushingham, Murray Melvin, Paul Danquah, Michael Bilton. Argumento: Tony Richardson e Shelagh Delaney, baseado na peça desta última. Fotografia: Walter Lassally. Música: John Addison. Produzido: Tony Richardson. Grã-Bretanha, 1961, P/B, 101 min.

 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Sobre o livro «Satyricon» de Petrónio. Tradução de Delfim F. Leão. Cotovia, 2005










A História momentânea da literatura.

A maior valia trazida pela recente vaga de traduções directas de clássicos gregos e latinos liga-se à plena consciência da sua contemporaneidade. Sem negar a soberana importância de tais obras, razão primeira que as fez chegar até nós através dos séculos, a nova guarda de tradutores trabalha directamente para os leitores de hoje. Negando essa comum, e talvez presunçosa, tendência entre historiadores e literatos de tentarem fixar as obras no futuro, esgotando-as e cumulando-as de epítetos e prelecções que retiram o aliciante carácter de surpresa à leitura. Eles entregam os livros simplesmente à normal compreensão (diversão) do amante da leitura. É o caso da presente edição de «Satyricon» de Petrónio. O tradutor Delfim F. Leão reconhece que o texto, escrito presumivelmente no século I sob os auspícios do extravagante Nero, poderia naturalmente apresentar-se sobre diversas perspectivas e códigos de linguagem. Por isso, na página de rosto a obra é apresentada como a “versão portuguesa de Delfim F. Leão”. A escolha dos instrumentos linguísticos recai então sobre os que sugerem o maior afastamento do tradutor, despojando a obra de explicações interlineares e adaptando o vocabulário de forma a colocar o texto dentro do tempo do leitor e, em simultâneo, acentuando a sensação de clivagem entre o género erudito e o “popular”. Porque “Satyricon” reflecte a sua modernidade narrativa, precisamente, numa fragmentação de forma e conteúdo, que o tempo apenas ajudou a aprofundar, sonegando-lhe parte considerável dos livros que na origem o integravam. Uma série de relatos mais aventurosos que venturosos fazem circular o trio ou quarteto amoroso (a contar com o poeta malquisto mas astuto gerador de heranças, Eumolpo) num rodopio de situações que ostentam a ironia sobre a arte, o sexo, a tradição literária ou os novos-ricos, mais como síntese dialéctica, contraponto dramático, promiscuidade de estilos, do que como crítica moralmente explícita ao poder ou aos costumes. Um facto que, apesar de tudo, não terá poupado Petrónio do ‘suicídio induzido’, executado contudo de forma tão teatral como a sua obra, uma ironia negra que faz lançar sobre o final canibalesco de «Satyricon» o véu pesado da tragédia.


jef, junho de 2006

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Sobre os livros «Amores» e «Arte de Amar» de Ovídio e «Caminhos do amor em Roma» de Carlos Ascenso André. Cotovia, 2006






É nu o Amor

 

“alguma vez terá fim o teu amor,

ó poeta, tão teimoso no teu assunto?”

Ovídio, “Amores”, 3.1.15-16

 

Carlos Ascenso André pode afirmar, através do seu meticuloso estudo sobre o amor em Roma, que Ovídio é exímio em contradizer-se. Porém, mais incoerente do que o poeta é a essência própria do amor. Ovídio terá, assim, por atenuante, as ínvias características do tema que apaixonou tanto os mestres da antiguidade como os posteriores mestres académicos que passaram uma vida a dissecar tão determinantes elegias.

Se o gozo no fingimento e a técnica da dissimulação fossem, afinal, os únicos alicerces da sedução, esse patamar intermédio para o final usufruto do amor, aqui tomado pelo contínuo encadeado de efémeros actos de prazer, então por que razão os poetas explicitariam também a sofrida escravidão face ao objecto amado quando este lhes é recusado em permanência? Se Roma do séc. I a. C. não valorizasse o prolongado, quantas vezes doloroso, romantismo que impregna o sentimento maior, então por que versejariam desta forma os poetas que aos salões eram chamados para encantar os convivas? Deste modo, Cíntia não seria apenas um devaneio para Propércio, nem Lésbia o fútil objecto do amor de Catulo. Nem mesmo Délia, Némesis ou Márato caprichos momentâneos para a libido de Tibulo. Quanto valeria o sentimento que Corina despertava em Ovídio, esse poeta, o mais prazenteiro de todos, executor da exaustiva e tecnicista cartilha da «Arte de Amar»? Então não escreve ele que a conquista do amor deve ser conseguida sob o ferro da insinuação e do disfarce?

Na realidade, Ovídio surge como dono da excelente arte de manipular circunstâncias, oferecendo a táctica venatória ao predador ainda inexperiente, no entanto, logo a seguir, parece não se importar em contradizer-se, embora talvez não tanto como outros contemporâneos, surgindo como presa vulnerável manietada pelo assombro do seu enlevo, expondo-se a um fascínio cuja verdade imponderável se situa a meio termo entre o prazer e o pudor.

Porém, essa mesma verdade não se encontra na essência do facto narrado poeticamente, ausente que está há mais de vinte séculos, mas na interpretação dada à palavra que o poeta registou e na posterior adaptação trabalhada pela arte do tradutor. A tarefa de Carlos Ascenso André reveste-se, por isso, de uma particular responsabilidade pois deve consolidar e transmitir, na actualidade da língua portuguesa, a sua visão sobre a sociedade romana, a língua latina e o conceito pessoal do escritor sem, contudo, ferir a eterna chama volátil do poema.

«Caminhos do amor em Roma» é a obra que introduz, circunstancia e justifica o citado princípio do contraditório, sem a qual «Amores» e o sequente «Arte de Amar» tornar-se-iam apenas mais uma versão portuguesa da poética amorosa de Ovídio. Este conjunto de obras, à qual se juntará possivelmente «Cantos de tristeza», reflectindo a poesia de Ovídio sobre o exílio, evidencia o notável panorama actual da academia portuguesa. Associada a uma corajosa política editorial, a recente universidade extravasa os portões da escola e entrega nas mãos do leitor comum não só magníficas traduções, realizadas a partir dos originais e respeitando a sua métrica poética, como associa textos como é o caso deste estudo que, de forma clara e pedagogicamente intuitiva, concede novos patamares de conhecimento a uma leitura contemporânea da literatura ancestral, património cultural da humanidade.

Na ausência de semelhante enquadramento, talvez não fosse tão perceptível a deliciosa insolvência que une, separando-os, os três livros incluídos em «Arte de Amar» e aqueloutros que estruturam «Amores». Se na primeira colectânea, de índole marcadamente doutrinal, a aprendizagem reparte-se pela arte da sedução, com um livro dedicado aos homens e outro às mulheres, e ainda um terceiro onde se explicita a técnica de prolongar o amor; em «Amores», as elegias possuem um carácter mais livre, lúdico e espontâneo quanto ao desenvolvimento dos temas e à sua sequência (se for lícito aplicar tais adjectivos aos clássicos da literatura).

Assim, a «Arte de Amar» celebra o leviano hedonismo amoroso, expondo, alínea por alínea, o método mais apropriado para laçar as vítimas, levando por vencidas as adversárias, fossem elas casadas ou não. Neste âmbito, o adultério e o matrimónio são talvez os temas literariamente mais interessantes aqui tratados, relativamente aos quais os textos e notas complementares de Carlos Ascenso André vêm sublinhar como os actos de amor na Roma de então se regiam sob pragmáticas bases sociais, determinadas pelo contrato e pela detenção do poder, obrigando inclusive o poeta a excluir tacitamente certas mulheres do alvo da sedução, dado o seu estatuto não o permitir, por respeito possivelmente aos mais recentes decretos do imperador Augusto.

Em «Amores» são já bastante mais nítidos os exemplos onde o poeta se vê, em certa medida, prisioneiro desse irrequieto sentimento que viria a consolidar, impregnando, séculos mais tarde, as poesias renascentista e romântica. São poemas que desvendam o espírito maior de Ovídio na exploração dos temas através de uma complexa assunção sintáctica. Exemplos dessa mais bela e contraditória veia poética são as elegias onde Corina resplandece numa tarde que declina (1.5), onde se repudia a invejosa pressa da Aurora (1.13) ou onde o protagonismo é roubado por um anel oferecido (2.15).

Qual será então mais verdadeiro, o pragmatismo que reduz o amor a um mecanismo aperfeiçoado pelos profissionais da sedução, apartando-o do simulacro contratual da sociedade que deseja a perpetuidade de bens e descendência, ou, pelo contrário, a concessão que lhe atribui as doces virtudes e as penas amargas de uma prisão desejada?

Quem responde é o contraditório dos poetas latinos da antiguidade que, na sua maior ou menor ingénua leviandade, melhor revelam a verdade suprema: o amor foi, é e será o maior sentimento de todos os tempos, a melhor criação da humanidade, ser tão único e incongruente que jamais alguém o poderá cobrir com as delicadas vestes da ilusão.

 

 “É nu o Amor e não aprecia artefactos de beleza.”

 

(Propércio, 1.2.8) 

 

p.s. para quando a tradução e edição das cartas apócrifas de Ovídio «Heroides»?         

 

jef, novembro 2006

«Arte de Amar» e «Amores» de Ovídio. Tradução de Carlos Ascenso André, Cotovia, 2006

«Caminhos do amor em Roma – sexo, amor e paixão na poesia latina do séc. I a. C.» de Carlos Ascenso André, Cotovia, 2006

Sobre o filme «Os Inúteis» de Federico Fellini, 1953

 

 
































Moraldo (Franco Interlenghi), Alberto (Alberto Sordi), Fausto (Franco Fabrizi), Leopoldo (Leopoldo Trieste) e Riccardo (Riccardo Fellini) são cinco amigos inseparáveis que vivem ao correr da vida, sem ocupação e em dolce far niente. Seriam bons vivants se fossem ricos e as famílias que os sustentam não fossem pobres ou remediadas, saídas de uma Itália “neo-realista” do pós-guerra, devastada e tristemente alegre. Estamos a um ano da realização de «A Estrada».

E o mundo de Fellini, auto-cinematográfico, pantomineiro, circense, simultaneamente alegre e abandonado, já construído por episódios sucessivos, aparece aqui condensado numa comédia onde sabemos que tudo pode acabar num mar de nostálgicas premências. Um mundo onde as mulheres são o mote, a regra e a direcção, mas o homem, de modo infantil e volúvel, obstinadamente lhes desobedece.

As cenas em que o baile de Carnaval substitui as de circo, onde todos estão travestidos em personagens luxuriantes, terminam de manhã, com um Alberto em lágrimas, bêbado, vestido de mulher, a arrastar uma cabeça de gigantone, irremediavelmente devastado ao ver a irmã, sustento da casa, fugir com o amante. Vai amparado por Moraldo, que não o abandona mas vai ficando cada vez mais entristecido. Nesse baile, todas as personagens entram num jogo quase fatal e exuberante. O seu destino foi ali traçado.

As cenas que antecedem o grande final, essas em que todos (e Fausto principalmente) correm angustiados atrás de uma Sandra (Eleonora Ruffo) desaparecida com um bebé nos braços, são de um apuro sublime da tragicomédia cinematográfica. Um non sense muito mais expressionista que neo-realista, a tocar o génio das comédias densas de Charlie Chaplin.

E Charlot reaparece de novo na minha memória, numa das cenas mais memoráveis do cinema, quando Moraldo-Fellini parte de comboio, de madrugada, sem avisar e, na estação, surge apenas a despedir-se a criança-factor-ferroviário, o seu amigo-consciência, a imagem “maternal” da realidade fora da encenação.


«Onde vais?

Não sei. Vou-me embora.

Mas o que vais fazer?

Não sei. Preciso de partir. Vou-me simplesmente embora.»


E o comboio parte inelutável e, na sua trepidação, olhamos o presente-futuro dos amigos que ficam, dormindo em inocente tranquilidade.


 jef, setembro 2020


«Os Inúteis» (Il Vitelloni) de Federico Fellini. Com Franco Interlenghi, Alberto Sordi, Franco Fabrizi, Leopoldo Trieste, Ricardo Fellini, Eleonora Ruffo, Jean Brochard, Claude Farell, Carlo Romano, Enrico Viarisio, Lida Baarova, Arlette Sauvage, Vira Silenti, Achille Majeroni, Guido Martufi. Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tulio Pinelli, baseado numa ideia deste último. Fotografia: Otello Martelli, Luciano Trasatti, Carlo Carlini. Música: Nino Rota. Guarda-roupa: Margherita Mariani, Bomarzi. Produção: Lorenzo Ogoraro. Itália / Paris, 1953, P/B, 103 min.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Sobre o filme «Oito e Meio» de Federico Fellini, 1963









 



























1000 personagens em busca de realizador.

Quando, em 1921, Luigi Pirandello escreveu «Seis Personagens à Procura de um Autor», essa peça quase ingovernável onde as personagens invadem o palco revoltadas com o decorrer dos acontecimentos e a ausência inepta do autor-encenador, o dramaturgo de Agrigento desconhecia que, 40 anos depois, surgiria uma extraordinária sequela, não menos bela, não menos louca, história total, real, demente, comovente, onírica, coerente, abstracta econsciente, esta extraordinária fábula fantasiada por Federico Fellini e pela sua legião de trabalhadores-cúmplices.

Um ajuste de contas consigo próprio e com o tempo que passa, com o processo criativo e a obsessiva página em branco de Mallarmé, também com todos os que veneram a obra do seu duplo Guido (Marcello Mastroianni) e tanto lhe exigem. Também com os críticos furiosos que acabam enforcados. Uma espécie de pedido de desculpa perante as lágrimas da abandonada e sempre próxima mulher Luisa (Anouk Aimée), com a amante abandonada Carla (Sandra Milo), mas sempre ali ao lado.

Personagens preteridas tal como a fé em busca de uma centelha de fé, como a infância reprimida, a paternidade, a maternidade, a possível doença, o fim à vista…

Uma troca acalorada de argumentos com outro Mastrioanni, o jornalista sem escrúpulos mas em consciência do fim do mundo, Marcello Rubini de «A Doce Vida», realizado três anos antes.

Talvez uma confissão à beira de um confessionário onde cabe o mundo todo e o seu circo, reinventado pelo ilusionismo de Maurice (Ian Dallas) que obriga Guido a ir em frente e a lançar a nave espacial aos céus, fazendo descer pela escadaria, irmanados, todos, agora vestidos de branco, mortos e vivos, rindo e dançando, seguindo de mãos dadas a banda filarmónica tocada por palhaços e dirigida por aquela criança flaustista, também ela de branco, que se vai desvanecendo no ecrã.

«A vida é uma festa, vamos vivê-la.», repete Guido pegando na mão de Luisa e dirigindo-a para a roda.


jef, setembro 2020


«Oito e Meio» (Otto e Mezzo) de Federico Fellini. Com Marcello Mastroianni, Claudia Cardinali, Anouk Aimée, Sandra Milo, Rosella Falk, Madeleine Lebeau, Caterina Boratto, Barbara Steele, Mario Pisu, Guido Alberti, Mario ConocchiaJean Rougeul, Edra Gale, Ian Dallas, Annibale Ninchi, Giuditta Rissone, Tito Masini, Yvonne Casadei, Marco Gemini. Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tulio Pinelli, Brunello Rondi. Fotografia: Gianni Di Venanzo. Música: Nino Rota. Guarda-roupa: Piero Gherardi. Produção: Angelo Rizzoli. Itália, 1965, P/B, 114 min.