terça-feira, 1 de setembro de 2020

Sobre (a bela editora Cotovia) e o livro «Odisseia» de Homero. Tradução de Frederico Lourenço. Cotovia, 2003


 









Super-homem Super-poema.

O tradutor da nova edição de «Odisseia» de Homero consegue a façanha de repor a verdade dos factos e, ao mesmo tempo, revelar a ordem exacta dos factores. Deste modo, se atribuirmos o valor de “palavras” aos factos ou aos factores, logo surge, em termos silogísticos, a correspondência de “poesia” para a realidade e a ordem. Ou seja, no presente livro, a verdadeira escolha das palavras adapta-se à estrutura ordenada do velho poema grego, concedendo finalmente aos leitores-ouvintes portugueses o prazer pleno da leitura-audição de um dos mais famosos livros do mundo. Porque era de ausência de poesia o que padeciam as anteriores versões portuguesas, que agora surgem, por comparação, prosaicas, circunspectas, ininterruptas, enfadonhas. Logo “falsas” e “desordenadas”.

E se o Poema é o mais depurado estado da arte, em que o conceito supera constantemente a forma, e vice-versa, fazendo-os coincidir numa unidade que se pretende perfeita, então esse poder, e porque não necessidade, adquire uma magnitude sem limites quando a sua origem remonta aos tempos em que as palavras ditas ainda não tinham equiparação linear gráfica e todas as histórias eram apenas contadas ou cantadas. O tempo em que a palavra não podia ser relida devendo seguir, no presente, a verdade que a narrativa pretendia descrever. O tempo em que a história, aperfeiçoada pelas gerações que a cantavam, devia tornar-se realidade e soar perfeita aos ouvintes. São estas palavras, transcritas da voz para o papel, descritas em doze mil versos distribuídos por vinte e quatro cantos, trazidas directamente do grego ancestral para a língua portuguesa contemporânea, que o tradutor faz regressar, submetendo o leitor à transfiguração para espectador do mais comovente canto sobre alguém de carne e osso que se transforma em divino e herói, ou no seu inverso. Agora, a odisseia de Ulisses, homem valente, astuto e sensível, vem soar aos ouvidos do leitor português como uma história simultaneamente encantada e verosímil. Assim o Poema completa o ciclo, encontra-se com o conceito que descreve e retira a verdade do próprio corpo, inteiro e estruturado.

O leitor-ouvinte é levado a entusiasmar-se com os episódios sem perder o fio à meada do romance ou a forma modernista, quase cinematográfica, com que os truques narrativos se encadeiam. As palavras não podem perturbar a alternâncias de cenas simultâneas embora geograficamente distintas, a sucessão dos diferentes planos consecutivos, ou a flutuação do género narrativo até chegar ao tempo presente, altura em que a história se desenrola em ritmo acelerado. Para isso a ordem das palavras deve ser rigorosa para que sigam a verdade dos versos, pois estes perseguem fervorosos a agilidade da narração e o carácter intemporal e universal das personagens. Para isso, são imprescindíveis as repetições de vocábulos e de versos, as pausas para a compreensão e as adaptações subtis, mas não menos poéticas, das deflexões silábicas que acompanham a cadência homérica. São estas algumas características que fundamentam o entusiasmo da leitura e, porque não, da declamação desta Odisseia.

Inclusive, o tradutor abandona a tendência fácil e paternalista de tentar explicar tudo o que se esconde por trás de um texto com tantos séculos de fama, proveito e academismo. Além de dois textos de abertura, sucintos e circunstanciais – Prefácio e Introdução –, a ausência absoluta de notas filológicas, filosóficas ou geográficas permite ao leitor-ouvinte criar aquilo a que tem direito quando decide pegar num qualquer livro, seja ele famoso ou não. A liberdade de construir a sua interpretação, de produzir a sua análise crítica, de se deixar enlevar pelos seus próprios sentimentos e imaginar as geografias que a memória lhe inspira.

Pode agora o leitor-ouvinte comum dar largas à sua emoção, pois pouco lhe interessará se a realidade da guerra entre gregos e troianos se esfuma em episódios mais ou menos incríveis sobre a bravura do Mediterrâneo e dos que nele habitam. Nada é realmente importante quando ainda mal sabemos se, um dia, Ulisses será recompensado pela sua obstinação em regressar a casa, abdicando da imortalidade divina que a irresistível Calipso lhe oferece em troco de um pouco do seu amor. Por enquanto, temos de dar crédito à obscura gruta do temperamental e esfomeado Ciclope Polifemo, aos inusitados hábitos alimentares dos Lotófagos e Lestrígones, aos poderes meteorológicos de Éolo, aos grunhidos dos valorosos companheiros transformados em porcos pela bela Circe, ao canto das sedutoras Sereias, aos urros ferozes de Cila e Caríbdis, aos gritos desvairados dos pedaços de vacas do Sol enquanto rodam no espeto, mas principalmente às inquietantes predições de Tirésias vindas do mundo espectral de Hades. Tal como Ulisses, estamos nas mãos dos deuses que parecem mais apaixonados, volúveis e menos sensatos que os próprios humanos. O que interessa é que estamos prontos a oferecer libações à insinuante deusa Palas Atena para que entregue sem demora o nosso herói, mesmo que seja nu e abandonado, aos cuidados da doce Nausícaa, princesa dos Feaces. Assim, ele mais depressa chegará à pátria Ítaca onde, revigorado pelo poder dos deuses, pelo amor da família e pela lealdade dos súbditos, terá ainda de ultrapassar a mais difícil provação e vencer todos quantos ele mais reprova.

E até à última linha somos levados pela história através da bela Poesia...

(Quem subtraiu do super-poema as peripécias trágico-marítimas de Ulisses, senhor de Ítaca, rei da Nostalgia e da Saudade, foi o infatigável tradutor-escritor-poeta Frederico Lourenço. A ele, à editora Cotovia e também a Homero – fosse ele lá quem fosse – , devemos empenhado tributo por terem acrescentado um precioso tomo à nossa mais desordenada, embora verídica, biblioteca. A Biblioteca das Viagens, Aventuras, Mentiras e Utopias: de Júlio Verne a Jonathan Swift, de Fernão Mendes Pinto a Bruce Chatwin, de Cervantes a Italo Calvino...)


jef, setembro de 2003


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