Super-homem Super-poema.
O tradutor da nova edição de «Odisseia» de Homero consegue a
façanha de repor a verdade dos factos e, ao mesmo tempo, revelar a ordem exacta
dos factores. Deste modo, se atribuirmos o valor de “palavras” aos factos ou
aos factores, logo surge, em termos silogísticos, a correspondência de “poesia”
para a realidade e a ordem. Ou seja, no presente livro, a verdadeira escolha
das palavras adapta-se à estrutura ordenada do velho poema grego, concedendo
finalmente aos leitores-ouvintes portugueses o prazer pleno da leitura-audição
de um dos mais famosos livros do mundo. Porque era de ausência de poesia o que
padeciam as anteriores versões portuguesas, que agora surgem, por comparação,
prosaicas, circunspectas, ininterruptas, enfadonhas. Logo “falsas” e
“desordenadas”.
E se o Poema é o mais depurado estado da arte, em que o
conceito supera constantemente a forma, e vice-versa, fazendo-os coincidir numa
unidade que se pretende perfeita, então esse poder, e porque não necessidade,
adquire uma magnitude sem limites quando a sua origem remonta aos tempos em que
as palavras ditas ainda não tinham equiparação linear gráfica e todas as
histórias eram apenas contadas ou cantadas. O tempo em que a palavra não podia
ser relida devendo seguir, no presente, a verdade que a narrativa pretendia
descrever. O tempo em que a história, aperfeiçoada pelas gerações que a
cantavam, devia tornar-se realidade e soar perfeita aos ouvintes. São estas
palavras, transcritas da voz para o papel, descritas em doze mil versos
distribuídos por vinte e quatro cantos, trazidas directamente do grego
ancestral para a língua portuguesa contemporânea, que o tradutor faz regressar,
submetendo o leitor à transfiguração para espectador do mais comovente canto
sobre alguém de carne e osso que se transforma em divino e herói, ou no seu
inverso. Agora, a odisseia de Ulisses, homem valente, astuto e sensível, vem
soar aos ouvidos do leitor português como uma história simultaneamente
encantada e verosímil. Assim o Poema completa o ciclo, encontra-se com o
conceito que descreve e retira a verdade do próprio corpo, inteiro e
estruturado.
O leitor-ouvinte é levado a entusiasmar-se com os episódios
sem perder o fio à meada do romance ou a forma modernista, quase
cinematográfica, com que os truques narrativos se encadeiam. As palavras não
podem perturbar a alternâncias de cenas simultâneas embora geograficamente
distintas, a sucessão dos diferentes planos consecutivos, ou a flutuação do
género narrativo até chegar ao tempo presente, altura em que a história se
desenrola em ritmo acelerado. Para isso a ordem das palavras deve ser rigorosa
para que sigam a verdade dos versos, pois estes perseguem fervorosos a
agilidade da narração e o carácter intemporal e universal das personagens. Para
isso, são imprescindíveis as repetições de vocábulos e de versos, as pausas
para a compreensão e as adaptações subtis, mas não menos poéticas, das
deflexões silábicas que acompanham a cadência homérica. São estas algumas
características que fundamentam o entusiasmo da leitura e, porque não, da
declamação desta Odisseia.
Inclusive, o tradutor abandona a tendência fácil e
paternalista de tentar explicar tudo o que se esconde por trás de um texto com
tantos séculos de fama, proveito e academismo. Além de dois textos de abertura,
sucintos e circunstanciais – Prefácio e Introdução –, a ausência absoluta de
notas filológicas, filosóficas ou geográficas permite ao leitor-ouvinte criar
aquilo a que tem direito quando decide pegar num qualquer livro, seja ele
famoso ou não. A liberdade de construir a sua interpretação, de produzir a sua
análise crítica, de se deixar enlevar pelos seus próprios sentimentos e
imaginar as geografias que a memória lhe inspira.
Pode agora o leitor-ouvinte comum dar largas à sua emoção,
pois pouco lhe interessará se a realidade da guerra entre gregos e troianos se
esfuma em episódios mais ou menos incríveis sobre a bravura do Mediterrâneo e
dos que nele habitam. Nada é realmente importante quando ainda mal sabemos se,
um dia, Ulisses será recompensado pela sua obstinação em regressar a casa,
abdicando da imortalidade divina que a irresistível Calipso lhe oferece em
troco de um pouco do seu amor. Por enquanto, temos de dar crédito à obscura
gruta do temperamental e esfomeado Ciclope Polifemo, aos inusitados hábitos
alimentares dos Lotófagos e Lestrígones, aos poderes meteorológicos de Éolo,
aos grunhidos dos valorosos companheiros transformados em porcos pela bela
Circe, ao canto das sedutoras Sereias, aos urros ferozes de Cila e Caríbdis,
aos gritos desvairados dos pedaços de vacas do Sol enquanto rodam no espeto,
mas principalmente às inquietantes predições de Tirésias vindas do mundo
espectral de Hades. Tal como Ulisses, estamos nas mãos dos deuses que parecem
mais apaixonados, volúveis e menos sensatos que os próprios humanos. O que
interessa é que estamos prontos a oferecer libações à insinuante deusa Palas
Atena para que entregue sem demora o nosso herói, mesmo que seja nu e
abandonado, aos cuidados da doce Nausícaa, princesa dos Feaces. Assim, ele mais
depressa chegará à pátria Ítaca onde, revigorado pelo poder dos deuses, pelo
amor da família e pela lealdade dos súbditos, terá ainda de ultrapassar a mais
difícil provação e vencer todos quantos ele mais reprova.
E até à última linha somos levados pela história através da
bela Poesia...
(Quem subtraiu do super-poema as peripécias trágico-marítimas
de Ulisses, senhor de Ítaca, rei da Nostalgia e da Saudade, foi o infatigável
tradutor-escritor-poeta Frederico Lourenço. A ele, à editora Cotovia e também a
Homero – fosse ele lá quem fosse – , devemos empenhado tributo por terem
acrescentado um precioso tomo à nossa mais desordenada, embora verídica,
biblioteca. A Biblioteca das Viagens, Aventuras, Mentiras e Utopias: de Júlio
Verne a Jonathan Swift, de Fernão Mendes Pinto a Bruce Chatwin, de Cervantes a
Italo Calvino...)
jef, setembro de 2003
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