segunda-feira, 31 de julho de 2017

Sobre o filme «Paterson» de Jim Jarmusch, 2016
















Paterson mora na cidade de Paterson. Uma espécie de gemulação, tal como os dias que se sucedem aos dias ao longo da semana. Paterson (Adam Driver) é condutor de autocarros na carreira 23 e é poeta na terra do poeta do quotidiano William Carlos Williams. Laura (Golshifteh Farahani) sonha em comprar uma guitarra Arlequin e ser cantora de country, e faz belíssimos cupcakes. Também pinta. Paterson ama Laura. Laura ama Paterson. Vivem com Marvin (Nellie), um mimado e ciumento buldogue inglês.
Os dias correm de segunda a segunda, com o sol a suspender-se sobre o sereno e belíssimo rosto de Laura, na pausa que a luz exige quando, por exemplo, contemplamos um quadro de Edward Hopper. Tal como o pintor, Jim Jarmusch sabe como narrar uma imagem para que ela se mantenha o tempo suficiente e se revele ao nosso olhar. O olhar de Jarmusch é demorado, requintado, feito de planos aparentemente simples e paralisados sobre os objectos. Ou sobre as palavras.
Quem não tiver tempo para contemplar não vá ver o filme! Porque é exactamente o tempo da poesia que vai sendo escrita sobre o ecrã, ao som da música dos SQÜRL. O seu autor é Ron Padgett, afinal Paterson que ouve histórias (e vê gémeos) ao longo das suas viagens. E escreve num caderno secreto.
A bela tese de Jarmusch é mesmo muito simples e fundamental: a relação entre a rotina e a criação, entre a ausência de tempo e o tempo que transforma a realidade no seu sucedâneo, a palavra escrita.
Também uma comédia muito séria sobre a benevolência que reside no interior do amor e a resistência que o amor concede à árdua tarefa de viver a gemulação do dia-a-dia e o dever de ser poeta.
Uma ode ao hábito atento e à criatividade generosa.
Há muito que um filme não tocava tanto nessa molécula que sempre anda escondida na rotina diária do meu caderno secreto.

Nota final:  a cadela Nellie ganhou postumamente o prémio de representação pelo papel canino do macho Marvin.

jef, julho 2017

«Paterson» de Jim Jarmusch. Com: Adam Driver, Golshifteh Farahani, Kara Hayward, Sterling Jerins, Helen-Jean Arthur, William Jackson Harper, Barry Shabaka Henley, Jared Gilman, Rizwan Manji, Masatoshi Nagase, Nellie. Fotografia: Frederick Elmes; Banda Sonora Original: SQÜRL; Poesia: Ron Padgett e William Carlos Williams (1883 – 1963); Alemanha / EUA / França, 2016, Cores, 118 min.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Sobre o filme «As Falsas Confidências» de Luc Bondy, 2016



















Cinema Teatro Teatro Cinema. Em jeito de crónica.
Marivaux tem um efeito muito benéfico na minha memória, logo, concorre fortemente para a minha compreensão do lugar que habito.
Não sou capaz de esquecer a subida ao Capitólio, no Parque Mayer, por umas escadas rolantes tremelicantes, empurrado pela minha Mãe, e por ela acompanhado, para ver «A Ilha dos Escravos» (e a «Herança») pelo tão recente Teatro da Cornucópia. 1974.
Lembro-me de muitas almofadas e dos actores pisarem sem pisar, em desequilíbrio aparente, uma ilha onde os náufragos pretendiam mudar de estratégia. Criados a quererem ser patrões, patrões a seduzirem criadas que desejam as mordomias da patroa. Na altura, não entendi como aquelas comédias estavam na origem de uma nova ideia de Revolução. Não a dos Cravos, mas a da Bastilha. Marivaux, Beaumarchais…
Não entendi que a comédia trazia dentro a diversão mas também o modo diferente. Continha o tempo das palavras que faz sentido no interior da elegância das ideias. Era adolescente e espantava-me com as ruas, os plenários, as palavras e as cantigas como armas.
Mas Marivaux lá ficou nos interstícios da memória, como a Cornucópia, o espaço do Capitólio, a Revolução. Também a minha Mãe. Desmesurando o meu Tempo e o meu Lugar, para sempre. Assim Sou.
Reencontro-o em «As Falsas Confidências», num belo texto sobre praticamente nada, apenas o amor e o dever da compreensão do outro e a diversão do mal-entendido e da mentira como princípio de sedução, de expectativa, de amizade, de crítica da moral. Luc Bondy, que falecia pouco depois das filmagens, manteve a encenação durante a noite no palco do Théâtre de l’Odéon enquanto, à luz do dia, dispunha os actores em todos os espaços do edifício. Do foyer aos bastidores, da casa das máquinas à cozinha, deixando a mais fina intimidade nas mãos de um conjunto de actores que se digladiam para confundir e unir os corações carentes e amáveis de Araminte (Isabelle Huppert) e Dorante (Louis Garrel).
Um trabalho de minúcia e devoção pela construção cenográfica, pela definição dos caracteres, pela inflamação do critério da palavra.
Marivaux. Um retorno ao presente da minha memória grata que, deste modo, se vai modificando e me vai fornecendo dados para melhor compreender onde se situará o meu futuro.

jef, julho 2017

«As Falsas Confidências» (Les Fausses Confidences) de Luc Bondy. Com Isabelle Huppert, Louis Garrel, Bulle Ogier, Yves Jacques e Jean-Pierre Malo. França, 2016, Cores, 82 min.

«A Ilha dos Escravos» + «A Herança» de Marivaux. Teatro da Cornucópia. Com Luis Miguel Cintra, Luís Lima Barreto, Orlando Costa, Raquel Maria, Dalila Rocha, Margarida Carpinteiro, Filipe La Féria, Jorge Silva Melo, Capitólio, 1974.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Sobre o filme «3 Gerações» de Gaby Dellal, 2015


Não basta buscar um tema da moda (e ainda bem que o é!) – a transexualidade na adolescência – para que um filme passe a ser bom.

Não basta colocar actrizes de primeira água em confronto – Elle Fanning (Ray / Ramona), Naomi Watts (a mãe solteira com dúvidas sobre a paternidade do filho / filha), Susan Sarandon (a avó lésbica que não aceita a transexualidade), Linda Emond (a namorada da avó) – para que estas actrizes consigam representar. E bem que elas se esforçam tentando dar corpo a um texto sem uma tirada de jeito.

Não basta fotografar a belíssima luz crepuscular de Nova Iorque e uma casa antiquíssima, de arquitectura maravilhosa, três ou quatro pisos abertos e interligados por escadas, esconsos e janelas promissoras frente à paisagem que lhes está fora, para que uma peça de teatro “em estrado isabelino” tenha crédito.

Não basta opor comédia e tragédia alternadamente, e em modo «fast-comedy», para dar textura ao melodrama. É preciso dar tempo aos olhares, às expressões, às peripécias, aos mal-entendidos para que a narração faça sentido. É preciso dar tempo ao Cinema.

Não basta confundir temas, juntar paradoxos, baralhar assuntos e, no fim, colocar um improbabilíssimo «happy end». Não há ninguém que não conheça os difíceis trâmites subterrâneos da ansiedade familiar. O cinema precisa de fina construção, como a literatura, para que o espectador sinta dele a retórica proposta e aceite a improbabilidade da ficção.

Contudo e por fim, basta a generosa proposta política do tema para um telefilme a ser visto no domingo de uma TV em depressão e admirar os belos rostos das personagens / actrizes por quem é tão fácil apaixonarmo-nos.

jef, julho 2017

«3 Gerações» (3 Generations) de Gaby Dellal. Com Naomi Watts, Elle Fanning, Susan Sarandon, Linda Emond, Tate Donovan e Sam Trammell. EUA, 2015, Cores.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Da consciência e da sua irrelevância














Da consciência e da sua irrelevância.

O caos e a tranquilidade são dois conceitos teóricos, mais palavrosos, menos abstractos, que definem sem definir estados que os humanos têm muita dificuldade em integrar. Animais, plantas, minerais, e o que lhes está pelo meio, praticam-nos plenamente sem necessidade de os distribuir por complexos dicionários.

O caos determina esse estado impossível de explicar em que as partículas e os seus componentes electrónicos se encontram em permanência, de pernas para o ar, cabeças ao vento, ora aqui ora ali, para desespero de matemáticos e astrofísicos, nunca sabendo estes quando e onde os irão agarrar. Dessa incerteza caótica são feitos tanto a pedra dura, como a água mole, como o substrato aéreo.

Por oposição, a tranquilidade, ainda mais teórica e abstracta, apenas existe quando, por momentos, é esquecido o caos das partículas e o da mente dos astrofísicos, tais como o das respectivas famílias, o possível recrudescer da gastrite, essa dor aguda que poderá conter mal maior, a disseminação do terrorismo pelos cantos improváveis do planeta, o encerramento da próxima estação dos correios ou a flutuação do preço da fruta no bairro em tempos de crise permanente. Ou seja, a tranquilidade existe apenas por esquecimento do que a nega. O contraditório e a respectiva sombra da consciência.

Olhando pelo lado de fora, a cegonha que plana no ar treinando as rémiges para que contornem as advecções atmosféricas, sem causas nem caos, quando não busca por alimento, segurança ou descendência, cumpre, efectivamente e inconscientemente, o prazer da tranquilidade. A cegonha apenas é tranquila dentro das órbitas estouvadas dos electrões que circulam pelos átomos das suas rémiges que, em sincronia, a levam à satisfação dessa, convenhamos, ausência de caos.

Ou seja, a consciência feita de caos e tranquilidade em simultâneo, mas também da sua oposição – caso se determine que uma e a outra palavra são antónimos, um facto pouco provável! –, torna tudo metafisicamente muito mais complicado para a gastrite do astrofísico, Doutor Teles, que ainda não descobriu a pólvora para o seu electrão, ou para o Senhor Serafim do minimercado que vê a fruta paquistanesa invadir o bairro, bem mais barata.

Afinal, não será de todo lógico que os sentidos de Caos e Tranquilidade sejam efectivamente opostos um do outro. A definição de tais palavras não vive em contradição. Apenas a sua consciência. Não é o Senhor Serafim ou o Doutor Teles quem o afirma.

É a cegonha que o confirma.

jef, julho 2017

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Sobre o filme «Mãe Rosa» de Brillante Ma Mendoza, 2016















Quando se olha de dentro do carro da polícia a banda sonora ocupa o espaço de uma cidade toldada pelo ruído, pelo movimento, pela chuva. Parece ouvir-se um chiar de roda eléctrica sobre os carris. O silêncio da música instala-se. Estamos isolados do mundo e da família. Assim como Rosa e Nestor, apanhados pela rede da polícia corrupta, pelo vício lamacento, pelos 50.000 pesos necessários para uma fiança arrancada a ferros. A família está separada. Mas a família é o único garante para que a vida ganhe à sobrevivência. Os filhos humilham-se para que o orgulho vença. Têm de vencer. Manila não soçobrará. A família é una e indivisível.
Brillante Ma Mendoza faz de novo tese após «Lola» (2009) e faz parar a angústia e a ansiedade sobre a longa cena em que Rosa Reyes (Jaclyn Jose) vai empenhar o telemóvel da filha pelos necessários 4.000 pesos e, finalmente, as lágrimas soltam-se em silêncio. Ela fica a olhar uma mãe e um pai a fecharem o negócio ambulante com a ajuda dos filhos crianças.
Finalmente Rosa fará, uma vez mais, reerguer a família. Mas está sozinha.
Naturalmente Jaclyn Jose recebe em Cannes (2016) o prémio para melhor actriz principal.

jef, junho 2017

«Mãe Rosa» (Ma' Rosa) de Brillante Ma Mendoza. Com Jaclyn Jose, Julio Diaz, Baron Geisler, Jomari Angeles, Neil Ryan Sese. Filipinas, 2016, Cores, 110 min.

terça-feira, 4 de julho de 2017

Sobre o disco «Mim Ê Bô» de Tito Paris. Ruela Music / Sony, 2017















Há 15 anos que Tito Paris não gravava um disco de originais.
Esperámos 15 anos pela voz rouca, suave, terna, que acarinha antes de cantar. Esperámos mas agora arrecadamos.
Lisboa, porque é difícil pensar na noite lisboeta sem Tito Paris, Lisboa bem aguardou pela sua forma estranha de colocar, em simultâneo, a música cabo-verdiana no centro de todas as latitudes crioulas: a morna, o bolero, a bossa nova, e até aquele «groove» à Manu Dibango («Bô» dançado em conjunto com Boss AC).
Mas no centro do centro está, para mim, essa faixa, «Resposta de Segredo cu Mar» de B.Leza, que Tito Paris canta com Bana, uma morna-fado-canção, onde os arranjos de cordas (Tomás Pimentel) e metais (Yan Mikirtumov) dão a poética do cançonetismo a um dueto irrepetível.
Se falo no trompetista Tomás Pimentel é com a justiça de sublinhar anos de trabalho e sensibilidade em redor da música africana (e da outra). Tomás Pimentel, responsável pelos arranjos de metais e cordas, leva o álbum para um mundo belo mas estranho, entre o sinfónico e a canção nostálgica («Fado Triste» de Vitorino).
Quanto mais busca formas de expressar a voz do Mindelo e da ilha de São Vicente, mais Tito Paris se próxima da tradição. «Ilha na Meio d’Oceano» tira-nos as dúvidas, «Mim Ê Bô» deixa-nos os pés a trautear o outro como reflexo de nós próprios, «Santiago Amor» (com Zeca Baleiro e apenas ao som fino do piano) lança-nos à saudade pura e indizível.
E, tome-se muita atenção, os arranjos base de 12 das 13 canções são do próprio!
O que seria das nossas cidades (e da nossa alma) sem a música de Tito Paris?

jef, abril 2017